
Por Dimas Marques
Editor
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Depois de meses de conversas entre representantes do Ibama, dos criadores amadores de pássaros de espécies nativas e políticos da bancada pet, a Operação Delivery sucumbiu. Um dos mais efetivos trabalhos de fiscalização contra o tráfico de fauna do país teve seu fim decretado em ofício do órgão ambiental federal de 21 de fevereiro. O documento determina que as entregas de anilhas aos criadores deixem de ser realizadas pelo Ibama após conferência de nascimentos e passem a ser responsabilidade da empresa fabricante, que atenderá diretamente a demanda dos criadores.
Para o diretor geral da Confederação Brasileira dos Criadores de Pássaros Nativos (Cobrap), Sebastião Roberto da Silva Sobrinho, a Operação Delivery não acabou, mas está evoluindo. “O Ibama não iria alterar o método de fiscalização se não tivesse um novo sistema competente para coibir abusos”, afirmou. Sobrinho é um dos protagonistas do processo que selou o fim da operação.
A Operação Delivery foi implementada nacionalmente em 2016 como um método rígido de entrega de anilhas (anéis de identificação colocados nas pernas das aves) para os criadores de trinca-ferros (Saltator maximus) e de coleirinhos (Sporophila caerulescens) inscritos no Sistema de Controle e Monitoramento da Atividade de Criação Amadora de Pássaros (SisPass).
Anteriormente à operação, bastava o criador solicitar ao fabricante a quantidade de anilhas que desejasse e informasse os nascimentos no sistema para que as recebesse. Por causa da suspeita de que aves retiradas da natureza ilegalmente estavam sendo anilhadas para parecerem ter nascido em cativeiro autorizado, o Ibama criou a Delivery. Na nova forma de trabalho, o próprio órgão federal passou a fazer as entregas dos anéis, que no primeiro ano foram realizadas somente após agentes de fiscalização terem verificado in loco se realmente os nascimentos estavam ocorrendo.
O resultado foi assustador. Quando se comparou o número de anilhas entregues entre 1º de agosto de 2015 e 31 de julho de 2016 (antes da operação) com a quantidade distribuída no mesmo período entre 2016 e 2017 (primeiro ano efetivo de atuação), a redução foi de 97%. Na média, cerca de 140 mil anilhas, que provavelmente seriam colocadas em pássaros traficados, deixaram de ser entregues anualmente durante a vigência da Delivery.
Depois de anilhados ilegalmente, os pássaros acabam sendo vendidos entre os criadores amadores – outra irregularidade, já que na criação amadora o comércio é proibido. Para manter a fachada de legalidade nesse negócio, eles fazem a transferência de propriedade no SisPass, o que é permitido. Outro problema bastante comum é o comercio de anilhas, também ilegal.
De acordo com a Instrução Normativa do Ibama nº 10 de 2011, que regulamenta a atividade, cada criador pode ter, no máximo, 100 aves, sendo permitida a reprodução. O limite de nascimentos é de 35 filhotes por ano. Na criação amadora não se pode comercializar as aves, mas é possível a transferência de animais entre criadores cadastrados no sistema.
O ofício que determinou o fim da Operação Delivery foi assinado pelo diretor de Uso Sustentável da Biodiversidade e Florestas (DBFlo), João Pessoa Riograndense Moreira Junior. O teor do documento não cita a operação, mas determina que a fabricante de anilhas passe a entregá-las diretamente aos criadores que as solicitarem pelo sistema do Ibama. Ou seja, não há mais a fiscalização direta nos criatórios.
Os criadores
“A Operação Delivery foi necessária e um sucesso no começo. Ela se tornou ineficaz porque não conseguia atender a demanda de vistorias para a entrega das anilhas. Havia uma dificuldade operacional que prejudicava os criadores”, afirmou Sobrinho, da Cobrap. Ele é enfático ao afirmar não ser contra a Operação Delivery. A confederação representa federações de criadores amadores de pássaros de 14 Estados.
Segundo Sobrinho, muitos criadores estavam deixando de colocar fêmeas para procriar porque sabiam que não conseguiriam receber as anilhas pelo Ibama. “O criador perdia e o meio ambiente também”, salientou o diretor da Cobrap. Ele considera as criações amadora e comercial essenciais para a conservação de aves silvestres nativas por estarem dispostas a auxiliar em projetos para salvar espécies ameaçadas.
