O primeiro avião desenvolvido pelo inventor brasileiro Alberto Santos Dumont a ser fabricado em série, um ano depois do voo com o 14 Bis, foi chamado de Demoiselle (“donzela” em francês). O nome não era apenas uma forma carinhosa de se referir ao pequeno avião, mas uma referência direta às suas características físicas e à forma como ele voava.
Demoiselle é uma palavra de duplo sentido na França, também com uso popular para se referir às libélulas. Tanto que o avião também era conhecido por Libellule (libélula), com suas asas de armação de bambu que criavam uma envergadura de cinco metros para oito metros de comprimento.
Quis o destino que o ciclo se fechasse e uma nova espécie de libélula brasileira fosse batizada em homenagem ao Demoiselle, 114 anos depois do primeiro voo do aeromodelo, ocorrido em 1909. A libélula Cyanallagma demoiselle foi descrita no International Journal of Odonatology por uma equipe de pesquisadores do Laboratório de Sistemática de Insetos Aquáticos (Labsia) da Universidade Federal do Paraná (UFPR).
A principal série de exemplares analisados são insetos coletados pelo professor Ângelo Parise Pinto, coordenador do Labsia, há cerca de dez anos no Parque Estadual Ilha do Cardoso, extremo sul de São Paulo.
Para completar, o grupo de libélulas da nova espécie também é chamada de donzelinha no Brasil. Isso porque é um inseto que faz parte da mesma ordem das libélulas (Odonata), mas em uma subordem com características físicas mais delicadas.
Trata-se de uma diferenciação física entre as libélulas já comum na Zoologia (o estudo dos animais) que dá para notar nos termos em inglês. As donzelinhas são conhecidas como damselflies, enquanto libélulas são as dragonflies.
“Há uma tendência em fazer distinção dos representantes da subordem Zygoptera que são mais delgados, geralmente de voo menos possante e com olhos bastante separados no topo da cabeça, dos Anisoptera, que são libélulas mais robustas, com voo possante e, a maioria, com os olhos em contato dorsalmente”, conta Pinto, do Departamento de Zoologia da UFPR, à Ciência UFPR.
A coincidência entre o inseto e a data da sua descrição — os 150 anos de Santos Dumont, nascido em 1873 — levou os pesquisadores a batizarem a donzelinha em homenagem ao inventor.
O que fizemos, de certa forma, foi homenagear com o nome de uma libélula a homenagem de Santos Dumont às próprias libélulas”, lembra Emanuella Denck, bolsista de iniciação científica e autora principal do artigo.
Nova donzelinha mistura características físicas de outras espécies
A Cyanallagma demoiselle, porém, tem mais semelhanças com o avião, considerado um precursor dos ultraleves. Uma delas são as suas asas com membrana translúcida, sem pigmentos, permitindo assim a passagem de luz, que lembram as asas armadas com nervuras de bambu do Demoiselle.
Mas o diferencial da nova espécie é o fato de compartilhar características (cor e forma dos apêndices na parte mais alta do abdômen, por exemplo) com várias outras espécies do gênero Cyanallagma de donzelinhas.
Chamou a atenção que ela apresenta estruturas muito similares às de outras espécies, mas de forma misturada, como uma espécie de quimera”, conta Denck.
Um aspecto físico de destaque é que a donzelinha tem cores diferentes de acordo com o sexo, o que é chamado pelos biólogos de dimorfismo sexual: azul-esverdeado no macho e tons mais esverdeados na fêmea.
“Não é uma exceção na família à qual ela pertence, mas forma um padrão bastante bonito”, avalia Pinto.
Projeto busca encontrar novas espécies de insetos da Mata Atlântica
Essa é a terceira espécie de libélula da restinga do Parque Estadual Ilha do Cardoso que é identificada como nova pelo grupo de pesquisa. Todas raras ou exclusivas da região.
As libélulas desempenham o papel de predadoras em ecossistemas aquáticos, ajudando a manter estáveis as populações de outros insetos e até de peixes e anfíbios.
A ideia do Labsia UFPR é aumentar o conhecimento sobre grupos de insetos e de outros invertebrados artrópodes (com esqueleto externo) que comportam poucas espécies.
Ou seja, são oligodiversos: ordens com menos de 30 mil espécies, como os aracnídeos conhecidos como opiliões, e os insetos chamados de efêmeros, que são aquáticos. Na outra ponta estão os megadiversos, que são as ordens que possuem mais espécies do que isso. São numerosos e incluem, por exemplo, as borboletas e as mariposas e os besouros.
O foco das pesquisas tem sido o estudo da taxonomia, que é a Ciência que abrange a descrição de novas espécies, e da diversidade desses grupos na Mata Atlântica, um dos biomas mais ricos e ameaçados de toda a biosfera.
Libélulas resistiram a extinções pré-históricas
O histórico da linhagem das libélulas pode ser considerado de resiliência. O grupo descende dos primeiros animais a alçarem voo, há cerca de 320 milhões de anos.
Sobreviveu a extinções em massa até chegar aos dias de hoje. Passou pela último grande evento de extinção em massa no período Cretáceo, por exemplo, quando os grandes dinossauros foram extintos.
“Elas mudaram muito pouco nesses pelo menos 325 milhões de anos. Gosto de brincar que é uma das maquininhas mais bem-sucedidas geradas pela evolução biológica”, diz Pinto.
Ainda assim, é possível que espécies novas estejam sob ameaça juntamente com as mudanças que afetam o meio ambiente que habitam.
Insetos aquáticos estão entre as principais sentinelas dos impactos dessas questões, porque dependem da qualidade da água.
“Podem inclusive servir como bioindicadores da qualidade da água e da saúde geral dos ecossistemas”, acrescenta a pesquisadora Juliana Ehlert, que também atuou na pesquisa.
Declínios nas populações de insetos, que são animais extremamente adaptados aos seus ambientes, são indícios de que a resiliência de outras eras pode ter alcançado um limite.
A ideia de que alguns insetos sejam mais resilientes do que outros a catástrofes devido as ações humanas, com os eventos das mudanças climáticas, pode ser bastante enganosa e deve ser observada com cautela”, avalia Pinto.