Por Vera Maria Ferreira da Silva
Bióloga, mestre em Biologia de Água Doce e Pesca Interior e doutora em Mammalian Ecology and Reproduction pela Universidade de Cambridge (Inglaterra). É pesquisadora do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa) e coordena o Projeto Boto na Reserva de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá e o Projeto Mamíferos Aquáticos da Amazônia, da Associação dos Amigos do Peixe-boi (Ampa)
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Em continuidade aos artigos publicados sobre mamíferos aquáticos da Amazônia, apresento este texto adaptado de um capítulo escrito por mim e os coautores Glenn Shepard e Nívia A.S. do Carmo, em 2017, com o título “Os mamíferos aquáticos: lendas, usos e interações com as populações humanas na Amazônia brasileira”. Ele foi escrito para o livro Olhares cruzados sobre as relações entre seres humanos e animais silvestres na Amazônia (Brasil, Guiana Francesa), editado pelos pesquisadores Guillaume Marchand e Felipe Vander Velden e publicado pela Editora Universidade Federal do Amazonas.
Este livro muito interessante teve sua primeira edição rapidamente esgotada e a divulgação limitada, dificultando, por conseguinte, o acesso a seu conteúdo por um público mais amplo. Assim, compartilho com você um pouco das lendas, mitos e folclore associados ao boto.
“A sorte dos peixes foi confiada a Uauiará. O animal em que ele se transformou é o boto. Nem um dos seres sobrenaturais dos indígenas forneceu tantas lendas à poesia americana como o Uauiará […] O Uauiará é um grande amante das nossas índias; muitas delas atribuem seu primeiro filho a alguma esperteza desse deus, que ora as surpreendeu no banho ora transformou-se na figura de um mortal para seduzi-las; ora arrebatou-as para debaixo d’água, onde a infeliz foi forçada a entregar-se a ele.” (O Selvagem, Ed. de 1876, p. 137 – apud CÂMARA-CASCUDO, 1947).
Os mamíferos aquáticos, em particular os cetáceos, desde a Antiguidade exercem grande influência no imaginário dos povos como atesta a grande variedade de histórias a seu respeito. A mais antiga dessas histórias é encontrada na Bíblia com Jahweh e o Leviatã (Números 4:6:). O primeiro a publicar pesquisa sobre golfinhos foi Heródoto (c. 490 a 425 a.C.), seguido por Aristóteles (384-322 a.C.), como animais capazes de amizade e de elevados sentimentos. Os gregos, na Grécia antiga, acreditavam que os golfinhos representavam o poder vital do mar. Através de palavras e imagens, os antigos podiam vivenciar as infinitas transformações de seus deuses quanto ao sexo, corpo e caráter sem muita dificuldade. Os gregos relatam essas histórias de várias maneiras, porém, sempre sugerindo que os golfinhos compartilhavam com os deuses uma divindade comum. A imagem do golfinho está em quase todas as representações do nascimento de Vênus, deusa marinha, e era considerado um dos fetiches ictiofálicos.
Segundo o historiador e folclorista Câmara-Cascudo (1947), os portugueses, homens do mar e grandes navegadores, possuíam vasto repertório de lendas que incluíam tritões, sereias, mouras e animais fabulosos, e quando colonizaram o Brasil muitas de suas lendas se incorporaram àquelas já existentes.
Entre os povos indígenas da Amazônia existe uma noção amplamente difundida de fluidez entre as categorias de ser humano e certas espécies de animais, plantas, objetos celestiais e seres espirituais. Nos tempos mitológicos, esses seres eram pessoas ou distintos povos humanos que foram se transformando nas suas formas atuais, porém sem perder sua essência humana. Entre as populações ribeirinhas, elementos da cosmologia indígena se misturam com o folclore do Velho Mundo no conceito do “encantamento”. Enquanto folcloristas, como Câmara-Cascudo, tratavam relatos sobre “seres encantados” (por exemplo, o curupira, o mapinguari e o boto) como meras “lendas”, o antropólogo Eduardo Galvão (1955) foi o primeiro a abordar esses relatos como parte da experiência vivida das populações ribeirinhas.
