Com o uso de um celular, o cacique da aldeia Maronal, Alfredo Barbosa Filho, o Alfredinho, do povo Marubo, registrou em detalhes rastros deixados por caçadores que estão invadindo a região do Alto Rio Curuçá, na Terra Indígena Vale do Javari, no Amazonas, divisa com Peru e Colômbia. Armadilhas, sacos de lixo e de sal, ossos de animais, pilhas, latas e garrafas foram abandonados pela floresta sem a menor preocupação em ocultar provas da invasão.
Mas, mais preocupante do que a invasão em si é que o cacique também localizou na mesma área indícios e vestígios deixados por indígenas isolados. Os sinais dos isolados foram avistados nas proximidades da comunidade Komãya, também do povo Marubo.
O Vale do Javari é o território indígena do país com maior registro de grupos em isolamento voluntário, segundo a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai). São ao menos 19 grupos comprovados. No território, a Funai mantém cinco bases etno-ambientais de proteção aos isolados. Uma delas é base Curuçá.
O cacique Alfredinho diz temer pela segurança dos indígenas isolados com a invasão na terra indígena. “Se eles se encontrarem com os caçadores? Vai dar problema, né? Eles matam, eles dão tiro. Eu fico preocupado com eles”, disse o cacique à Amazônia Real. O cacique viajou durante seis dias de sua aldeia até a cidade de Atalaia do Norte para reunir-se nesta semana com lideranças da União dos Povos Indígenas (Univaja) e relatar as denúncias.
Geovan Marubo, que acompanhou o cacique até a floresta no início de março, alerta para a questão da presença de armadilhas para caças, que são colocadas à noite pelos invasores. Ele afirmou que o grupo de isolados transitam na região desde a época da extração de seringa, quando o território ainda não era demarcado.
“Os isolados podem ter contato com essas armadilhas. Eles não sabem o que é isso aqui. Esse é um risco também”, disse ele à Amazônia Real. A Amazônia Real ouviu o relato de Geovan através de uma tradução feita por outra liderança, Itamar Marubo, irmão do cacique.
Os registros dos caçadores foram feitos no dia 11 de março, quando o cacique Alfredinho, junto de outros membros da aldeia, foi buscar um bote de alumínio que havia comprado no município de Cruzeiro do Sul, no Acre. O líder indígena receberia o bote no igarapé Velho Júlio. De lá, seguiria pelo igarapé Itaúba até desaguar na cabeceira do rio Curuçá. As armadilhas foram encontradas, segundo Alfredinho, a pouco mais de 90 quilômetros da aldeia Maronal.
No caminho, encontramos o que os caçadores deixaram. Tinha armadilha no caminho onde passa paca. Perto delas, encontramos uma bolsa, um saco plástico cheio de ossos jogados perto do igarapé. Não podíamos deixar esse material lá, com saco de fibra, sal… Tocamos fogo nesses materiais”, explica Alfredinho.
À medida em que avançavam no caminho, os indígenas encontravam outros vestígios da passagem dos caçadores pelo caminho onde transitam antas e queixadas. “Deixaram pilha velha no chão, uma lata de conserva furada. Tinha um balde, um vidro seco de álcool, uma pequena bolsa de tabaco. Achamos um macaco morto, deixado no meio do caminho. Havia muitos ossos no meio do caminho”, descreve o cacique. “Moramos um pouco mais abaixo e eles jogam tudo no rio. Aquela água desce para onde moramos.” Os indígenas encontraram até mesmo um tapiri (abrigo provisório feito de palha) usado pelos caçadores.
O cacique Alfredinho e o líder Itamar Marubo cobram da Funai e da Polícia Federal medidas mais efetivas e permanentes para retirar os invasores da terra indígena. “Essa é uma questão para a Polícia Federal. Neste momento tem indígena no comando da Funai. A Funai precisa agir. A Polícia Federal também”, alerta Itamar.
Área com muita caça
Segundo Geovan, os caçadores estão chegando cada vez mais perto da cabeceira do rio Curuçá, avançando sobre a área protegida dos indígenas. “A gente vê e não é de hoje. Eles estão aqui há muito tempo, só que agora, estão passando do limite da nossa terra demarcada. Já estão entrando”, denuncia.
Geovan aponta que os caçadores atuam durante o inverno amazônico, período que vai de dezembro a maio. “Neste tempo, eles estão andando muito. Eles só param no verão. No verão tudo fica seco, o igarapé, o rio”, explica Geovan.
Alfredinho conta que, quando os caçadores passam, eles costumam levar uma grande quantidade de animais.
Eles escolhem lugares que têm muita fartura de caça. E quando eles vão, não é pouca a caça que eles levam. Por isso eles vão lá”, explica.
O líder Itamar Marubo, também morador da aldeia Maronal, alerta para o risco de a caça começar a ficar escassa. “Quando tem festa e vamos caçar por lá, já começa a parecer que não tem mais (animais) como antes. A caça está acabando. Eu não estou pensando no hoje. Eu tenho filho aqui também que vai precisar (da caça). Meus filhos, meus netos vão precisar. Não queremos que acabem com os animais. Não é pouco o que eles levam”, desabafa.
