Mais de 10 mil colisões veiculares contra animais silvestres. Esse foi o número registrado em estudo de pesquisadores do Instituto de Conservação de Animais Silvestres (Icas) após a análise dos dados de três anos (2017-2020) de monitoramento em rodovias de Mato Grosso do Sul. Desse índice, 40% envolveram animais que poderiam causar danos materiais significativos – e igualmente perigosos – para seres humanos, como o tamanduá-bandeira (Myrmecophaga tridactyla) e a anta (Tapirus terrestris).
Para cobrar soluções e protestar contra a realidade que aflige a fauna do estado, organizações ambientalistas depositaram animais mortos na sede do Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (Dnit), em Campo Grande (MS), nesta segunda-feira (15). “É importante lembrar que estes acidentes ameaçam também a vida humana”, disse Luciana Leite, coordenadora geral da Chalana Esperança, organização que realizou a intervenção na sede da autarquia federal juntamente com o Instituto SOS Pantanal, Instituto Libio e o movimento Fridays for Future Brazil.
“O Mato Grosso do Sul, por exemplo, entre abril de 2013 e novembro de 2018 registrou 470 atropelamentos de anta em 32 rodovias estaduais. Neste período, foram 55 pessoas feridas e 23 óbitos resultantes destas colisões com antas. Além do risco à vida e à integridade física dos motoristas, os acidentes também provocam prejuízos materiais”, completou Leite.
As carcaças utilizadas no protesto, contam as organizações, foram coletadas nos últimos meses na BR-262, também conhecida como “rodovia da morte” — justamente pelo alto índice de atropelamento de fauna. O ato dá início à campanha Estradas Seguras Para Todos, que procura chamar a atenção do poder público para a colisão entre veículos e animais silvestres nas estradas nacionais.
Segundo a coordenadora geral da Chalana Esperança, motoristas que cumprem suas obrigações legais e fiscais têm veículos danificados por conta da negligência e inação do poder público. “Esta falta de vontade política e investimento tem custado caro aos motoristas e à vida silvestre. E nós, na condição de cidadãos e biólogos da conservação, estamos cansados de pagar esta conta”, enfatizou Luciana.
BR-262: a rodovia da morte
A campanha denuncia, sobretudo, a inação do Dnit diante da realidade vivida pela fauna do estado na BR-262, rodovia gerida pela autarquia federal que corta o Pantanal sul-mato-grossense – o estudo que abre este texto também monitorou trechos da rodovia. Como mostrou ((o))eco, uma onça-pintada foi encontrada morta na BR-262 no início do ano. Mais recentemente, outro felino da mesma espécie também foi morto na rodovia.
Segundo o Instituto Homem Pantaneiro (IHP), pelo menos 17 onças-pintadas morreram atropeladas na BR-162 entre 2016 e janeiro de 2023. A campanha denuncia que o Dnit já possui relatórios com dados robustos sobre atropelamento de fauna, além de um plano de mitigação já estruturado para a rodovia. Entretanto, nada teria sido feito até então.
Em carta, as organizações endereçam três exigências à autarquia federal: a implementação do plano de mitigação de colisões veiculares com fauna já submetido ao Dnit para a BR-262; a consideração por novos empreendimentos rodoviários e futuros investimentos de estradas mais seguras para todos, seguindo orientações consistentes baseadas em evidências técnico-científicas – como o manual desenvolvido pelo governo de Mato Grosso do Sul em parceria com o Icas –; e que as considerações feitas também sirvam à construção da Rota Bioceânica.
Para coletar assinaturas e endossar o pedido e apelo ao poder público, a campanha Estrada Segura para Todos também lançou um abaixo-assinado. A plataforma contava com cerca de 200 assinaturas nesta tarde.
