Por Arthur Brum¹ e André Eduardo Piacentini Pinheiro²
¹Doutorando em Zoologia pelo Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), integrante do projeto Paleoantar e paleontólogo com foco no estudo de dinossauros e paleohistologia
²Paleontólogo de vertebrados especialista em Crocodyliformes extintos. É professor e pesquisador do Departamento de Ciências da Faculdade de Formação de Professores da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ)
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Falar em Antártica para a imensa maioria das pessoas é manejar com a imaginação, com o intangível, com as antípodas esquecidas do mundo, afinal, o coração sente na medida em que os olhos alcançam. Nesse sentido, não há nada mais distante dos olhos no planeta do que a Antártica. No entanto, para os poucos felizardos que conseguem chegar até lá, a noção e os sentimentos de desbravamento, dificuldades, isolamento e reflexões profundas, de toda a sorte, são elementos bastante presentes e que nos remetem aos exploradores pioneiros da era heroica, como Amundsen (o primeiro a alcançar o polo Sul geográfico), Scott e o desafortunado Schackleton.
Esse enigmático continente detém recordes invejáveis, como o mais isolado e inóspito; por estar coberto por uma calota de gelo permanente nos últimos 50 mil anos; por ser o mais frio (-93ºC, a temperatura mais baixa oficialmente registrada); por ter a maior reserva de água doce do planeta; e por não ocorrer nenhum residente permanente em nível de vida macroscópica em seu interior, incluindo a espécie mais distribuída e adaptável do globo, nós. Com propósitos pacíficos, de reserva mundial e pesquisas, o Tratado da Antártica, em vigor desde 1961, assegura a neutralidade da região e proíbe assentamentos humanos permanentes, permitindo somente grupos temporários de militares e pesquisadores em bases específicas.
Apesar de sua configuração e localização polar atual, durante o Mesozóico (entre 250 e 65 milhões de anos atrás), esse continente estava localizado em zona temperada da Terra, com uma exuberante floresta e conectado às outras massas de terra do antigo supercontinente Gondwana, que incluiu o que hoje é a América do Sul, África, Indopaquistão e Austrália. O que isso significa? Uma enorme abundância potencial em recursos minerais e, claro, fósseis. Através do programa Paleoantar, entre os anos de 2018 e 2019, e atrás dos fósseis de vertebrados, lá fomos nós para a Antártica!
Acampados durante 50 dias na ilha de James Ross, nossa equipe era composta por seis integrantes, entre pesquisadores (paleontólogos), um alpinista e militares da Marinha. A história do plesiossauro recém estudado e publicado em artigo científico é interessante e fortuita. Como estudioso dos crocodiliformes extintos, mas com um interesse geral pelos demais grupos animais, costumava ficar impressionado com o transcendental lugar. Às vezes, passava mais tempo que os demais, analisando os depósitos que concentravam abundantes restos de invertebrados marinhos, denominados coquinas, contendo muitos restos de corais, gastrópodes, bivalves (alguns gigantes), e os belíssimos amonitas.
Em um de nossos longos deslocamentos, eu fiquei para trás, detido em um arroio, analisando um bloco de coquina, quando nosso alpinista, o responsável pela integridade física do grupo, voltou para me buscar. Ele subiu em uma rocha e, impaciente, começou a gritar meu nome, quando de súbito, olhou para o lado da pedra onde se equilibrava e avistou duas vértebras de aproximadamente seis centímetros de comprimento cada. A comoção foi geral e celebramos a descoberta! Achávamos que poderíamos estar sobre alguma sequência continental naquele local e que aqueles poderiam ser restos de dinossauros terópodes, os quais seriam os primeiros para aquela região. Com mais calma e análise, constatou-se não pertencerem a um dinossauro, mas sim de animal não menos interessante: um elasmossaurídeo, que pertence a um grupo extinto e totalmente relegado ao registro fóssil.
Revivendo monstros marinhos
Os elasmossaurídeos são répteis marinhos caracterizados por seus longos pescoços, com um padrão corporal bem característico, remetendo ao famoso Monstro do Lago Ness. Eles apresentam os maiores pescoços dentre os vertebrados, com algumas espécies com mais de 70 vértebras cervicais (como os gêneros Elasmosaurus e Albertonectes). Essas vértebras cervicais também são muito importantes para a classificação dos principais grupos de elasmossaurídeos, que se baseia principalmente nas proporções desses ossos.
O padrão geral para o grupo são vértebras alongadas, com algumas variações nessa razão de comprimento e altura em grupos mais especializados. Por exemplo, os elasmossauríneos, que compõem o grupo mais abundante no Hemisfério Norte (principalmente o Mar Interior Ocidental, que banhava onde hoje é grande parte o interior dos EUA), apresentavam suas vértebras extremamente alongadas, se assemelhando a latas de refrigerante. Já os weddellonectianos, que se distribuíam no Hemisfério Sul (nos mares que banhavam a América do Sul, África, Austrália, Nova Zelândia e, claro, a Antártica), apresentavam vértebras proporcionalmente mais curtas. Porém, perto do fim do Cretáceo, grande parte dos weddellonectianos se extinguiram e apenas uma linhagem permaneceu até o fim da era dos dinossauros: os aristonectíneos. Esse último grupo é caracterizado por seu pescoço extremamente reduzido, sendo os mais curtos dentre os elasmossaurídeos e cujas vértebras assumiam um formato mais próximo ao discoide.
Na Cretáceo da Antártica, os fósseis de vertebrados mais numerosos são, em disparado, linhagens mais antigas de weddellonectianos ou de aristonectíneos. Porém, grande parte dos achados desses animais na Antártica compreendem somente vértebras isoladas, que carecem de feições anatômicas para uma caracterização mais acurada dentre os grupos de elasmossaurídeos, restando apenas a análise das proporções das vértebras como característica para sua identificação. Esse tipo de material foi justamente o encontrado pela mencionada expedição.
Através do estudo das proporções das vértebras nos diferentes grupos de elasmossaurídeos, foi possível traçar e corroborar alguns padrões observados em seus diferentes clados (grupos de organismos originados de um único ancestral comum exclusivo). Ao longo do crescimento desses animais, a diferença marcante está no alongamento das vértebras cervicais. Enquanto em elasmossauríneos esse alongamento acarretaria essas vértebras em forma de lata, nos weddellonectianos, teríamos um crescimento mais contido, sendo a vértebra mais curta no comprimento. Já nos aristonectíneos, eles teriam um padrão de alongamento semelhante ao longo do desenvolvimento, mas as formas juvenis seriam mais altas do que alongadas, ou seja, as formas juvenis começariam em um ponto de partida diferente do comum dentre os weddellonectianos. Essa diferença seria um importante fator para o formato único dos aristonectíneos dentro desse grupo.
Tendo tudo isso em vista, foi possível avaliar que as vértebras encontradas pertenceram a um elasmossauríneo adulto devido, principalmente, ao seu formato extremamente alongado. Esse é o registro mais ao sul para esse grupo e mostra que a fauna de elasmossaurídeos da Antártica era mais diversa do que se pensava. Além disso, é um indicativo de que os elasmossauríneos poderiam realizar migrações entre os Hemisférios Norte e Sul.
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