Por Kamila Bandeira
Bióloga com mestrado em Zoologia pelo Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). É doutoranda no mesmo programa, além de pesquisadora da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Suas pesquisas estão focadas em Paleontologia de vertebrados
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Olá, pessoal! Este mês, teremos uma contribuição escrita pela paleoecóloga Hanna Carolina Lins de Paiva, especialista em Sistemática e Paleoecologia do Tempo Profundo e atual pós-doutoranda do Laboratório de Sistemática e Biogegrafia da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. O texto a seguir é sobre um artigo científico recentemente publicado e que fez parte do doutorado da Hanna. Espero que gostem! Não deixem de compartilhar.
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Ambientes aquáticos são bastante dinâmicos e a qualquer momento podem sofrer alterações em suas variáveis, como nos níveis de oxigênio, temperatura ou de salinidade. Devido a essa peculiaridade, os organismos que vivem nesse tipo de ambiente também apresentam características que permitem uma adaptação rápida a essas mudanças, garantindo sua sobrevivência, ainda que num primeiro momento.
Por sua vez, os peixes são considerados bons indicadores ambientais (elementos através dos quais se pode medir a saúde de um ambiente). Isso porque eles apresentam uma grande variação de espécies entre os vertebrados, além de serem extremamente sensíveis a qualquer alteração na água. Assim, quando associados a outros organismos, vertebrados ou não, é possível fazer inferências importantes em estudos ecológicos.
Estudos ecológicos são muito importantes hoje em dia, especialmente para avaliar o quanto as ações humanas impactam o planeta ou mesmo fazer projeções para um futuro próximo. Mas já pensou que nem todos os impactos ambientais são ocasionados por ação humana? Ou mesmo que eventos de grande magnitude podem ter ocorrido milhões de anos antes dos humanos andarem pelo planeta?
Compreender eventos desse tipo que ocorreram no passado é muito importante, pois assim podemos entender diversas pistas sobre as dinâmicas do planeta, além da própria história evolutiva dos organismos com os quais convivemos atualmente. Um exemplo de episódio de grande magnitude ocorreu no Cretáceo Inferior (há aproximadamente 120 milhões de anos), quando os continentes africano e sul-americano (Gondwana) se separaram e houve a abertura do Oceano Atlântico Sul. No entanto, tal separação não veio sem consequências, pois foi marcado por muitos tremores de terra e alterações no nível do mar, os quais afetaram diversos ambientes que hoje são encontrados em bacias sedimentares marginais (próximas ao litoral) da América do Sul.
Um caso curioso no Brasil
A bacia de Sergipe-Alagoas é uma das mais importantes do Brasil por apresentar registros geológicos de todas as fases de ruptura do Gondwana. Por sua vez, uma das unidades geológicas mais estudadas da bacia é a formação Morro do Chaves (localizada no estado de Alagoas). Ela é conhecida por conta das diversas camadas de coquinas, cuja exploração apresenta considerável potencial econômico (fabricação de cimento).
Além disso, diversas expedições foram enviadas para a localidade desde o século 19 por conta dos fósseis descobertos e que poderiam contar uma história interessante sobre o paleoambiente. O primeiro fóssil registrado na formação Morro do Chaves foi baseado em escamas isoladas de um peixe chamado Lepidotes. A partir de então, diversos outros peixes e mesmo invertebrados apontavam para um lago de água doce extinto.
No entanto, conforme as expedições ocorriam, foram encontrados também exemplares curiosos, como aulopiformes (peixes conhecidos atualmente por habitar regiões de fundo, até as abissais), tartarugas, poríferos e foraminíferos, os quais refletem um paleoambiente de água salgada. O fato levantou diversos questionamentos sobre o que poderia ter acontecido na localidade para que houvesse tanto organismos marinhos quanto de água doce convivendo. Além disso, tornou-se comum repetir que a fauna encontrada na formação Morro do Chaves é abundante, diversificada e bem preservada, baseado apenas em observações diretas de quantidades pontuais de coletas, porém sem testes que comprovassem a informação.
O fato levou, então, a diversos estudos que apenas repetiam a informação, sem questionar, além da falsa ilusão de conhecimento sobre a paleoecologia da localidade. Fato que permaneceu assim até 2018, quando Garcia et al. estudaram com mais cuidado a flora da formação Morro do Chaves. O estudo revelou dados interessantes e impensados: de que a localidade seria um paleoambiente com dois cenários distintos.
O primeiro seria um lago de água doce, porém com forte influência do aumento do nível do mar (toda vez que o nível do mar subia, entrava água salgada no lago e alterava todas as condições ambientais de forma repentina), o que levou a constantes perturbações ambientais (e os organismos sofriam um bocado com isso, muitas vezes sofrendo mortandade em massa). Já o segundo seria mais calmo e relativamente mais salgado em relação ao primeiro (aqui, os organismos já teriam tolerância bem maior à taxa de salinidade do que os mais antigos).