“Um dos argumentos para a inação do Dnit é o custo da implementação de medidas de segurança nas nossas estradas. Entretanto, o custo desses acidentes está atualmente sendo pago pelos motoristas e pela nossa fauna. A estimativa é que os acidentes custam, em média, aos motoristas brasileiros que sofrem acidente com a fauna silvestre, cerca de R$4,5 mil por colisão, com valores variando a depender do tamanho do animal e velocidade do veículo. Por ano, os prejuízos somados ultrapassam os 5 milhões de dólares”, diz a carta, que também foi assinada pelo Observatório Pantanal, Grupo de Resgate de Animais em Desastre (Grad), Icas, Instituto Espaço Silvestre, Onçafari e outras instituições e coletivos que juntos somam mais de 50 organizações.
O que diz o Dnit
A reportagem entrou em contato com o Dnit para questionar sobre os pedidos feitos no documento e pela intervenção desta segunda. Por meio de nota, a assessoria da autarquia federal informou que, para os casos de atropelamento de fauna nas rodovias federais, investe nos Programas Ambientais de Atropelamento de Fauna, “no qual a sensibilização, o monitoramento e as medidas mitigatórias são abrangidas”.
Para isso, segundo o Dnit, são identificadas previamente as características faunísticas e interação rodoviária. “Por meio de estudos para verificar a presença de hábitats especiais e espécies de vertebrados a eles associadas, sítios reprodutivos, áreas de aglomerações da fauna, bem como a adoção de medidas como sinalização nas rodovias, passagens de fauna, (adaptadas às necessidades) artes especiais, corredores ecológicos e ações socioambientais”, acrescentou.
No caso da BR-262, em Mato Grosso do Sul, o Dnit informou que foram instalados redutores de velocidade, placas de sinalização, cercas condutoras e passagens superiores de fauna. “Nesse trecho, a rodovia passa pela região do Pantanal sul-mato-grossense, onde o monitoramento dos casos de atropelamento da fauna demonstrou a necessidade de intervenção do poder público, visando a diminuição do conflito entre fauna e os veículos que trafegam pela rodovia”, explicou.
Por fim, a autarquia disse que está em andamento, por iniciativa da Superintendência Regional de Mato Grosso do Sul (SR/MS), a contratação de monitoramento dos atropelamentos no segmento entre Campo Grande (MS) e Anastácio (MS).
Sobre o assunto, o superintendente regional do Dnit em Mato Grosso do Sul, Euro Nunes Varanis Júnior, disse que o plano de mitigação de colisões veiculares contra fauna na BR-262 ainda não foi executado pela falta de avaliação e autorização do Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis).
“Ano passado apresentamos o plano de mitigação de acidentes de Aquidauana até Corumbá. Ele foi feito pela empresa Via Fauna. Agora, estamos esperando a aprovação do Ibama para saber se aquelas medidas propostas podem ser implementadas ou não”, disse o superintendente à mídia local.
Ibama responde
((o))eco procurou o Ibama para questionar se há previsão para a análise do plano de mitigação de atropelamento de fauna na BR-262. À reportagem, o órgão federal confirmou o recebimento do plano apresentado pelo Dnit. “O Ibama analisou o conteúdo apresentado e solicitou complementação de informações, que já foi apresentada”, disse em nota.
Neste momento, a equipe do órgão que é responsável por conduzir o licenciamento ambiental da rodovia analisa o plano de “forma prioritária”, sendo a autorização de sua execução “prevista para ocorrer ainda em maio”, informou.
Problema crônico no estado
“Esse problema é sistêmico, não se limita apenas à rodovia BR-262. Diversas outras estradas federais e estaduais pelo Mato Grosso do Sul acumulam acidentes envolvendo a fauna silvestre. Se o poder público não se sensibiliza com os milhares de animais mortos todos anos, deveriam ao menos se preocupar com as inúmeras vidas perdidas nestas rodovias”, denunciou o biólogo Gustavo Figueirôa, que é diretor de Comunicação e Engajamento do Instituto SOS Pantanal.
