O mico-leão-preto (Leontopithecus chrysopygus) é um dos primatas mais raros e ameaçados do mundo. Endêmico da Mata Atlântica do interior de São Paulo, ou seja, existindo somente nessa região, foi considerado extinto da natureza por muitos anos e, ainda hoje, sua situação é grave. Classificada como “em perigo” pela União Internacional para Conservação da Natureza (UICN) e na Lista Nacional Oficial de Espécies da Fauna Ameaçadas de Extinção, a espécie tem na perda e na fragmentação do habitat, devido à substituição de florestas por áreas agrícolas e pastagens, sua principal ameaça.
O Instituto de Pesquisas Ecológicas – IPÊ, através do Programa de Conservação do Mico-leão-preto, mantém pesquisas científicas e ações pela conservação desses animais há mais de 30 anos no Pontal do Paranapanema, extremo oeste do território paulista. Cientes de que para salvar o pequeno primata é necessário recuperar a floresta que habita, os profissionais da instituição resolveram descobrir qual é a mata ideal para a espécie. E o método para levantar informações não foi nada usual: alguns micos receberam uma pequena mochila capaz de armazenar dados que auxiliarão na recomposição de seu ambiente natural.
No segundo semestre de 2021, a intenção do Programa é realizar o manejo das populações e movimentar alguns grupos (translocação) para áreas conectadas pelos corredores de floresta que vêm sendo implantados pelo IPÊ. O Instituto já plantou 2,4 milhões de árvores nativas, ligando duas unidades de conservação da região: o Parque Estadual Morro do Diabo e a Estação Ecológica Mico-leão-preto. A ideia é que os dados coletados pelas mochilas permitam comparar as qualidades dos fragmentos de mata habitados pelos animais. Serão avaliadas as informações da floresta ocupada pelo grupo de micos antes de ele ser translocado e com as registradas na nova área. Assim, será possível identificar os pontos onde há pouca disponibilidade de recursos para os animais e fazer plantios de espécies de árvores específicas para enriquecimento do habitat.
A mochila com GPS e acelerômetro
Na pequena mochila colocada nas costas do mico, há dois equipamentos: um GPS e um acelerômetro. Saber se o animal está parado ou em movimento – e a forma como ele se desloca – cabe ao acelerômetro, que registra quatro movimentos por segundo, tornando possível até deduzir alguns comportamentos do animal. Ao GPS cabe fornecer os pontos da floresta onde o primata está e a altura em que se encontra. Com esses dados, é feita a estimativa de gasto energético dos micos e, em seguida, o cruzamento dessas informações com a estrutura da floresta – mais homogênea e menos degradada ou o contrário.
Os pesquisadores analisam, a partir da identificação da estrutura da floresta, como os micos estão gastando energia e identificam o que representa obstáculo para os animais. Se gastam muito no movimento, eles terão que poupar em funções vitais como a reprodução, por exemplo, o que não é bom para a conservação da espécie. Com esse estudo, é possível melhorar a qualidade do habitat – plantando mais árvores e adensando vegetação ou melhorando sua estrutura – a fim de chegar na floresta ideal para a sobrevivência da espécie a longo prazo.
Pelo trabalho desenvolvido no Programa de Conservação Mico-leão-preto, a bióloga e pesquisadora Gabriela Cabral Rezende ganhou o prêmio Whitley Awards em 2020. Ela conta que a ideia do projeto surgiu em 2013, quando sentiu a necessidade de monitorar a movimentação dos micos com GPS. O que antes era instalado em um colar, que não era muito efetivo e causava desconforto nos animais, tornou-se uma mochila com acelerômetro que poderia pesar, no máximo, 20 gramas, tendo em vista que os pequenos primatas pesam em torno de 600 gramas.
Pesquisa
O projeto das mochilas é o doutorado de Gabriela em Ecologia, Evolução e Biodiversidade pela Universidade Estadual Paulista (Unesp) de Rio Claro (SP). A pesquisa conta com apoio e suporte do IPÊ na sua execução, já que o objetivo é fornecer subsídios para conservação do mico-leão-preto.
É um projeto de pesquisa financeiramente caro que demanda também esforços de campo de uma equipe para capturar animais. O capital “é uma mistura de tudo: tem um investimento que veio a partir da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp); tem os financiadores do Programa de Conservação do Mico-leão-preto (Disney Conservation Fund, Whitley Fund for Nature, Primate Action Fund) e alguns equipamentos foram fornecidos pela Universidade de Swansea, do País de Gales”, explica Gabriela.
