Por Vera Maria Ferreira da Silva
Bióloga, mestre em Biologia de Água Doce e Pesca Interior e doutora em Mammalian Ecology and Reproduction pela Universidade de Cambridge (Inglaterra). É pesquisadora do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa) e coordena o Projeto Boto na Reserva de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá e o Projeto Mamíferos Aquáticos da Amazônia, da Associação dos Amigos do Peixe-boi (Ampa)
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Recentemente, participei de uma expedição aos rios Ituxi e Endimari, que fazem parte da bacia do rio Purus, tributário da margem direita do rio Amazonas, para verificar a ocorrência de mamíferos aquáticos naquela região.
Essa área possui cinco cachoeiras e algumas corredeiras cuja intensidade varia com o nível das águas nas diferentes estações hidrológicas (enchente, cheias, vazante e seca) ao longo do ano. Pretende-se a construção de cinco PCH’s (Pequena Central Hidrelétrica ou usina hidrelétrica de pequeno porte, caracterizada por capacidade energética instalada superior a 3 megawatts – MW – e inferior a 30 MW, em que o reservatório não pode ser superior a 300 hectares). Caso sejam construídas, irão alagar extensa área de floresta primária, sendo que parte dessa área engloba largo trecho da margem da Floresta Nacional (Flona) do Iquiri.
Enquanto navegava nesses rios de exuberante vegetação ripária e rica biodiversidade à procura de vestígios de ariranhas e lontras e da presença de botos e tucuxis, não pude deixar de imaginar o impacto da alagação desses empreendimentos e o que isso equivaleria em área desmatada.
Muito se fala sobre a perda de grandes áreas de floresta na Amazônia por desmatamento, exploração madeireira e fogo, com cálculos de imagens de satélite bastante precisos. Porém, a mídia em geral e a sociedade brasileira, talvez pelo mito da produção de energia limpa e por acreditar na necessidade infinita de energia, pouco comenta sobre as perdas de extensas áreas de floresta primária para os alagamentos provocados pelos empreendimentos hidroelétricos existentes e os programados para a região Amazônica.
Além das 191 hidrelétricas já existentes nos rios da região, o plano energético do Brasil prevê a construção de mais de 246 de diferentes tamanhos e de produção energética variada em rios da bacia Amazônica.
Em 2012, Finer & Jenkins publicaram um trabalho que mostra a projeção de mais de 151 barragens a serem construídas nas cabeceiras de rios Andinos, rios que contribuem diretamente na formação do que conhecemos como a bacia Amazônica, a maior bacia hidrográfica do mundo.
A produção energética mínima para essas barragens é de 2 MW. Se construídas, estima-se que 60% dessas represas certamente afetarão a conectividade existente entre as cabeceiras dos rios Andinos com as bacias dos rios nas áreas mais baixas da região. As consequências seriam a drástica redução do aporte de água e a alteração do sistema de cheias e vazantes dos rios que alimentam o fluxo hídrico e enriquecem as várzeas e os igapós desse magnífico bioma. O sistema de barragens do rio Madeira, por exemplo, prevê a construção de uma grande hidrovia para escoar a produção de soja do Brasil para a China, na perspectiva de baixar o custo do transporte atual do grão, mas cobrando altos custos das áreas de florestas da Amazônia e do patrimônio natural do Brasil.
Dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) mostram que desde o começo dos anos 2000 já foram desmatados na Amazônia cerca de 62 mil km2 de florestas. Isso equivale a 8,4 milhões de campos de futebol. Só entre agosto de 2019 e julho de 2020, foram derrubadas o equivalente a seis vezes o tamanho do município de São Paulo de área de florestas na Amazônia. Mais de 17% da floresta amazônica já foi desmatada e estamos atingindo o limite da sua capacidade de regeneração. Especialistas alertam que um pouco além desse percentual não existe possibilidade de retorno de recuperação e manutenção da Amazônia.
Na tabela abaixo, apresento alguns exemplos do que foi estimado como área de alagação por barragens em alguns dos principais rios da região, o que isso representa em termos de produção de energia e de perda de cobertura vegetal, sem considerar a perda da biodiversidade e da geração de outros impactos nessas áreas. A usina hidrelétrica de Balbina, por exemplo, construída em 1989, foi considerada o maior desastre ambiental na época devido à extensa área alagada, com baixa profundidade: cerca de 2.360 km2 de reservatório para gerar, em média, apenas 112.2 MW (Fearnside, 1989) ou 250 MW como apresentado no site Wikipédia.
