Por Júlia Beduschi
Bióloga e mestre pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Trabalha junto ao Núcleo de Ecologia de Rodovias e Ferrovias (NERF) da mesma instituição
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As rodovias causam diversos impactos à fauna e ao ambiente, sendo o impacto mais conhecido e estudado o atropelamento de fauna. Porém, esse impacto acontece também em outras rodovias não terrestres. O que eu quero dizer com rodovias não terrestres?
São rotas usadas para o deslocamento de pessoas e produtos, onde não necessariamente existe uma construção linear, mas sim um veículo em deslocamento com potencial de colisão com a fauna. Já falamos em outras duas ocasiões (em 2016 e este ano) sobre os impactos das rotas de transporte marinhas, mas existe outro tipo de estrada sujeito a esse impacto: as rotas aéreas.
Apesar de o primeiro incidente registrado com fauna no transporte aéreo ser de 1905, transcrito no diário dos irmãos Wright, foi a partir de 2009 que o tema ganhou grande repercussão mundial. Na ocasião, um avião comercial colidiu com um bando de gansos canadenses e fez um pouso forçado dentro do rio Hudson nos EUA, sem a perda de nenhuma vida humana. Esse incidente ficou conhecido como o milagre do Hudson e a história até virou filme.
Segundo a especialista no assunto, a bióloga Mariane Biz, os estudos sobre fauna e aviões ainda são incipientes no mundo, mas não há evidências que essa interação cause impactos na conservação das espécies como os identificados para rodovias e rotas de navegação. Porém, quando ocorre a colisão fauna-avião, invariavelmente o animal vem a óbito e pode causar graves danos à aeronave. Os animais mais afetados são as aves, as campeãs de colisões. Estão classificadas como “espécies nocivas à aviação brasileira” o quero-quero (Vanellus chilensis), o carcará (Caracara plancus) e o urubu-de-cabeça-preta (Coragyps atratus), segundo parecer do Ministério do Meio Ambiente. Mas há também registros de animais terrestres sendo atropelados pelas aeronaves, como cachorros, capivaras e pequenos mamíferos.
Em entrevista com Mariane, fiz alguns questionamentos tentando entender como são as medidas adotadas para evitar esse impacto e como a legislação brasileira trata do assunto:
Júlia Beduschi – Quais são as medidas de mitigação disponíveis para evitar que essas colisões ocorram?
Mariane Biz – A base para mitigar o risco de fauna, ou seja, o risco de um animal colidir com uma aeronave, é a modificação do ambiente seguida da exclusão física. A ideia é tornar o aeroporto e seu entorno, a Área de Segurança Aeroportuária (ASA), menos atrativos para as espécies nocivas à aviação e impedir que os indivíduos acessem ou permaneçam no sítio aeroportuário, instalando cercas ou grades e espículas, que são arames para impedir que as aves pousem, por exemplo.
Quando essas primeiras ações não funcionam, deve-se recorrer à dispersão, que pode ser feita com sons agonísticos e pirotecnia, por exemplo, à captura e translocação e, se nada for efetivo ou o risco for iminente, ao abate. Sendo que essas ações dependem de elaboração de um Plano de Manejo de Fauna em Aeródromos (PMFA), que deve ser aprovado pelo órgão ambiental competente.
Uma forma de exemplificar as medidas é através da pirâmide hierárquica:
Eu ainda adiciono uma base maior a essa pirâmide: o treinamento. O setor da aviação é muito específico, cheio de regras, e a atuação de um profissional especialista em fauna se refere a segurança operacional, muito distante do que aprendemos nas faculdades da área ambiental. Não considero que biólogos, veterinários, ecólogos ou engenheiros estejam preparados ao sair da graduação ou da pós-graduação não correlata à aviação para atuar com risco de fauna sem antes passarem por capacitação específica.
Importante também destacar que todas as ações devem preceder uma Identificação do Perigo da Fauna (IPF) e uma Análise do Risco de Colisão com Fauna (ARF), conforme estabelecido pela Agência Nacional de Aviação Civil (ANAC), para saber quais são as espécies-problema de cada aeroporto e planejar as ações de mitigação espécie-específicas.
