Análise de Dimas Marques
Editor-chefe
dimasmarques@faunanews.com.br
Alexandre Saraiva é conhecido pelo combate ao tráfico de fauna
“Pois não posso, não devo, não quero
viver como toda essa gente insiste em viver
E não posso aceitar sossegado
Qualquer sacanagem ser coisa normal”.
Os versos são da música Bola de Meia, Bola de Gude, de Fernando Brant e Milton Nascimento. Neles, o inconformismo de quem sabe o papel que deve cumprir. Neles, o sentimento de inadequação perante uma visão de mundo que pretende normatizar o uso da máquina do Estado a seu favor.
Como assim, o ministro do Meio Ambiente defendendo quem está sendo investigado por desmatar ilegalmente a Amazônia? Não pode.
No pequeno trecho da canção, o cerne da notícia-crime de 38 páginas que o ex-superintendente da Polícia Federal no Amazonas, delegado Alexandre Silva Saraiva, apresentou quarta-feira (14 de abril) ao Supremo Tribunal Federal contra o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, o presidente do Ibama, Eduardo Bim, e o senador Telmário Mota (Pros-RR).
O policial afirma que Salles, Bim e Mota dificultaram a ação fiscalizadora do poder público em questões ambientais (artigo 69 da Lei n° 9.605/1998 – Lei de Crimes Ambientais), atuaram para “patrocinar, direta ou indiretamente, interesse privado perante a administração pública, valendo-se da qualidade de funcionário” (artigo 321 da Lei nº 2.848/1940 – Código Penal) e integram uma organização criminosa (caput do artigo 2º da Lei n° 12.850/2013) com os investigados na Operação Handroanthus – ação responsável por uma gigantesca apreensão de madeira nativa na Amazônia. O delegado pede que o STF investigue o ministro e o senador, que têm foro privilegiado. Sobre o presidente do Ibama há somente a informação do possível cometimento dos crimes por parte dele.
Saraiva realmente mostrou-se disposto a cumprir o que prometeu em matéria publicada no dia 4 de abril pela Folha de S. Paulo: “Na Polícia Federal não vai passar boiada” – comentada em 5 de abril pelo Fauna News.
E por ser resistência à boiada, o delegado perdeu ontem a chefia da Superintendência Regional da Polícia Federal no Amazonas – que passa a ser comandada pelo delegado Leandro Almada da Costa. A troca de comando fez com que oito líderes de partidos da oposição acionassem o Ministério Público Federal para investigar o ministro da Justiça, Anderson Torres, e o diretor-geral da PF, Paulo Maiurino, pela atitude.
A notícia-crime enviada ao STF motivou o subprocurador do Ministério Público junto ao Tribunal de Contas da União (TCU), Lucas Rocha Furtado, pedir à corte que determine à Casa Civil do governo o afastamento temporário de Salles do ministério. Na solicitação, o representante do MP alega que “a manutenção do referido gestor à frente da pasta pode retardar ou dificultar a realização da apuração dos fatos ora questionados, causar novos danos ao meio ambiente (patrimônio público), interferir indevidamente na Operação Handroanthus – GLO, da Polícia Federal, bem como inviabilizar a cobrança das multas decorrente de infrações ambientais”.
A notícia-crime
A Operação Handroanthus foi uma série de ações policiais que, no final de 2020, resultaram em enormes apreensões de madeira nativa, totalizando mais de 226 mil metros cúbicos e valor estimado em R$ 129 milhões. Entre elas está a maior apreensão da história, ocorrida no Pará em 21 de dezembro, em que foram encontradas mais de 43 mil toras – carga capaz de encher 6.243 caminhões e avaliada em R$ 55 milhões.
De acordo com Saraiva, Salles e Mota “de forma consciente e voluntária, e em unidade de desígnios, dificultam a ação fiscalizadora do Poder Público no trato de questões ambientais, assim como patrocinam, direta, interesses privados (de madeireiros) e ilegítimos perante a administração pública, valendo-se de suas qualidades de funcionários públicos”. Eles também integrariam, “na qualidade de braço forte do Estado, organização criminosa orquestrada por madeireiros alvos da Operação Handroanthus – GLO com o objetivo de obter, direta ou indiretamente, vantagem de qualquer natureza, mediante a prática de infrações penais de crimes de receptação qualificada e crimes ambientais com caráter transnacional.”
No centro do conflito está a apreensão das 43 mil toras. Salles tem feito pressão para que a Polícia Federal do Amazonas, que era chefiada por Saraiva, devolva a carga para os grupo de madeireiros que está sendo investigado. O delegado afirma que a madeira foi extraída ilegalmente.