Na década de 2010, duas mega hidrelétricas foram construídas no rio Madeira, um dos tributários mais importantes do rio Amazonas, as usinas hidrelétricas (UHE) de Jirau e a de Santo Antônio. Os reservatórios dessas duas barragens, juntos, alagaram cerca de 908 km2 de floresta. O complexo do rio Madeira já comporta uma série de usinas de diferentes capacidades, mas estão previstas a construção de outras usinas a serem incluídas nesse complexo energético como, por exemplo, a UHE Binacional com previsão de gerar de 5 a 6 MW de energia e contribuir na formação da hidrovia do Madeira.
Nesse momento, está em andamento estudos para a construção de 44 usinas na bacia dos rios Tapajós-Juruena, sendo duas delas mega usinas. Essa malha de rios, denominada Complexo Tapajós, engloba as sub-bacias dos rios Teles-Pires, Juruena e o Tapajós. O Tapajós é um rio cuja nascente encontra-se no Escudo Brasileiro e é o último tributário de águas claras da margem direita do rio Amazonas que ainda não sofreu a interferência de megaempreendimentos. Depois de construídas, considerando somente as oito barragens listadas na Tabela 1 que deverão alagar uma área de pelo menos 724,7 km2 de floresta e produzir cerca de 7.771 MW de eletricidade, uma área muito maior será alagada e sua produção energética incorporada à malha energética do Brasil, fornecendo eletricidade para toda a região Sul e a Sudeste.
Somente esses empreendimentos juntos (tabela acima) irão gerar uma área alagada equivalente a 4.941,27 km2, eliminando grande parte da biodiversidade das regiões afetadas.
Os efeitos deletérios do barramento de rios já são de amplo conhecimento. As barragens modificam o sistema hídrico de lótico (com fluxo de água constante) para lêntico (caracterizado por águas paradas e sem corrente). Alteram a produção primária de macrófitas e da vegetação ripária. Bloqueiam o movimento dos peixes migratórios, levando à extinção várias espécies. Reduz a oferta alimentar dos animais piscívoros. Aumentam o volume de sedimentos e alteram outros parâmetros limnológicos. Além disso, fragmentam populações e isolam grupos de mamíferos aquáticos, como o boto-vermelho. Eliminam o substrato usado pelas ariranhas para a construção das suas tocas. Reduzem, à jusante, as macrófitas aquáticas usadas pelos peixes-bois para sua alimentação e de peixes na alimentação de outros golfinhos e espécies que os utilizam na sua dieta.
Isso, sem mencionar os impactos socioambientais, o deslocamento de pessoas tanto à montante quanto à jusante da barragem, o alagamento de áreas protegidas (unidades de conservação) e de terras indígenas, além da contribuição nas mudanças climáticas decorrente do grande volume de água represado que pode alterar o regime de chuvas na região, provocar o aumento da emissão de metano decorrente da vegetação em decomposição, entre outros.
Os rios e corpos d’água são bens públicos e patrimônio nacional. Isso porque a água é um recurso natural de disponibilidade limitada, dotado de valor econômico e parte do meio ambiente. Igualmente reza o Código Florestal, em que as florestas nativas são bem jurídico ambiental e que têm valor intrínseco, próprio e independente de suas utilidades: “valor de existência” e não apenas “valor de uso”. A Constituição Federal de 1988, ao estabelecer o meio ambiente como bem jurídico tutelado, deixou expresso que ele é bem de uso comum do povo, ou seja, que não pertence a uma entidade privada ou a uma entidade pública, mas sim a toda uma coletividade indeterminada.
A apropriação desses bens para beneficiar projetos individuais ou que tragam prejuízo à coletividade ou às gerações futuras precisa ser muito bem avaliada e severamente combatida ou estaremos sempre sob a ameaça da perda do bioma Amazônico, seja por desmatamento, seja por alagamento.
Referências
– Fearnside, P.M. (1989). Brazil’s Balbina Dam: Environment versus the legacy of the pharaohs in Amazonia. Environmental Management 13(4): 401-423.
– Finer, M. and Jenkins, C.N. (2012). Hydroelectric dams in the Andean Amazon. PlosOne 7(4):e35126
– Uma Visão de Conservação para a bacia do Tapajós. WWF Brasil. Brasília, 2016.
– Jornal da USP
– Âmbito Jurídico
– Conexão Planeta
– Justiça e Cidadania
– Wikipedia
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