Nesse sentido, a campanha denuncia que o atropelamento de fauna persiste em toda a malha rodoviária estadual de Mato Grosso do Sul, sendo este problema agravado pela expansão crescente das obras nas estradas – o que, consequentemente, aumenta o fluxo de carros e caminhões em áreas de concentração de fauna silvestre. Como mostrou ((o))eco, o Fundo de Desenvolvimento do Sistema Rodoviário do Estado de Mato Grosso do Sul (Fundersul) movimentou R$ 4,75 bilhões entre 2015 e 2022. Apenas para 2023, o Fundo prevê R$ 1,4 bilhão, sendo R$ 1 bilhão (72%) para implantar, asfaltar e reformar rodovias.
A campanha alerta que não há informação sobre qual fração deste recurso foi utilizado para mitigação de colisões veiculares com fauna silvestre.
A inação e falta de transparência do Estrada Viva — programa do governo de Mato Grosso do Sul — também é outra pauta denunciada pelas organizações. Lançado oficialmente há cerca de sete anos, a iniciativa prevê o monitoramento e ações de redução de atropelamento de animais selvagens nas rodovias do estado. Entretanto, pouquíssimas ações mitigatórias teriam sido implementadas, denunciam as organizações.
O que diz o governo do Estado
((o))eco entrou em contato com a Agência Estadual de Gestão de Empreendimentos (Agesul) de Mato Grosso do Sul, que foi quem desenvolveu o programa Estrada Viva. À reportagem, a Agência disse que a iniciativa trabalha em dois eixos: monitoramento de rodovias e novos projetos rodoviários. “Atualmente trechos de nove rodovias são monitorados pelo Estrada Viva: MS-040, MS-382, MS-178, MS-339, MS-345, MS-450, MS-180, MS-473 e MS-258”, informou a Agesul, por meio de nota.
Através desse trabalho, disse a Agência, técnicos do programa contabilizam espécies atropeladas para identificar os principais pontos de passagem dos animais e propor medidas preventivas de mitigação. “Na MS-040, que liga Campo Grande a Santa Rita do Pardo, por exemplo, esse monitoramento já resultou na implantação de cercas de passagem de fauna no km 30, além da instalação de placas de sinalização vertical e de LRVs (Linhas de Redução de Velocidade)”, acrescentou.
Na MS-382, que liga Guia Lopes da Laguna à Bonito, a Agesul disse que foram instaladas cercas guias condutoras de fauna silvestre. “No trecho entre os rios Formoso e Formosinho”, explicou a Agência à reportagem.
Quanto a novos projetos rodoviários, a Agesul disse que já utiliza o manual de orientações técnicas para mitigação de colisões veiculares com a fauna silvestre nas rodovias de Mato Grosso do Sul, que foi desenvolvido pelo Estado em parceria com o Icas.
“Entre as obras que já utilizam as diretrizes do manual estão a MS-345 (Estrada do 21), a MS-382 (Baía das Garças) e a Rodovia do Turismo, todas na cidade de Bonito. Nessas três rodovias estão sendo instalados dispositivos de segurança”, concluiu a Agência.
“Temos de dar um basta”
Para o ativista do movimento Fridays for Future Brasil, Gabriel Adami, “as pessoas não podem mais aguentar caladas a pavimentação das rodovias sem as devidas medidas de mitigação no Mato Grosso do Sul”. “Temos de dar um basta nessa tragédia e o ato em defesa de Estradas Seguras Para Todos é, justamente, uma das vozes coletivas que se propõe a isso, a escancarar o problema por meio da mobilização da sociedade civil”, declarou.
Segundo os idealizadores da campanha “Estradas Seguras Para Todos”, a intervenção das carcaças dos animais mortos foi o primeiro passo para trazer à tona a realidade que aflige centenas de quilômetros da BR-262. A carta encaminhada ao Dnit e o abaixo-assinado dão seguimento a esse objetivo, assim como a denúncia quanto à sistemicidade do atropelamento de fauna nas demais rodovias do estado — parte delas estaduais.
“É desolador assistir tantos animais atropelados nas estradas todos os dias. O pior é saber que esse número é subestimado, pois mais da metade dos animais morrem longe da pista e raramente são encontrados. Já passou da hora de o poder público implementar as medidas de mitigação para evitar que nossa fauna continue sendo exterminada”, completou Raquel Machado, presidente do Instituto Libio.