Atividade ilegal
De acordo com os indígenas, os animais capturados são abatidos e vendidos por caçadores brasileiros. Parte da caça é comercializada na própria cabeceira do rio Curuçá, no igarapé Itaúba, na comunidade Cama. Mas a maior parte vai para o município de Cruzeiro do Sul, no Acre. “Eles matam, salgam os animais e vendem”, descreve Itamar.
A Lei nº 9.605/1998, que dispõe sobre crimes ambientais, traz em seu artigo 29 a proibição de matar, perseguir, caçar, apanhar, utilizar espécimes da fauna silvestre, nativos ou em rota migratória, sem a devida permissão, licença ou autorização da autoridade competente, ou em desacordo com a obtida. A pena de detenção é de seis meses a um ano e multa.
Ausência do Estado
Ativista e liderança do Vale do Javari, Yura Marubo, destaca que o Vale do Javari se tornou um lugar muito distinto por conta dos povos isolados, que estão presentes nas regiões do rio Curuçá, rio Jaquirana, rio Ituí, Taquaí, onde vão fazer uma movimentação migratória. Mas, segundo ele, hoje esses indígenas andam, pescam e caçam com muito medo. “Isso é um problema que, até o momento, ninguém está conseguindo resolver”, conta.
Foi no Vale do Javari que, em junho de 2022, o indigenista Bruno Pereira e o jornalista britânico Dom Phillips foram assassinados, em uma emboscada cometida por invasores da terra indígena. Eles faziam parte de um grupo de pescadores ilegais e já foram denunciados na Justiça, que ainda não julgou o caso.
Para Yura, a morte de Bruno e Dom não reduziu os problemas enfrentados pelos indígenas e muitos já se esqueceram do trágico episódio. “A entrada dos pescadores, dos caçadores, não parou, não freou. Simplesmente continuam os mesmos problemas de antes, durante e pós morte de Bruno. A prisão do Colômbia (considerado como mandante do duplo homicídio), a prisão dos executores, isso não mudou absolutamente nada. A cadeia é muito mais abrangente, muito mais forte em relação à exploração do que você possa imaginar”, conta.
Yura ressalta que não há como fazer uma fiscalização apenas com os agentes da Univaja, a União dos Povos Indígenas do Vale do Javari. “É impossível. Precisamos que o Estado brasileiro faça o seu trabalho, porque senão os povos isolados vão acabar morrendo por conta desse contato prematuro. E a fonte desses problemas são justamente pescadores e caçadores, inclusive com anuência de lideranças indígenas das comunidades que fazem essa fronteira entre a terra demarcada e a não demarcada”, afirma.
Para o líder indígena, as autoridades precisam realizar ações permanentes e mais efetivas. “A inação do governo é algo que está nos deixando de uma forma muito triste, inclusive por conta deste processo de criação de ministério, da inclusão de povos indígenas, ou lideranças indígenas dentro do governo, assumindo pastas importantes, mas é só discurso, só discurso. Quando nós precisamos de uma ação mesmo, isso não existe. Nem projetos. O que a gente tem aí são falácias, reuniões, essas coisas que não funcionam”, detona.
De acordo com Yura, o próprio governo não está ajudando pastas como a do Ministério dos Povos Indígenas, a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), com recursos logísticos e adoção de ações mais prolongadas. “Passou um ano (do governo) e continuam com planejamentos. Pessoas sérias poderiam fazer isso em 90 dias, mas não. Ali estão amadores que estão prejudicando toda a cadeia de trabalho. E é por conta disso que caçadores, pescadores, narcotraficantes e garimpeiros estão adentrando de forma muito veemente e sem medo de punições ou de uma fiscalização do governo federal. É incrível, mas isso está acontecendo, infelizmente”, finaliza.
O que dizem as autoridades
A Amazônia Real procurou a Polícia Federal, no Amazonas e em Brasília, para indagar sobre que ações de fiscalização que o órgão está realizando no Vale do Javari, mas até a publicação da reportagem não obteve retorno. A Funai também foi procurada, mas também não retornou. Caso os órgãos se manifestem, a reportagem será atualizada.
Em março de 2023, a Polícia Federal anunciou a instalação de uma base no Vale do Javari, que ficaria sediada em Atalaia do Norte. Uma das últimas ações divulgadas pelo governo federal foi a destruição de balsas de garimpo, na região dos rios Jandiatuba, Boia, Igarapé Preto, Jutaí e Igarapé do Mutum. Essa área fica mais ao sul da Terra Indígena Vale do Javari, que tem 8.544.482 hectares e é a segunda maior do país.
No início deste ano, o governo apresentou um plano de proteção para o território e que ele se daria entre fevereiro e junho.
Preocupados com as invasões no território, os próprios indígenas tomaram medidas por conta própria, como a criação da Equipe de Vigilância da Univaja (EVU) e o grupo Guerreiros da Floresta, uma equipe independente de fiscalização criada pelos indígenas Kanamari.