A primeira chance dos animais silvestres

Diversos animais silvestres são apreendidos, resgatados e até mesmo entregues voluntariamente aos centros de triagem e reabilitação todos os anos. A publicação da organização Freeland, lançada em dezembro de 2023, revela o cenário do tráfico de animais silvestres descrito pelas notícias no Brasil. O relatório destaca que o Brasil é o país com maior número absoluto de animais descritos nas notícias que reportaram apreensão em ações de combate ao tráfico de fauna. Apenas considerando apreensões realizadas anualmente pela Polícia Rodoviária Federal, estima-se que 22 mil animais sejam apreendidos. No estado de São Paulo, a estimativa de animais apreendidos pela Polícia Militar Ambiental chega a 30 mil animais ao ano. Os números são assustadores e subestimados, já que refletem apenas os apreendidos. Sobre todos os outros que morreram ou que chegaram ao destino não há dados.

Os animais que sobrevivem podem ter uma segunda chance. Muitos retornam à natureza após cuidados e reabilitação. Enquanto outros, devido a condições físicas e/ou comportamentais, não podem ser soltos e são destinados a empreendimentos que acolhem fauna silvestre.

Contei aqui algumas vezes dos animais que acolhemos no Instituto Libio. São animais apreendidos ou resgatados, vítimas de maus-tratos e tráfico, em sua maior parte sem condições físicas e/ou comportamentais para serem soltos. Acreditamos que, mesmo em cativeiro, eles devem ter uma segunda chance para viver com dignidade e respeito. Proporcionamos alimentação adequada, cuidados veterinários, recintos amplos com enriquecimento ambiental e atividades para reduzir o estresse do cativeiro.

São muitas histórias que essas vidas trazem e muitas reflexões que fazemos a respeito disso. Quero compartilhar aqui uma que é muito emblemática para nós. Vovó Elza, é uma fêmea de macaco-prego (Spajus apella).

Ela passou a maior parte da sua vida sob os cuidados de alguém que a mantinha presa por uma corrente amarrada em sua cintura. Ela carrega essas marcas até hoje. Chegou até nós depois que a família decidiu enviá-la para um centro de triagem e reabilitação de animais silvestres (Cetras). Ela ganhou uma segunda chance e agora vive em um recinto amplo com outros macacos-prego. Sua alimentação e cuidados veterinários são prioridade, visando proporcionar-lhe uma vida melhor do que a que teve no passado. Seu ambiente também foi preparado para oferecer os estímulos ambientais necessários, proporcionando assim qualidade de vida.

A reflexão que desejo trazer neste artigo é sobre como podemos fomentar a primeira chance para os animais silvestres. Se esses animais não tivessem sido retirados da natureza, eles não precisariam de uma segunda chance. Muitos são retirados de seus hábitats naturais para atender ao desejo de determinadas pessoas que querem ter animais silvestres como animais como bichos de estimação. Existem programas incríveis de reabilitação e reintrodução de animais silvestres, com inúmeros profissionais e instituições dedicados ao desafio de reintegrá-los à natureza. No entanto, esses esforços poderiam ser direcionados para enfrentar outros desafios na conservação da fauna.

Mesmo na natureza, a fauna enfrenta uma série de riscos e impactos negativos, incluindo a redução de hábitats, conflitos com grandes empreendimentos, caça e muitos outros. Garantir o direito dos animais silvestres de viverem em seus ambientes naturais é fundamental para conservar a biodiversidade.

Por que as pessoas ainda querem ter animais silvestres como pets? 

Algumas pessoas desejam ter animais silvestres como pets devido ao exotismo, status social, atração estética, interesse específico em espécies ou fascínio por animais diferentes dos domésticos. Talvez aqueles que se rotulam como apaixonados pela fauna não compreendam o mal que fazem quando compram um animal silvestre. Aqui não entrarei na discussão se é ou não legalizado. Acredito que o ponto principal é que animais silvestres são adaptados para viver na natureza e não com o ser humano.  Vale lembra que animais domésticos evoluíram a milhares de anos para viver ao lado dos seres humanos. Diferente dos silvestres.

