Girafas trazidas para o Brasil por zoológico do RJ seguem sem destino

Há mais de dois anos, 14 girafas sul-africanas vivem em instalações provisórias de um resort luxuoso em Mangaratiba (RJ).

Esses animais fazem parte de um grupo de 18 girafas que chegaram ao Brasil em 11 de novembro de 2021, em um processo de importação sob suspeitas de irregularidades e que chegou a ser chamado pela Polícia Federal de “o maior caso de tráfico de animais da história do Brasil“. Inicialmente, elas foram alocadas, em caráter temporário, no resort Portobello, para depois seguirem ao BioParque, o zoológico do Rio de Janeiro, que pertence ao grupo Cataratas e é responsável pelos animais. Em 14 de dezembro do mesmo ano, cinco dos animais fugiram do confinamento e, na captura, três morreram. O fato só foi divulgado cerca de 50 dias depois do ocorrido, levantando suspeitas das autoridades. Em 8 de julho de 2023, uma quarta girafa morreu em decorrência de problemas gástricos.

Desde a chegada das girafas ao Brasil, o Fórum Nacional de Proteção e Defesa Animal (FNPD), ONG que atua desde 1998, passou a acompanhar de perto. O Fauna News entrevistou a diretora técnica do Fórum, a veterinária Vânia Plaza Nunes, e também a advogada que atua em nome da instituição, Ana Paula Vasconcelos, para entender como está a situação desses animais.

Fauna News – O Fórum Nacional de Proteção e Defesa Animal tem acompanhado o caso desde a chegada das 18 girafas, em novembro de 2021. Em algum momento, vocês tiveram acesso aos animais?
Vânia Plaza Nunes – Mais ou menos seis meses depois que as girafas já estavam aqui no Brasil, pedimos autorização para acessá-las. De um dia para o outro, liberaram a vistoria, um membro da equipe do Fórum visitou as instalações e gerou um relatório: as girafas eram jovens e se encontravam confinadas de três em três indivíduos, em baias de 30 metros quadrados. Já estava configurada uma situação muito inadequada, irregular, sem benefícios ambientais que favorecessem a qualidade de vida aos animais. Por serem indivíduos juvenis, precisavam de estímulos de outros indivíduos adultos do grupo para que aprendessem respostas positivas e de situações de risco, por exemplo, o que é uma situação inexistente.

Pelo contrário, elas eram mantidas em um ambiente inócuo, sem nenhum estímulo, tendo acesso apenas a uma pequena área externa que proporcionava algum exercício de caminhada. Para dormir, ficavam nesse ambiente fechado. Tal ambiente gerou lesões na pele dos animais, além de outros pontos negativos. Não foi permitido que se fizessem fotos nem imagens dos animais e do ambiente. Esse relato faz parte do documento do processo inicial.

Fauna News – O Ibama e o BioParque emitem algum tipo de informe público ou mantêm diálogo com as entidades que acompanham o caso, atestando o estado de saúde dos 14 animais que permanecem na área do hotel Portobello?
Vânia Plaza Nunes – Não recebemos oficialmente nenhum tipo de informação, em especial do BioParque. Eles ignoram a existência de qualquer outra instituição preocupada com os animais, além das autoridades, que obrigatoriamente são recebidas para avaliação. O Ibama vai periodicamente realizar vistoria, em prazos determinados pelo processo judicial, e emite laudos que compõem esse processo. Por mais que existam irregularidades desde o processo de importação, na manutenção dos animais, na condição de maus-tratos, nos problemas que comprometem diretamente o bem-estar desses animais, que já apresentaram quadros bem críticos, nada disso faz com que a Justiça caminhe.

É importante lembrar que existem processos em diferentes esferas públicas, por haver irregularidades com relação ao órgão do Estado do Rio de Janeiro, o Inea, questões ligadas ao Ministério do meio Ambiente e Mudança do Clima, à Polícia Federal, enfim, um conjunto de processos que correm na Justiça simultaneamente. Portanto, esses são os únicos meios de informação que temos: as respostas aos processos e os laudos que os compõem. Mais recentemente, por meio desses laudos, temos recebido notícias que aumentaram o espaço disponível às girafas, mas que ele continua sem nenhum tipo de enriquecimento ambiental. Está cercado com tapumes verdes, em um terreno revestido com um tipo de piso que o Ibama já pediu para ser trocado por ser inadequado. Tudo muito artificial. É muito triste ver.