O boto, nome de origem lusitana, antes de ter a alcunha de boto-vermelho era conhecido por vários nomes indígenas: piraiá-guará (piraiá = piranha; guará = lobo); pira-iauára (peixe-cachorro), uauiará (protetor dos peixes, cachorro d’água). Ele figura entre os mais importantes seres encantados para as populações ribeirinhas da região amazônica. Para Couto de Magalhães, o boto é a encarnação do espírito protetor dos peixes.
Existem vários relatos de pescadores que foram abordados ou ameaçados por botos durante a pesca ou que adoeceram depois de terem encontrado ou matado botos. Pescadores entre os bora-miranha da região do Solimões, por exemplo, relatam que é impossível distinguir entre o “boto encantado” e o boto comum, portanto é melhor nunca matar um boto para evitar perigos espirituais. Mas os mesmos membros da comunidade bora-miranha afirmam que o número de botos encantados na região estaria diminuindo devido ao crescimento da religião cristã e o reduzido número de “índios pagãos” que “sabiam mexer com essas coisas”. Já entre a população ribeirinha, os moradores sugerem que o crescimento da população humana e aumento das áreas urbanas têm diminuído o número de botos encantados e, portanto, o número de relatos na população sobre esse tipo de encontro.
O boto é capaz de aproximar-se das embarcações silenciosamente, emitindo, em seguida, um forte sopro ruidoso ao exalar o ar e depois dar saltos curtos e vigorosos próximo das canoas, podendo eventualmente empurrá-las, puxar suas quilhas e até causar alagação das embarcações. É ainda capaz de manipular objetos e animais tais como pequenas tartarugas, cobras, arraias, peixes grandes, além de galhos e tufos de capim, pedaços de paus e de barro com sua longa mandíbula, contribuindo para que seja percebido como animal capaz de se transformar em ser humano.
Mas o destaque das histórias sobre o boto é o elemento sexual: a figura do Uauiará como namorador de moças e possuidor de palácios no fundo do rio, como aqueles reis dos contos árabes das Mil e Uma Noites. A associação do boto com poderes sexuais também leva ao comércio de partes do corpo do animal para magias de amor.
Na Amazônia brasileira se diz que o boto pode se transformar num lindo homem com traços fisionômicos dos “brancos” para seduzir as mulheres. Gravidez indesejada, mortalidade infantil e abortos espontâneos podem ser atribuídos por moças ingênuas ao boto. A forma do feto abortado pode ser comparado a um “botinho” como confirmação dessa paternidade sobrenatural. Da mesma forma, “a bota” pode se transformar em uma mulher sedutora (com frequência também branca) e levar o pescador para o fundo do rio, onde passa um tempo entre os “encantados”, que vivem numa grande e bela “cidade”. Para os índios mura do baixo Madeira, os botos moram em “cidades” ou “jardins” encantados embaixo da água, habitados por outros seres aquáticos encantados como cobras grandes, pirarucu, peixe-boi e ariranha.
Moradores locais até hoje contam relatos de pessoas que ficaram perdidas ou sumidas por horas ou dias e que voltaram do mundo dos “encantados,” as vezes por meio da intervenção de um curandeiro local ou “pajé.” Diversos autores contemporâneos enfatizam que esses encontros com o boto e outros seres encantados não são “lendas” estáticas e antigas, mas experiências vividas até o momento atual por diversos indivíduos, com elementos comuns entre as versões. A antropóloga Deborah Lima (2012) sugere que a história típica da sedução de uma jovem mulher ribeirinha, racialmente indígena ou afrodescendente, por um boto com traços raciais e roupas finas “do branco” representa um símbolo da violência e subjugação tanto econômica, política e sexual das populações amazônicas pelos poderes coloniais europeus.
Na mitologia ameríndia é difícil distinguir entre traços “tradicionais” pré-hispânicos e elementos pós-coloniais introduzidos nesse folclore contemporâneo. A lenda do boto é brevemente mencionada por outro antropólogo famoso, Lévi-Strauss (1973), que enfatizou a alternância em diferentes lendas e mitos entre o papel de sedutor e o papel de protetor. Na mitologia baré, por exemplo, o boto se transforma em gente (mira) para curar o herói cultural Poronominare. Mas na maioria dos estudos etnográficos recentes, o boto é percebido como um ser sedutor e principalmente maligno, como é o caso entre populações ribeirinhas não-indígenas.