O fim da Operação Delivery já era considerado provável desde o momento em que deixou de acontecer no estado do Rio de Janeiro. Em vídeo datado de 3 de outubro de 2019, Sobrinho afirma estar saindo da sede do Ibama em Brasília, onde se reuniu com o presidente do órgão ambiental, Eduardo Fortunato Bim. Também participaram do encontro Moreira Júnior (DBFlo), o coordenador-geral de Monitoramento do Uso da Biodiversidade e Comércio Exterior (CGMoc) do Ibama, André Sócrates de Almeida Teixeira, e o deputado federal Darci de Matos (PSD-SC). Na gravação (ver abaixo), ele relata que o encerramento da Delivery foi resultado de uma “ação política coordenada com a bancada pet” (grupo de parlamentares que defendem os interesses dos criadores e do mercado de animais).
Em outro vídeo gravado no mesmo dia (abaixo), Sobrinho já anunciava estar definido o fim da Operação Delivery em todo o país.
Em 17 de outubro, o Ibama informou ao Fauna News que a Operação Delivery não havia acabado no Rio de Janeiro, mas fora apenas suspensa temporariamente. Na época, o órgão ambiental federal não respondeu se ela seria encerrada no restante do país.
Não demorou muito para que o anunciado por Sobrinho se concretizasse. Em vídeo de 21 de fevereiro de 2020 (abaixo), poucas horas após a assinatura do ofício determinando a entrega de anilhas aos criadores diretamente pelo fabricante, o diretor da Cobrap divulgou a decisão e, novamente, salientou o apoio do deputado federal Darci de Matos, representando a bancada pet.
Vale destacar que agentes ambientais do próprio Ibama demoraram alguns dias para ter conhecimento da decisão. Muitos ficaram sabendo por meio do vídeo de Sobrinho, que começou a circular em redes sociais e aplicativos de mensagens.
O Fauna News entrou em contato com o Ibama em 27 de fevereiro para saber se havia alguma justificativa técnica para o fim da Operação Delivery. Também foi perguntado ao órgão se a decisão foi motivada por causa da solicitação dos criadores e por pressão de parlamentares da bancada pet. O órgão ambiental não respondeu aos questionamentos.
O deputado federal Darci de Matos também foi procurado e cancelou horas antes a entrevista que havia agendado com o Fauna News para ontem (05 de março). Além de atuar com a bancada pet, ele integra a recém-criada Frente Parlamentar Mista em Defesa dos Criadores de Animais de Estimação e a Frente Parlamentar Mista do Rodeio, da Vaquejada e das Provas Equestres.
O anúncio do fim da Operação Delivery gerou muita preocupação entre os ambientalistas. O gerente da vida silvestre da Proteção Animal Mundial, Roberto Vieto, afirmou que “eliminar uma ação de combate ao tráfico de alta eficiência só parece um retrocesso em matéria de proteção da fauna silvestre e dos mecanismos de enfrentamento ao tráfico.” Para ele, o risco de voltar aos antigos números de animais “esquentados” na criação amadora é elevadíssimo.
Vieto disse não ter informações se o Ibama está preparando alguma alternativa para substituir a Operação Delivery. “Só podemos esperar que sejam medidas muito mais estritas de controle, já que mesmo a Operação Delivery sendo uma ação eficiente, não era suficiente para evitar que os criadores amadores continuassem cometendo fraudes.”
As preocupações dos ambientalistas têm uma boa justificativa: tanto o coleirinho quanto o trinca-ferro estão entre as espécies da fauna nativa brasileira mais traficadas. No relatório Crueldade à Venda (publicado em 2019), a Proteção Animal Mundial destaca que as duas aves são, respectivamente, as espécies mais apreendidas com traficantes e em criação doméstica ilegal no estado de São Paulo. Ao mesmo tempo, o trinca-ferro é o pássaro em maior quantidade com os criadores amadores legalizados e o coleirinho é o terceiro no ranking.
Há, portanto, uma demanda gigantesca no comércio ilegal e pelos criadores amadores por pássaros das duas espécies que eram alvo da Operação Delivery. Sem a fiscalização mais rígida, o que irá acontecer?
Dimensão da criação amadora
A criação amadora de pássaros nativos é responsável por 97,49% dos animais silvestres mantidos em cativeiro no Brasil quando comparada com as criações comercial (2,31%) e científica (0,20%), de acordo com diagnóstico publicado em 2019 pelo Ibama. Pesquisa realizada pela Proteção Animal Mundial para o relatório Crueldade à Venda destacou que essa categoria mantinha, em 2018, 3.265.973 pássaros em gaiolas.
No SisPass, 406.790 criadores estavam cadastrados em 2018.