Por Ricardo Izar
Deputado federal (Progressistas-SP)
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Qual é a história por trás de um projeto de lei? Quais obstáculos precisam ser vencidos e quais movimentos acabam sendo necessários para sua aceitação entre colegas parlamentares e sua sanção presidencial? As linhas a seguir fazem um breve relato da tramitação ainda em curso do projeto de lei de minha autoria, o PL nº 6.799/2013 (hoje denominado PL nº 6.054/2019 no seu retorno à Câmara dos Deputados do Senado), conhecido popularmente como #AnimalNãoÉCoisa. Descrever sua tramitação reúne elementos interessantes que, observados em conjunto, derrubam de maneira pedagógica a ideia, em geral equivocada por parte do grande público, de que o trabalho legislativo de um parlamentar, em um único mandato, seja simples, tranquilo e de fácil implementação. Antes fosse assim.
No ano de 2013, ao longo de meu primeiro mandato como deputado federal (2010-2013), me vi envolvido e engajado de forma intensa com algumas demandas da chamada “proteção animal”. Naquele ano, durante o mês de outubro, ocorria o resgate de mais de uma centena de cães da raça beagle, ratos, camundongos e coelhos submetidos a práticas científicas abomináveis no então famigerado e famoso Instituto Royal, em São Roque (SP). Esse evento, sem sombra de dúvidas, determinou um antes e um depois na luta por direitos aos animais no Brasil. Como resultado, apresentei naquele mesmo mês um projeto de lei que busca(va) a proibição do uso de animais em testes cosméticos (PL nº 6.602/2013) – prática já abolida há muitos anos na União Europeia. Infelizmente, esse projeto de lei encontra-se até hoje estacionado no Senado, na Comissão de Assuntos Econômicos. Isto é: já se foram oito anos de tramitação legislativa com perspectivas tímidas de sua conclusão a curto prazo. Pior para os animais.
No mês de novembro daquele mesmo ano, estimulado pelo mesmo espírito de luta por um aumento na proteção de direitos fundamentais dos animais não-humanos, protocolei a proposta legislativa nº 6.799/2013, vulgo #AnimalNãoÉCoisa. Seu objetivo era simples, porém amplo: a adoção de um regime jurídico especial para os animais domésticos e silvestres, qual seja, aquele que reconheceria nesses uma personalidade jurídica própria (sui generis), qualificando-os a partir de então como sujeitos de direitos. Tal mudança mostra-se necessária uma vez que o Código Civil brasileiro reconhece direitos de personalidade apenas a humanos (pessoa natural) e empresas (pessoa jurídica). Todo o resto é considerado um bem, uma coisa. Neste caso, animais são considerados bens móveis (semoventes), ou seja, coisas suscetíveis de movimento próprio. Esse é o ponto central do projeto de lei aqui em discussão: acrescentar um parágrafo único ao artigo 82 do Código Civil brasileiro, esclarecendo que a definição de bens móveis (ou coisas) não se aplica aos animais não humanos, sendo necessário reconhecê-los, a partir de então, como sujeitos de direitos despersonificados – isto é, os animais deixariam de ser considerados meras coisas dotadas de movimento, ao mesmo tempo em que não passariam a ser considerados pessoas naturais, como os seres humanos.
Teríamos, portanto, uma categoria intermediária entre coisas e pessoas, algo a meu ver justo. A ideia de alterar um único artigo do Código Civil brasileiro encontra-se também harmonizada com o moderno reconhecimento científico da natureza biológica e emocional dos animais não-humanos e com o princípio presente no artigo 225, parágrafo 1o, inciso VII da Constituição Brasileira, qual seja, aquele que impõe ao Poder Público “proteger a fauna e a flora, vedadas, na forma da lei, as práticas que coloquem em risco sua função ecológica, provoquem a extinção de espécies ou submetam os animais a crueldade”. Diante do fato de que animais não-humanos são seres sencientes, sensíveis, capazes de sofrimento, e do fato de que não é possível ser cruel com uma coisa, a alteração do Código Civil permitiria que eles pudessem gozar, a partir de então, da tutela jurisdicional do Estado em caso de violação de seus direitos fundamentais. Submetido à Mesa Diretora da Câmara dos Deputados e à Coordenação das Comissões Permanentes, o projeto de lei #AnimalNãoÉCoisa foi encaminhado para análise de seu mérito em caráter conclusivo na Comissão de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável (CMADS) e na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJC).