Estive lá uma segunda vez, quando disseram que poderíamos ter acesso. Mas chegando ao local, uma advogada do (hotel) Portobello recusou nossa entrada. De lá pra cá, já tivemos reuniões com Rodrigo Agostinho (presidente do Ibama), que se comprometeu, mas até agora nada foi feito. Existe algo nesse meio do caminho que impede que o processo seja mais célere.

Fauna News – Vocês têm informações detalhadas sobre o bem-estar das girafas atualmente?
Vânia Plaza Nunes – O que recebemos consta nos laudos de vistoria dos órgãos responsáveis apenas. Até o momento, as girafas restantes não apresentaram algum tipo de problema além dos que já foram relatados, como alguns dos indivíduos apresentando problemas gástricos. O manejo que é dado aos animais está comprometendo a saúde delas de maneira geral, tanto que a quarta girafa morreu por complicações gástricas. Girafas são animais poligástricos, possuem vários estômagos. Essa girafa comeu uma alimentação excessiva, teve um problema gástrico que não foi corrigido a tempo e veio a óbito.

Do ponto de vista do bem-estar, o que conseguimos avaliar nessa situação é que os animais não estão recebendo aquilo que deveriam. Quando falamos de bem-estar, temos que deixar alguns pontos bem claros: a capacidade de adaptação do animal àquele meio onde ele foi submetido a viver; ele conseguir viver e interagir com aquele ambiente de alguma forma positiva; e a motivação que ele tem para estar naquele local. Com o tempo, os animais vão acabar se adaptando a viver ali. Eles não tem outra alternativa. A não capacidade de adaptação significa o adoecimento e morte desses animais. Eles têm comida e espaço para caminhar. Mas eles não têm a possibilidade de exercitar o comportamento natural, de diminuir quadros de estresse, causados por excesso de estímulos ou a ausência total desses estímulos, que é a atual situação das girafas.

Além disso, girafas são animais sociais, que vivem em grupos, têm naturalmente essa capacidade de interação social. Em breve, esses animais que estão no resort vão passar a ter uma vida com estímulos reprodutivos. Será preciso providenciar espaços de divisão. Mas a nossa grande preocupação é que esses animais, invariavelmente, vão acabar sendo encaminhados para zoológicos porque dificilmente essas girafas serão repatriadas. Como os próprios documentos de importação dizem, elas foram retiradas do meio natural, não viviam em um local destinado a um programa de conservação, conforme o grupo do BioParque alega. Não há nenhuma documentação que certifique a existência desses projetos. Então, tudo isso nos leva a crer que essa importação ilegal faz parte de um plano maior, que é a concessão e a terceirização de vários zoológicos no país, gerando um potencial financeiro muito grande e que o grupo do BioParque vê como possibilidade de lucro.

O Fórum Nacional está elaborando um trabalho sobre zoológicos que está evidenciando algumas posições desse empreendimento. Uma coisa é clara: onde há terceirização, um interesse particular envolvido, haverá uma exploração de proveito financeiro, como cobrança de altos valores do ingresso, venda de souvenires, áreas de alimentação, tudo visando o lucro, com um público específico a ser frequentador do espaço. Há toda uma história que se vende para a sociedade de como o zoológico funciona. A motivação que menos importava para se trazer essas girafas para cá é um programa de conservação, como tem sido alegado. Até porque, geneticamente, por haver diversas subespécies de girafas, não foi dada uma justificativa de triagem genética para um programa de conservação.

Fauna News – Qual seria a melhor opção para viabilizar o bem-estar destes animais? Devolvê-los à África? Levá-los a alguma instituição no Brasil?
Vânia Plaza Nunes – O ideal agora é que esses animais sejam colocados em um “santuário”, que poderia ser uma propriedade com espaço, como é o santuário dos elefantes, em Goiás, por exemplo. Que esse espaço fosse designado para prover condições de uma vida o mais próximo possível do ambiente que eles viviam na África, considerando-se toda a dificuldade de devolução desses animais ao seu ambiente natural, e que não houvesse visitação pública. Ou talvez inseri-los num programa para reintrodução ao ambiente natural. Mas há várias etapas anteriores a serem resolvida nesse crime que foi cometido contra esses animais, para termos condição de prover a recuperação física e mental deles, proporcionando-lhes uma vida digna para que consigam cumprir o papel que eles teriam se não fossem retirados da natureza. Seria um desafio muito grande, mas submetê-los a uma viagem de navio – o tamanho que elas estão já não seria possível o transporte aéreo – seria bem inviável. O mais viável seria introduzi-los em um programa de conservação com profissionais realmente engajados e responsáveis.