Os resultados dos pesquisadores foram bastante promissores. No entanto, faltava compreender como os organismos teriam reagido a tais mudanças ao longo do tempo de deposição da formação Morro do Chaves. Buscando uma resposta para essa dúvida, Paiva et al. (2022) aplicaram testes estatísticos e análises geoquímicas para medir as respostas da comunidade de peixes para os eventos de perturbação ambiental da localidade.
Como o estudo aconteceu?
Para entender a paleoecologia da formação Morro do Chaves, o primeiro passo foi coletar informações sobre os táxons de peixes encontrados na localidade (também conhecido como composição taxonômica ou senso faunístico). A partir desse levantamento, foi possível avaliar a diversidade, a abundância e a riqueza das espécies.
Tais avaliações foram feitas a partir de análises estatísticas, como cálculo dos índices de diversidade, análise coordenadas principais e de correspondência. Essas análises são comuns em estudos de ambientes recentes, porém dificilmente aplicáveis em ambientes extintos. Isso porque são necessárias quantidades significativas de táxons para aplicar os testes e nem sempre é possível, de acordo com o afloramento (cujas condições nem sempre permitem a preservação de uma quantidade considerável de exemplares).
Assim, testes ecológicos são normalmente aplicados quando o afloramento apresenta indícios de moralidade em massa (quando observamos fósseis em diversos estágios de desenvolvimento soterrados juntos, dispostos em diversas direções e, muitas vezes, com boas condições de preservação, pois foram soterrados de modo muito rápido ou em condições anaeróbicas). A formação Morro do Chaves tem onze níveis de folhelhos (um tipo de rocha sedimentar onde os fósseis são encontrados), intercalados com coquinas (formados em condições extremas).
E o que foi descoberto?
No total, foram identificados cerca de 232 exemplares de peixes fósseis, divididos principalmente nas ordens Aulopiformes (Atolvorator longipectoralis, Gallo & Coelho, 2008), Clupeiformes (Cynoclupea nelsoni, Malabarba & DiDario, 2017; Falconichthys santerezae, Maffizzoni, 2000; Pseudoellimma gallae, Figueiredo, 2019), Coelachantiformes (Mawsonia, sp.), Ellimmichthyformes (Gibsonichthys miguelcampensis, Maffizzoni, 2000) e Lepisosteiformes (“Lepidotes” alagoensis, Gallo, 2000; “Lepidotes” sp.).
De acordo com a análise cuidadosa de todos os exemplares, foi possível identificar que a maior quantidade de peixes (82% da comunidade) é representada por Clupeiformes e Ellimmichthyformes. Uma provável explicação para isso estaria relacionada à alta plasticidade alimentar (generalistas, que não têm uma preferência alimentar definida) que os peixes desses grupos apresentam. Eles estão sempre presentes em áreas de alta produtividade (com uma grande quantidade de organismos capazes de realizar fotossíntese) atuais e muito provavelmente teriam um comportamento semelhante no passado.
Além de se beneficiarem dos organismos produtores (plâncton) para se alimentarem, a quantidade considerável desses peixes na Formação Morro do Chaves indica que eles formavam cardumes e sua população tendia a aumentar conforme a perturbação ambiental era mais acentuada. Isso porque animais com dieta mais generalista têm certa vantagem em condições mais severas de restrição alimentar. O aumento de população foi observado em diversos níveis de folhelho da formação Morro do Chaves, em especial no nível F03 (um dos níveis com indícios de perturbação mais marcantes, comprovados tanto com observação direta quanto com evidências geoquímicas, que mostraram níveis bem baixos de oxigênio).
Já a presença de Aulopiformes no lago poderia ser algo inusitado, porém levanta questionamentos interessantes. O primeiro é que esses peixes conseguem habitar em diversas posições da coluna d’água, então poderiam se aproveitar da alta do nível do mar e entrado na formação Morro do Chaves em busca de alimento fácil (onde tiveram sucesso, inclusive, se alimentando de outros peixes e de invertebrados).
Pelo fato de serem predadores ativos, fizeram um papel de controle populacional (efeito top-down), algo muito importante para promover a estabilidade da comunidade (especialmente quando há redução do nível da coluna d’água, conforme registrado também na localidade). Além disso, um outro questionamento pode ser levantado em relação a esse táxon. Até o momento, era sabido que, independentemente da posição na coluna d’água, eram encontrados em ambientes exclusivamente marinhos.