Quando na CMADS, o voto do relator considerou o projeto de lei da mais alta relevância e oportunidade, sendo contudo defendida a apresentação de um substitutivo que ampliava o escopo da alteração prevista pela proposta: ao invés de vigorar apenas para os animais domésticos e silvestres, a alteração proposta seria aplicada a todos os animais não-humanos. A Ciência atesta que os animais não-humanos, assim como nós, possuem sentimentos, memória, níveis de inteligência, capacidade de organização, entre outras características que os aproximam mais a nós do que de uma simples coisa. Convenhamos: um animal não-humano não pode ser equiparado a um copo de plástico, a uma cadeira de ferro, a um lápis. A Ciência demonstra claramente que nosso marco jurídico se mostra inadequado e obsoleto. Países como Suíça, Alemanha, Áustria, França e mais recentemente a Nova Zelândia já alteraram seus códigos no sentido de reconhecer que os animais não-humanos necessitam de uma classificação sui generis, que possibilite torná-los detentores de direitos fundamentais (o direito à vida e o direito de não sofrer, por exemplo).
Como parte importante do saudável e necessário debate democrático acerca das propostas legislativas em curso, em junho de 2015 – já em meu segundo mandato (2014-2017) -, foi realizado em Brasília o I Simpósio Nacional das Comissões de Direitos Animais da OAB, organizado e realizado pela Frente Parlamentar Mista em Defesa dos Direitos Animais. Nesse encontro, o qual contou com a participação de dezenas de operadores do direito representantes das seccionais da OAB de todo o Brasil, foi discutida extensivamente a pertinência do projeto e sua constitucionalidade acerca da natureza jurídica dos animais na forma como foi proposta. Não por menos, o projeto de lei #AnimalNãoÉCoisa recebeu em 2017, na CCJC da Câmara dos Deputados, o voto pela sua constitucionalidade, juridicidade e emprego de boa técnica legislativa, tendo sido assim aprovada em seu mérito.
Em abril de 2018 (durante meu terceiro mandato: 2018-2021), o PL #AnimalNãoÉCoisa foi remetido para apreciação de sua matéria no Senado, sofrendo, como é comum, renumeração nessa casa legislativa para o código PLC nº 27/2018. No Senado, em novembro de 2019, motivada por intensa campanha nacional nas redes sociais, essa proposta legislativa foi amplamente discutida em plenário, levantando alguma preocupação por parte da bancada ruralista. Na visão destes, reconhecer aos animais sua condição de sujeitos de direitos provocaria interferências com os negócios do setor. Tendo em vista que segmentos como o da pecuária utilizam de animais como commodities, sendo seu tratamento inegavelmente vinculado a situações de exploração, violência e morte, houve muita resistência dos parlamentares que representam esse setor em permitir a tramitação do projeto de lei.
Após intensas e sofisticadas discussões entre senadores e deputados federais, acordou-se entre ambas as partes que uma emenda ao texto aprovado na Câmara dos Deputados seria feita. E assim foi. A proposta legislativa passou a tramitar com a seguinte redação: “Artigo 3º – Os animais não humanos possuem natureza jurídica sui generis e são sujeitos com direitos despersonificados, dos quais devem gozar e, em caso de violação, obter tutela jurisdicional, vedado o seu tratamento como coisa.