Primeiros resultados
Até a primeira quinzena de fevereiro deste ano, quatro micos de quatro grupos diferentes (um de cada grupo) já estavam com as mochilas. A expectativa é de que mais três recebam os equipamentos ainda no primeiro semestre. Atualmente, Gabriela está analisando os dados coletados pelas mochilas na Universidade de Swansea, que já realizou projetos semelhantes com outros animais como elefantes, sapos, aves e animais marinhos. Eles possuem experiência com esse tipo de equipamento e estrutura para interpretar as informações – como são registrados quatro movimentos dos micos por segundo durante semanas, são milhões de dados para trabalhar.
Apenas os dados do GPS foram analisados até o momento. A partir deles, os pesquisadores já identificaram que os micos se adaptam a áreas menores, compartilhando mais recursos com grupos vizinhos – o que não é necessariamente bom. “Em um fragmento pequeno, o ideal é que a gente consiga expandi-lo para que os grupos que vivem ali não fiquem sufocados. No longo prazo pode ser prejudicial para a sobrevivência da espécie que está ali nesse pequeno espaço”, explica Gabriela. Apesar de ainda não ter concluído a análise dos dados do acelerômetro, ela acredita que em breve terá resultados interessantes. “O projeto está indo tão bem que a ideia é incorporar esse equipamento para o monitoramento feito em campo em trabalhos que vão além do meu doutorado”.
Translocação
O Programa de Conservação do Mico-leão-preto estima que em torno de 1.800 micos da espécie vivam na natureza, mas concentrados em determinadas áreas. Além de fornecer informações que permitem identificar qual a floresta ideal para esses primatas, translocá-los para onde foram localmente extintos é importante para acelerar a reocupação do habitat, o que seria naturalmente feito se a mata fosse toda conectada. Como os micos são dispersores de sementes, é recomendado que eles estejam em toda extensão da floresta auxiliando na manutenção desse ecossistema.
Por fim, o manejo também ajuda a evitar consanguinidade – reprodução entre indivíduos geneticamente muito próximos – e, consequentemente, a terem mais recursos para se adaptarem às mudanças ambientais, melhorando as chances de sobrevivência da espécie.
Histórico da conservação e aprendizados
O mico-leão-preto foi considerado extinto da natureza por 65 anos até uma pequena população ser redescoberta, em 1970, no Parque Estadual do Morro do Diabo. O responsável pela localização dos primatas foi Adelmar Coimbra Filho, biólogo e primatólogo pioneiro nos estudos da biologia e na conservação dos mico-leões. A espécie passou, depois, a ser estudada por pesquisadores como o biólogo Claudio Padua que, junto à sua esposa, Suzana Padua, e outros pesquisadores, fundaram o IPÊ em 1992.
O aumento na população de micos-leões-pretos, sua saída da lista dos dez animais mais ameaçados do mundo pela União Internacional para a Conservação da Natureza (IUCN, na sigla em inglês) e a criação de uma nova área protegida e conectada foram os resultados atingidos pelo IPÊ na conservação do mico-leão-preto que Claudio mais se orgulha. Para ele, o segredo está no fato de o Instituto ser uma “academia prática”, ou seja, aliar pesquisa e ação. “Não é um envolvimento só pela pesquisa, mas também pela conservação”, explica.
Os resultados do Programa devem-se a uma combinação de fatores como o planejamento baseado na Biologia da Conservação e em objetivos de longo prazo que envolvem inúmeros elementos, dentre eles, a restauração de paisagem. Dessa forma, os esforços na conservação da espécie têm sucesso também no momento da reintrodução dos animais na natureza. “Quando se inicia um programa desses, já deve estar planejando anos na frente para garantir que haverá habitat suficiente para uma população mínima viável”.
Somado a isso, está a transferência do conhecimento que se dá pelas ações de jovens formados na Escola Superior de Conservação Ambiental e Sustentabilidade do IPÊ (ESCAS-IPÊ) e que vêm “juntando as peças”. É o caso de Gabriela e seu projeto com a mochila. Claudio conta que o Programa de Conservação já está na terceira geração de profissionais que se dedicaram a longo prazo, sendo ele a primeira e Gabriela a terceira.
Claudio enxerga o constante diálogo e o envolvimento com tomadores de decisão da comunidade do entorno como grandes potencializadores de resultados. É uma forma de fazer com que eles sejam aliados da conservação do mico-leão-preto, principalmente de seu habitat. A ideia é “garantir uma paisagem que seja boa economicamente para o ser humano, mas também seja boa para o resto da biodiversidade”.
Tão importante quanto, é estabelecer um diálogo com os fazendeiros da região, caso seja essa a realidade da área. Através de uma mistura de educação ambiental com desenvolvimento sustentável e extensionismo rural, é feita a ponte entre o mundo acadêmico e quem está na linha de frente da produção. Tudo isso respaldado por um “olhar moderno voltado para o fator social, econômico e ambiental”, na tentativa de alinhar as intenções dos fazendeiros com a conservação da área e da biodiversidade.