No entanto, de acordo com as análises geoquímicas na formação Morro do Chaves, mesmo que o lago tivesse influência marinha, a taxa de salinidade faria com que o ambiente fosse uma laguna (lago salgado), mas não teria uma taxa de salinidade tão alta quanto no mar. Porém as condições tafonômicas (forma como os fósseis foram preservados) observadas indicam que o grupo teria sobrevivido e colonizado com sucesso o paleoambiente, não apenas por conta da oferta de alimento e falta de competidores, mas as variáveis ambientais permitiram a manutenção da população ao longo de anos.
Já a presença de Lepisosteiformes sempre associada à de Coelachanthiformes é um fato comum em diversas bacias sedimentares brasileiras. No entanto, a ocorrência de Mawsonia sp. (Coelachanthiformes) nos mesmos níveis de folhelho que Aulopiformes (indivíduos marinhos) chama atenção, especialmente por conta da taxa média de salinidade registrada. De acordo com a literatura, Coelachanthiformes têm apenas um gênero vivente, Latimeria, o qual seria o único a ocupar ambientes marinhos. Isso porque todos os outros táxons extintos representantes de Coelachanthiformes são relacionados a ambientes não-marinhos (de água doce/salobra, porém sem influência marinha).
Assim, encontrar uma ocorrência de Mawsonia em um ambiente que não chega a ser marinho, porém mais salgado que o esperado para o táxon, é inusitado. O fato levanta um questionamento acerca das descobertas de Brito et al. (2021), que relataram o primeiro registro no mundo de que o táxon seria encontrado em um ambiente marinho do Marrocos (porém a localidade estudada pela equipe é bem mais nova do que a formação Morro do Chaves). Dessa maneira, a ocorrência de Mawsonia na formação Morro do Chaves indica que muito provavelmente ele teria essa capacidade há mais tempo do que o levantado em Brito et al. (2021). Porém ainda são necessários mais estudos para confirmar a hipótese.
Observando a formação Morro do Chaves, ela apresenta dois cenários paleoambientais: um mais conturbado e outro mais calmo. Também é possível notar vestígios de tetania (quando eles ficam mais tortos e com a boca aberta) em diversos níveis de folhelho. Isso evidencia momentos de baixa na taxa de oxigênio disponível na água (anoxia).
Além disso, ao longo dos 11 níveis, é possível notar que eram eventos constantes, especialmente quando em momentos de diminuição da coluna d’água (estágio de seca). Nesse momento, a temperatura era mais alta, o que ajudava a laguna a secar mais depressa, além de afetar a salinidade, que também ficava mais alta à medida que havia menos água disponível.
Eles são intercalados com outros mais úmidos e com evidências de tempestades muito fortes, as quais também perturbavam o ambiente e alteravam consideravelmente as variáveis da laguna. Isso porque a temperatura era relativamente mais baixa, a coluna d’água era maior (período de cheia), mas não necessariamente as condições eram favoráveis, já que ainda havia as entradas de água do mar, que poderiam aumentar a taxa de salinidade.
Tá, tudo isso é muito legal, mas aconteceu há tanto tempo. Por que devo me importar?
Foi dito lá no início que estudar ambientes pretéritos nos ajuda a entender a história evolutiva dos táxons e como eles reagiam a certos eventos, nos ajudando a compreender como reagem hoje a eventos semelhantes. Isso porque o planeta está passando por mudanças drásticas, muitas das quais de origem humana e que afetam a biodiversidade de modo direto e, muitas vezes, severo (Roopnarine et al., 2018). Por conta disso, as comunidades têm suas propriedades afetadas por ambientes perturbados e estão cada vez mais próximas dos extremos de suas áreas estáveis (Roopnarine et al., 2018).
Através da paleoecologia, podemos compreender melhor como essas mudanças ambientais afetam direta ou indiretamente os organismos atuais, entendendo a história das condições ambientais. A partir dele, é possível compreender mais sobre nossa própria biodiversidade, como padrões de comportamento, respostas a condições extremas e até alimentação, muitos dos quais podem refletir nos dias atuais.
Assim, quando pensar em questões ambientais e o quanto os organismos estão sofrendo hoje, podemos pensar no quanto já passaram por situações catastróficas antes e o que poderemos fazer no futuro.
Para saber mais
– Brito et al. “A marine Late Cretaceous (Maastrichtian) coelacanth from North Africa.” Cretaceous Research, 122 v., 2021. https://doi.org/10.1016/j.cretres.2021.104768
– Paiva et al. “Paleoecology of a Lower Cretaceous (Barremian) fish community of the Morro do Chaves Formation, Sergipe-Alagoas Basin, NE Brazil.” Journal of South American Earth Sciences, 119 v., 2022. https://doi.org/10.1016/j.jsames.2022.104021
– Roopnarine, Peter, Kenneth Angielczyk, AllenWeik, and Ashley Dineen. 2018. “Ecological Persistence, Incumbency and Reorganization in the Karoo Basin During the Permian-triassic Transition.” PaleorXiv. November 1. doi:10.1016/j.earscirev.2018.10.014.
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