Salles fez uma série de declarações públicas e até duas viagens ao Pará com a intenção de provar que a madeira extraída é legal. Simultaneamente, o presidente do Ibama (órgão do Ministério do Meio Ambiente), Eduardo Bim, enviou ofício ao diretor geral da PF solicitando os documentos técnicos e periciais da operação, pois uma equipe do Instituto havia encontrado dificuldades para medir e fiscalizar a madeira apreendida e em poder da Polícia Federal. Saraiva relatou todo esse ocorrido na notícia-crime:
“Este requerimento veio logo após o Ministro do Meio Ambiente criticar as apreensões realizadas pela Superintendência Regional da Polícia Federal no Amazonas, o que leva a crer ser o ato de comunicação oficial o meio utilizado para ter acesso às investigações e, assim, buscar desacreditá-las. O Ibama, desde o início da operação, manteve-se inerte, desinteressado em exercer seus poderes de polícia ambiental, o que desperta a existência de interesses escusos, provavelmente a mando do Ministro do Meio Ambiente.”
Na denúncia enviada ao STF, Saraiva ainda informa que, durante as investigações sobre a origem da madeira apreendida, a Polícia Federal descobriu que as terras públicas onde estavam as árvores derrubadas foram objeto de grilagem, ou seja, houve fraude na concessão das áreas aos madeireiros. Portanto, a madeira é ilegal.
Senador
Saraiva também reproduziu na notícia-crime uma série de manifestações em rede social (Twitter) feitas por Telmário Mota o atacando e ao trabalho da PF no caso.
O parlamentar, em nota publicada em seu site, respondeu:
“O Delegado xiita, Alexandre Saraiva, mais uma vez busca os holofotes com uma notícia-crime patética, sem fundamento e elaborada apenas para ganhar espaço na mídia e nas redes sociais.
A verdade é que, o delegado é um covarde que pratica autoritarismo e não tem coragem de debater com o Ministério do Meio Ambiente e da Justiça, um protocolo para regulamentar o setor madeireiro.
O delegado cria suas próprias leis criminalizando todo um setor, sem distinção de quem está dentro da legalidade ou não, causando assim, a falência de diversas empresas e deixando mais de 15 mil trabalhadores desempregados, apenas em Roraima, numa época de crise mundial.
Ressalto que em momento algum pratiquei as condutas descritas. Como parlamentar, apenas denunciei os procedimentos ilegais cometidos pelo delegado, que sistematicamente utiliza da PF para sua própria promoção pessoal.
Estou convicto que a notícia-crime será arquivada de plano pelo MPF. Continuarei lutando contra os abusos de autoridade cometidos pelo Sr. Alexandre Saraiva, como também pelo emprego de todos aqueles que trabalham dentro da legalidade.”
Salles tem declarado que responderá às acusações de Saraiva no decorrer das apurações. Bim não se manifestou
Fauna
O delegado Saraiva começou sua atuação como delegado da Polícia Federal em Nova Iguaçu, no Rio de Janeiro. Formado em Direito pela Universidade Federal Fluminense, tem especialização em Gestão de Organizações de Segurança Pública e doutorado em Ciências do Ambiente e Sustentabilidade na Amazônia pela Universidade Federal do Amazonas, onde no final do ano passado defendeu a tese “A atuação de organizações criminosas na exploração ilegal de madeira como principal vetor do desmatamento da Amazônia”.
Além de combater o desmatamento – ação que ajuda garantir a qualidade do habitat dos animais silvestres -, Alexandre Saraiva é bastante conhecido no meio policial pela atuação na repressão a crimes contra a fauna. No Amazonas, onde trabalhou por três anos e meio, o delegado intensificou a fiscalização no aeroporto de Manaus, combatendo o tráfico de peixes ornamentais.
Saraiva foi um dos principais policiais envolvidos na Operação Oxóssi, ação da PF do Rio de Janeiro iniciada em março de 2009 e que resultou na prisão de 102 pessoas envolvidas com o tráfico de animais silvestres na Suíça, Indonésia (Bali), Portugal, Espanha e República Tcheca, além do Brasil. O delegado inovou juridicamente ao indiciar os acusados por receptação qualificada (parágrafo 1º do artigo 180 do Código Penal) e não pelo costumeiro artigo 29 da Lei de Crimes Ambientais – que é bastante fraco nas sanções ao comércio ilegal de animais silves