Vimos realmente um despreparo por parte do BioParque quando receberam as girafas. Não sabemos ao certo se foi por ter sido já pensado que ali seria um espaço provisório para um possível encaminhamento das girafas a outros destinos – zoológicos ou outras áreas gerenciadas pelo grupo do BioParque –  ou se eles realmente não tinham noção do que era cuidar de 18 girafas. Inferimos isso por conta de que o ambiente inicial que havia sido pensado para receber esses animais, em que houve fuga de algumas delas, resultando na morte de três, era completamente sensível e inadequado para a situação. Houve uma negligência de manejo.

Fauna News – Para o caso de mantê-los no Brasil, há algum espaço adequado que comporte esses animais?
Vânia Plaza Nunes – Acreditamos que exista sim um espaço que possa receber esses animais e ser adequado a eles, porém não está disponível hoje. Entretanto, precisamos considerar que são animais bastante complexos de transportar por conta da altura principalmente, além da quantidade de horas de confinamento durante o deslocamento.

Quando vieram para o Brasil, eram menores. Vieram em caixas de transporte. Para qualquer transporte de animal, é necessário um período de adaptação com o ambiente de transporte, para ele entender que ficará um período dentro de um espaço confinado. E quanto mais o tempo passa, mais difícil é. O ideal era haver uma área o mais próxima possível da área que eles estão hoje e preparar esse terreno, até porque a condição climática de Mangaratiba é bem próxima da região de onde elas vieram.

Tudo isso exige um investimento que, no meu entendimento, não é de responsabilidade da sociedade civil. Como temos a irregularidade de uma empresa que agiu de má fé, é necessário que ela arque com esse custo, que seja uma multa revertida à criação desse ambiente apropriado, e que os órgãos de fiscalização que foram omissos ou coniventes, conforme alguns dos processos demonstraram, deveriam também ter essa obrigação de arcar com esses custos por conta da obrigatoriedade da legislação e da Constituição brasileira.

Fauna News –  Poderia nos fazer um resumo do histórico judicial do caso?
Ana Paula Vasconcelos – Ao recebermos a notícia da morte das três girafas, em 2021, ajuizamos uma ação civil pública (ACP) para determinar que elas fossem retiradas desse local inapropriado. A juíza da Vara da Fazenda Pública do Rio de Janeiro, atendendo ao pedido feito nessa ACP, deferiu parte do pedido e determinou que em 48 horas as 15 girafas sobreviventes fossem colocadas em local adequado, ou seja, saíssem das baías onde se encontravam sem acesso à luz solar e sem local para se movimentar, e que em até 30 dias o BioParque construísse recintos de acordo com as normas técnicas do Ibama, sob pena de aplicação de multa diária no valor de R$ 5 mil.

O BioParque fez as alterações sem respeitar os prazos e, apesar de todos os nossos pedidos judiciais, as multas nunca foram aplicadas. O processo ainda aguarda julgamento. Dentre os pedidos está: condenação por dano moral coletivo e a proibição do BioParque em comercializar as girafas sobreviventes. Na esfera criminal, quatro pessoas foram denunciadas, sendo dois funcionários do BioParque, um do Ibama e um do Inea, mas não há condenações. Na esfera administrativa, existem dezenas de multas aplicadas pelo Ibama que ainda não foram pagas.

Fauna News – Como está o caso na Justiça, atualmente? Qual a perspectiva de haver uma decisão sobre a questão da importação das girafas e a destinação dos animais?
Ana Paula Vasconcelos – Além da ação civil pública, ajuizamos ação na Justiça Federal pedindo a anulação do processo de importação, mas não obtivemos êxito. Há uma perspectiva de anulação na esfera administrativa por parte do Ibama. Quanto à destinação, ainda não há hipóteses concretas.

O Fauna News fez contato com o BioParque após a entrevista com as representantes do Fórum Nacional de Proteção e Defesa Animal e recebeu a seguinte nota:

“O BioParque do Rio reforça sua absoluta responsabilidade com o manejo de fauna amparado em educação, pesquisa e conservação de espécies. Além disso, reitera o seu compromisso intransigente com o bem-estar de todos os animais sob seu cuidado.

A empresa informa que as girafas permanecem no Portobello Safari e evoluem positivamente a cada dia com o manejo, que inclui o condicionamento com enriquecimento ambiental e recintos dentro das normas ambientais. Os recintos e o desenvolvimento dos animais são acompanhados pelos órgãos competentes, respeitando os procedimentos e os protocolos de segurança, sempre primando pelo bem-estar das girafas.

Não há definição oficial sobre a transferência dos animais para qualquer outro local”.