Júlia Beduschi – Como as colisões com a fauna ocorrem com maior probabilidade durante a decolagem e a aterissagem, existe alguma medida de mitigação nos aeroportos e seus entornos que seja mais efetiva na redução das colisões?
Mariane Biz – Não. Para o gerenciamento do Risco de Fauna em Aeródromos não temos uma ou algumas medidas que sejam efetivas e indicadas para todos os aeródromos do país. Isso dependerá muito de cada localidade e, muitas vezes, várias das ações citadas anteriormente devem acontecer concomitantemente para evitar a habituação da fauna.
Há orientações gerais bem importantes como o cercamento adequado, especialmente na área operacional; a boa gestão de resíduos sólidos dentro e fora do aeródromo; eliminar e evitar o acesso às fontes de dessedentação dentro da área operacional; e o manejo adequado das áreas verdes no sítio aeroportuário.
Cada aeroporto após seu diagnóstico (IPF e ARF) deve planejar suas medidas de mitigação considerando as espécies identificadas como problema. É importante que todas as ações estejam integradas com a operação do aeroporto e registradas no Programa de Gerenciamento do Risco da Fauna (PGRF), conforme estabelecido pela ANAC.
Júlia Beduschi – Você acha que o Brasil trata corretamente desse tema ou ele é negligenciado, tanto em legislação como na prática? Teria alguma prática mais eficiente realizada por outros países que não é executada no Brasil?
Mariane Biz – Acredito que já melhoramos, mas ainda há muito o que se avançar.
As primeiras ações organizadas para a mitigação desse risco começaram em 2009 com um convênio entre a Infraero, que ainda é a maior administradora aeroportuária do Brasil, e a Universidade de Brasília. Desde então, o tema tem evoluído a passos lentos, com altos e baixos.
A legislação e regulamentação possuem direcionamentos importantes, mas ainda não adotados por todos os aeroportos que deveriam. Então, entendo que estamos mais atrasados na prática do que na legislação e regulamentação. O descaso na aplicação afetará o amadurecimento adequado das leis e regulamentos.
Vejo também com grande pesar o fato da pesquisa, do desenvolvimento e da inovação no país pouco olharem para esse tema. Há muitos questionamentos para que a Ciência responda e possamos desenvolver novos métodos e novas tecnologias.
Em países em que a cultura de segurança e prevenção é mais forte, como EUA, há um maior envolvimento e incentivo do governo e da pesquisa acadêmica no gerenciamento de risco de fauna, o que proporcionou avanços significativos e bem mais rápidos do que no Brasil.
Como exemplo de boas práticas internacionais, destaco a exigência de capacitação para os profissionais que atuam com risco de fauna e a identificação de espécies em laboratório através dos materiais biológicos provenientes de colisões. Essa última ação permite que o diagnóstico seja mais preciso e, consequentemente, as medidas de mitigação sejam mais efetivas.
Como recomendação final, Mariane Biz ressalta a importância de fomentar a integração entre os profissionais que atuam na área a fim de promover um avanço mais rápido e mais qualificado do tema no Brasil. Ela também divulga ações importantes que têm sido construídas nos últimos anos como a Comissão Nacional de Risco de Fauna (CNRF), grupo que envolve diversos atores do setor; o AeroFauna, encontro/congresso bianual sobre o tema (a 2ª edição será em setembro deste ano); e a Rede Brasileira de Especialistas em Ecologia de Transportes (REET Brasil), uma associação que visa integrar profissionais da área.
Visto que a “colonização” do espaço aéreo está cada vez mais se potencializando com o avanço de novas tecnologias, como o uso de drones e de protótipos de Airbus de táxis aéreos não autônomos para o deslocamento em cidades, essa é uma área que ainda necessita de muito estudo sobre os potenciais impactos no ambiente e está latente para a cooperação governo/universidades na busca de melhores planejamentos de medidas de mitigação e legislação.