A caça no Brasil e a venda de armas. Contradição?

Dimas Marques
  • Dimas Marques

    Editor-chefe

    Formado em Jornalismo e Letras, ambos os cursos pela Universidade de São Paulo. Concluiu o curso de pós-graduação lato sensu “Meio Ambiente e Sociedade” na Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo com uma monografia sobre o tráfico de fauna no Brasil. É mestre em Ciências pelo Diversitas – Núcleo de Estudos das Diversidades, Intolerâncias e Conflitos da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, onde pesquisou a cobertura do tráfico de animais silvestres por jornais de grande circulação brasileiros. Atua na imprensa desde 1991 e escreve sobre fauna silvestre desde 2001.

    Fauna News
02 de fevereiro de 2012
Outro dia, recebi um e-mail com a seguinte pergunta: “Se a caça é
proibida no Brasil, por que lojas diversas vendem armas exclusivas para
caça?”.

Achei o questionamento válido e resolvi refletir sobre o assunto.

Na Lei de Crimes Ambientais (Lei nº 9.605/98), está claro:

“Art. 29. Matar, perseguir, caçar, apanhar, utilizar espécimes da fauna silvestre, nativos ou em rota migratória, sem a devida permissão, licença ou autorização da autoridade competente, ou em desacordo com a obtida:

        Pena – detenção de seis meses a um ano, e multa.”

Foto: pampasargentinas.com

Reserva de caça argentina: lazer?

Por outro lado, a Lei de Proteção à Fauna (Lei nº 5197/67) ainda está vigente e contém o seguinte trecho:

“Art. 6º O Poder Público estimulará:

a) a formação e o funcionamento de clubes e sociedades amadoristas de caça e de tiro ao vôo objetivando alcançar o espírito associativista para a prática desse esporte.”

Não sou advogado, mas essa aparente contradição gera confusão. A prova está no Sul do país.

A lei dos anos 60 fez com que no Rio Grande do Sul fosse praticada, até a década passada, a caça amadorística. Em 2005, em decisão motivada por uma ação civil pública da ONG União pela Vida contra o Ibama, que tramitou na Vara Federal Ambiental e Agrária de Porto Alegre, a Justiça reconheceu que as caças amadorista, recreativa e esportiva não podiam ser liberadas nem licenciadas no Estado do Rio Grande do Sul pelo Ibama.

O órgão ambiental federal e a Federação Gaúcha de Tiro recorreram. Após alguma disputa no judiciário, em 2008, nova decisão manteve a proibição da caça no estado – o único que mantinha a prática.

“A 2ª Seção do Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF4) determinou ontem (13/3) a proibição da caça amadora no Rio Grande do Sul. Ao julgar recurso interposto pela organização não-governamental União Pela Vida e pelo Ministério Público Federal (MPF), o colegiado considerou que não ficou comprovado o rigoroso controle da atividade por parte do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama). (…)

Thompson Flores (relator do processo na Seção, desembargador federal Carlos Eduardo Thompson Flores Lenz) considerou irrefutáveis as alegações do MPF, segundo o qual a caça amadorista não tem finalidade social relevante que a legitime. Além disso, o parecer ministerial argumentou que há suspeita de poluição ambiental resultante da prática, pois haveria emissão irregular de chumbo na biosfera. O metal tóxico, afirma o MPF, é encontrado na munição de caça e tem potencial nocivo, motivo suficiente para que o licenciamento da atividade fosse submetido a um Estudo de Impacto Ambiental que aferisse esse risco e as formas de evitá-lo.

A Procuradoria da República citou também um estudo realizado pelo departamento de zoologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs) que concluiu pela nocividade da caça amadora ao meio ambiente. Além disso, a caça seria uma prática cruel expressamente proibida pela Constituição Federal e pela Declaração Universal dos Direitos dos Animais.” – texto da matéria “TRF4 proíbe caça amadora no Rio Grande do Sul”, publicada em 14 de março de 2008 pelo Portal da Justiça Federal da 4ª Região

Vale ressaltar que a essa última decisão, vigente, ainda cabe recurso.