Além disso, muitas vezes não são considerados os riscos em ter um animal silvestre, o manejo especializado, os custos e ainda o tempo de vida. Um papagaio, por exemplo, chega a viver 80 anos. A posse de qualquer animal envolve responsabilidade.

Macaco NÃO é pet

A campanha lançada em 2021 pela Sociedade Brasileira de Primatologia, com o tema atemporal Macaco Não é Pet, traz razões para não se ter um macaco como bicho de estimação:

• Primatas são animais sociais e precisam interagir com outros da mesma espécie: interação humana NÃO substitui a convivência com outros macacos;
• Para serem vendidos, filhotes são separados de suas mães quando ainda são dependentes: no caso do tráfico, as mães frequentemente são mortas;
• Podem transmitir doenças para nós, e nós a eles;
• Precisam estar na natureza para cumprir seu papel ecológico;
• Exibição de pets estimula o tráfico.

A cartilha da campanha explora questões cruciais relacionadas à criação de macacos, destacando os perigos envolvidos. Alerta para os riscos associados à criação de macacos como animais de estimação, abordando de maneira sensível a substituição da figura materna e a separação de filhotes de suas mães.

Além disso, a campanha ressalta a inadequação de vestir macacos, enfatizando aspectos éticos e de bem-estar animal.

Também apresenta razões pelas quais o comércio legal não contribui para a conservação dos animais, tais como:

• O comércio legal foca nas espécies não ameaçadas, então não auxiliam na conservação ex situ (cativeiro);
• Nos primatas, as espécies mais comercializadas são saguis e macacos-prego, que não são animais ameaçados;
• Comércio legal pode ser usado para “esquentar” animais provindos do tráfico, fazendo com que essas espécies se tornem mais vulneráveis e ameaçadas;
• O comércio legal fomenta o tráfico, uma vez que quem compra exibe seus pets nas mídias, aumentando a busca por animais ilegais.

Como as redes sociais contribuem negativamente?

As redes sociais tornaram-se uma plataforma para amplificar e expor ainda mais os animais silvestres. Além de estimular o desejo de possuir um animal silvestre, a exposição contribui para o tráfico. Os animais são explorados de forma triste e cruel para promover canais e conquistar curtidas. A Coalizão de Crueldade Animal nas Redes Sociais (Social Media Animal Cruelty Coalition – SMACC, em inglês), criada por integrantes da entidade Asia for Animals Coalition (Coalização Ásia para os Animais), publicou em setembro de 2023 um relatório sobre esse tema. Esse levantamento global mostra a triste realidade de macacos usados em conteúdo na internet.

O documento revela a extensão do sofrimento desses animais, explorados para práticas cruéis que frequentemente passam despercebidas. Destaca também a urgência de abordar o tratamento bárbaro de macacos em nome da produção de conteúdo on-line. O relatório enfatiza a necessidade de conscientização e ação para mitigar os impactos negativos desse fenômeno crescente. A SMACC criou algumas dicas utilizando conhecimento sobre algoritmos de mídias sociais para limitar a propagação de conteúdo cruel e chamar a atenção das plataformas para o problema, veja:

Todos nós desempenhamos um papel social e ambiental fundamental para mudar esse cenário. Somos responsáveis pela PRIMEIRA CHANCE de animais silvestres viverem na natureza!

A primeira chance para esses animais está em nossas mãos e cada um de nós tem um papel crucial a desempenhar. Ao disseminar a conscientização, apoiar campanhas de conservação e recusar-se a compactuar com a exploração on-line, podemos ser a voz que defende aqueles que não podem se expressar.

A apreciação da beleza da fauna por meio de um ecoturismo responsável, sem a necessidade de ter um animal silvestre em casa, é um caminho valioso. Evitar curtir ou compartilhar conteúdos que explorem animais silvestres, denunciar práticas inadequadas e ser a voz dos animais são ações essenciais.

Animal silvestre não é pet! Macaco não é pet.

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