Parágrafo único. A tutela jurisdicional referida no caput não se aplica ao uso e à disposição dos animais empregados na produção agropecuária e na pesquisa científica nem aos animais que participam de manifestações culturais registradas como bem de natureza imaterial integrante do patrimônio cultural brasileiro, resguardada a sua dignidade”.
Segundo entendimento do setor ruralista, essa ressalva na redação expressa pelo parágrafo único acrescido garantiria que certas categorias bem específicas de animais pudessem ser exploradas como de costume, sem restrições legais. Por razões estratégicas, aceitei essa alteração sobre o mérito já aprovado anteriormente, garantindo assim que o projeto de lei #AnimalNãoÉCoisa fosse aprovado no Senado e, na sequência, encaminhado de volta à Câmara dos Deputados no mesmo mês de novembro de 2019 para continuidade em sua tramitação.
É importante explicar ao leitor leigo nas minúcias do trâmite legislativo que, diante da emenda feita no Senado e sua aprovação do projeto em plenário, está já consolidado em termos processuais o mérito do projeto de lei #AnimalNãoÉCoisa: isto é, animais não-humanos tiveram aprovado pelas duas casas legislativas (Câmara dos Deputados e Senado) seu reconhecimento como sujeitos de direitos. No seu regresso à Câmara dos Deputados, o projeto de lei #AnimalNãoÉCoisa, agora renomeado para PL nº 6.054/2019, precisa ter discutido exclusivamente o mérito da emenda aprovada no Senado. A emenda pode ser aprovada, modificada, rejeitada pelos colegas parlamentares, mas não se pode alterar o mérito principal do projeto de lei, a saber: “Os animais não humanos possuem natureza jurídica sui generis e são sujeitos com direitos despersonificados, dos quais devem gozar e, em caso de violação, obter tutela jurisdicional, vedado o seu tratamento como coisa”.
Em seu retorno à Câmara dos Deputados, o PL #AnimalNãoÉCoisa encontra-se neste momento, agosto de 2021, na Comissão de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável. Atenção: o projeto de lei ingressou nessa comissão em novembro de 2019 e teve relator designado em dezembro do mesmo ano. O relatório é favorável à sua aprovação. Uma vez discutido e votado o mérito dessa emenda nessa comissão mediante o relatório constituído, seu próximo estágio será a CCJC (Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania) e, posteriormente, a sanção ou veto presidencial.
Mas – e esta é a principal lição deste relato – a vida de um parlamentar e de suas iniciativas legislativas não são fáceis. Qual não é a surpresa que a CMADS, presidida hoje por uma parlamentar que explicitamente coloca-se contra o projeto de lei, articula desde sua posse (março de 2021) a obstrução na tramitação dessa iniciativa usando das mais criativas e irregulares estratégias. Para citar apenas algumas: a) resistência em colocar o projeto de lei na pauta de discussão da Comissão; b) articulação com outros membros da Comissão – eminentemente ruralistas – para que o projeto receba votos negativos para pedidos de votação do mesmo; c) distorção do mérito do projeto de lei visando provocar temor e mau entendimento dos colegas parlamentares; e d) uso de suas prerrogativas enquanto presidente da comissão para dificultar o andamento do projeto de lei. Segundo declaração da própria, no que depender dela, esse projeto de lei não será colocado em discussão em seu mandato. Com isso, os 17 colegas parlamentares titulares e os 17 suplentes ficam impedidos de discutir e votar pela aprovação, modificação ou rejeição do parecer do relator.
A olhos vistos, essa é uma postura visivelmente não democrática. Quem são os prejudicados com esse tipo de conduta? A sociedade civil que espera de seus parlamentares lisura na tramitação de suas propostas legislativas e, claro, os animais não-humanos, que ficam cada vez mais distantes de alcançar aquilo que lhes é devido por ser eminentemente óbvio: a condição de serem vistos e reconhecidos como sujeitos de direitos.
Afinal, animais não são coisas.
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