Apesar do atual estado de proibição da caça amadorística ou esportiva em todo o Brasil, há inúmeras lojas especializadas em artigos para caça, onde é possível encontrar armamentos para tal prática. Basta fazer uma rápida busca pela internet.

Em um anúncio de uma loja de Manaus (onde a caça nunca foi legalizada) encontrei o anúncio de uma espingarda com os seguintes dizeres:

“A CBC 199 tem um projeto arrojado que alia tecnologia, beleza e versatilidade. Seu preço acessível, juntamente com a facilidade de manejo e segurança, a torna uma arma ideal para os iniciantes na prática da caça. Ela também é indicada para defesa patrimonial, para o esporte de tiro aos pratos e para o lazer.”

Destaco aqui: “ideal para os iniciantes na prática da caça”.

Espingarda CBC 199: ideal para os iniciantes na prática da caça

No site da fabricante, a CBC (Companhia Brasileira de Cartuchos), existe uma seção específica para caça esportiva. E nela encontram-se os seguintes textos sobre a caça amadorista:

•    A caça amadorista e a sua contribuição na conservação da natureza.
•    A fiscalização da caça no estado do Rio Grande do Sul.
•    Educação e consciência do caçador amadorista
•    Construindo um futuro para a fauna nacional
•    O caçador e a natureza: convivência e responsabilidade
•    A Caça no Mundo

Nos textos, desatualizados pelo fato de ainda considerar a legalidade da caça no Rio Grande do Sul, é construído o raciocino em que a existência da caça regulamentada gera recursos para a conservação e as unidades de conservação, além de aliviar uma demanda da atividade dos praticantes (que poderiam exercê-la na ilegalidade).

No texto “O caçador e a natureza: convivência e responsabilidade” está escrito:

“Numa sociedade que se urbaniza e se distancia da Natureza a passos largos, poucas pessoas seguem convivendo tão de perto com o inestimável patrimônio natural quanto o caçador amadorista. Essa convivência é base da consciência que faz dele o pior inimigo da caça clandestina, o primeiro a reivindicar mais e melhor fiscalização, e a denunciar os abusos contra esse patrimônio que faz parte das suas melhores experiências de vida.

O que move o caçador amadorista, mais do que o ato da apanha de um recurso natural renovável – e em grande parte de futuro assegurado graças a sua própria contribuição – é justamente esse contato com o mundo natural, que muitos idealizam mas apenas os privilegiados como ele podem conhecer. E, em conhecendo, adequadamente defender e conservar.”

Tenho uma visão um tanto crítica aos parâmetros antropocêntricos que enxergam a natureza apenas como uma fonte de recursos para o ser humano, desprezando o direito – para mim intrínseco – de vida dos outros animais.

Há países, como África do Sul, Argentina e Chile, onde existem reservas de caça e o dinheiro arrecadado com as licenças e as taxas é investido em conservação. Muitos ambientalistas e técnicos defendem esse recurso. Essa contradição, para mim, é muito forte: matar por lazer para conservar…


Na Argentina, há período para a caça do puma (onça-parda)
Foto: pampasargentinas.com

O debate está aberto, tanto que a decisão do Rio Grande do Sul pode ser revertida. Cabe à sociedade brasileira decidir o modelo que deseja seguir.

Mas, voltando à questão inicial, permitir a venda de armas para caça amadorísta em um país que praticamente acabou com a legalidade dessa atividade é não querer acompanhar as mudanças.

– Leia a matéria do Portal da Justiça Federal da 4ª Região
– Conheça a Lei de Crimes Ambientais
– Conheça a Lei de Proteção à Fauna
– Leia o site da CBC (Caça Esportiva)
– Leia o site da CBC (Caça Amadorística)

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Sobre o autor / Dimas Marques

Formado em Jornalismo e Letras, ambos os cursos pela Universidade de São Paulo. Concluiu o curso de pós-graduação lato sensu “Meio Ambiente e Sociedade” na Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo com uma monografia sobre o tráfico de fauna no Brasil. É mestre em Ciências pelo Diversitas – Núcleo de Estudos das […]

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