Relatos sobre sedução por botos, o sequestro ao mundo encantando subaquático e a associação do boto a traços fisionômicos do homem branco são encontrados entre as etnias dos bora-miranha, paumari e mura do Brasil, os yakuna da Colômbia e os cocama-cocamilla do Peru. Para os mura do baixo Madeira, o boto é uma entidade encantada temida e ameaçadora, especialmente devido a seus poderes sedutores, enquanto o tucuxi é considerado espírito guia dos pajés, que dá acesso aos poderosos conhecimentos do mundo aquático encantado. Da mesma forma, os yakuna da Amazônia colombiana consideram o boto como ser maligno, que ataca as pessoas que naufragam no rio, enquanto o tucuxi é benigno e ajuda aos náufragos. Os cocama da Amazônia peruana chamam o boto de pira-wira (“peixe-pênis”), fazendo referência a seus poderes de sedução sexual, além de “animal-demônio” devido a seu poder de transformação em forma humana. Na Amazônia peruana, as populações ribeirinhas ou mestizos têm histórias parecidas sobre o boto encantado, que também vem associado às práticas de magia do amor. Entre os xamãs ribeirinhos de Iquitos, o boto e outros seres aquáticos como sereias, anacondas e tartarugas aparecem na cosmologia ao redor do consumo ritual da planta visionaria ayahuasca, Banisteriopsis caapi.
Enquanto alguns estudiosos associam a lenda do boto à mitologia europeia, por exemplo, das sereias, outros afirmam a existência de simbologia pré-hispânica (como na arqueologia de Paracas) de “sereias,” ou seja, figuras parcialmente humanas e parcialmente aquáticas.
Além da habilidade de se transformar em humano e seduzir as moças locais e engravidá-las, também se atribui ao boto forte atração pelo cheiro de mulheres menstruadas, que acaba chamando vários botos para o local onde estão a banhar-se ou lavar-se no rio, ou levando-os a perseguir suas canoas. O uso de produtos de cheiro pungente ou de forte reação, como a pimenta ardida, o alho, o tabaco ou a farinha, podem afastar o boto, nos moldes do comportamento medieval de usar substâncias fortes como o alho e objetos de metal em forma de cruz para se proteger dos vampiros.
Durante uma atividade de campo estudando os botos no alto rio Tefé, na década de 1980, fui instruída por uma moradora local a sempre carregar comigo alguns dentes de alho para que o boto não me levasse para o fundo do rio. Também fui aconselhada a desviar o olhar quando o boto viesse à superfície para respirar para não ser “encantada”, já que ele tinha um poder muito forte de atrair as pessoas e levá-las para o fundo do rio. Pude ainda observar o uso de um terçado afiado usado pelas mulheres para cortar a água ao lado da canoa para espantar o boto.
Ainda hoje, pescadores e ribeirinhos se admiram com a “esperteza” do boto que consegue escapar das redes, enganá-los, aparecer do nada ou “sumir sem deixar rastros” .
O escritor amazonense Marcio Souza (1982), em seu livro A irresistível ascensão do Boto Tucuxi, usa características míticas e habilidades comportamentais do boto para comparar o comportamento e descrever os desvios de personalidade de um cacique político do Amazonas na década de 1960, quando usa adjetivos como subversivo, populista, amoral, carismático, moderno, retratando-o como cínico, demagogo, grosso, mítico, bandido, cafajeste, traficante e corrupto.
Essa figura lendária, endêmica dos rios da bacia Amazônica, está classificada como espécie ameaçada de extinção devido não só a captura direcionada para uso como isca na pesca do bagre conhecido como piracatinga, mas principalmente pelos inúmeros projetos de desenvolvimento que existem na região e que afetam diretamente o ambiente aquático e os habitat necessários para a sobrevivência desses golfinhos e suas presas. O boto é um patrimônio da nossa biodiversidade! Vamos protegê-lo para que não se torne apenas mais uma lenda.
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