Por Lígia Takau
Repórter
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A Polícia Militar Ambiental do Mato Grosso do Sul efetuou, do início de 2020 até março, 58 resgates de tamanduás-bandeiras (Myrmecophaga tridactyla) somente em Campo Grande. Para tentar entender os motivos que têm levado esses animais a se aproximarem e entrarem em ambiente urbano, uma pesquisa começa a ser desenvolvida na capital do Estado. O trabalho permitirá que medidas sejam tomadas para evitar que os tamanduás corram riscos nesse contato com a cidade.
Os resgates mais recentes aconteceram em 11 de março. Nesse dia, os policiais recolheram um filhote sem a mãe na Colônia de Férias, na saída para Dourados, perto da BR-163. Pouco depois, um adulto apareceu em um condomínio no final da rua 14 de Julho, nas proximidades do ginásio Dom Bosco. A mesma equipe realizou a captura do animal, que estava em um beco sem saída entre os prédios.
Em 27 de novembro, um comerciante chamou a polícia ao ver um tamanduá adulto em um terreno baldio no bairro Monte Castelo. Há também o registro de um animal na área externa de uma residência do bairro Estrela Dalva. O caso aconteceu em 30 de janeiro do ano passado, quando a moradora abriu a porta do imóvel às 6h30 e se deparou com aquele visitante incomum na varanda. Todos os tamanduás foram levados para o Centro de Reabilitação de Animais Silvestres (Cras) existente na cidade.
Tamanduás Urbanos
O tenente-coronel da PM Ambiental Ednilson Queiroz explica serem necessários muitos estudos para identificar a verdadeira causa desse número de ocorrências. E é com essa intenção que está nascendo um projeto de pesquisa, inicialmente chamado de Tamanduás Urbanos, do Instituto de Conservação de Animais Silvestres (Icas) em parceria com a Polícia Militar Ambiental, a Agência Municipal de Meio Ambiente e Planejamento Urbano (Planurb) e o Instituto de Meio Ambiente do Mato Grosso do Sul (Imasul). Os trabalhos buscarão entender de onde os tamanduás-bandeiras estão vindo e para onde estão indo, conhecer o estado de saúde dos animais e identificar cada um para entender se são reincidentes.
Responsável por mapear todas as ocorrências com os dados cedidos pela PM Ambiental, o veterinário do Icas e pesquisador associado do Zoológico de Naples (Florida-EUA), Danilo Kluyber disse que as localidades em que os tamanduás-bandeira estão aparecendo parecem ser aleatórias, mas há um padrão de conectividade com áreas verdes. O estudo tem importância por poder ajudar a identificar em quais regiões existem mais animais da espécie e quais medidas podem ser tomadas para evitar que eles enfrentem problemas na cidade. Ele ainda destaca que 58 ocorrências não necessariamente significam 58 indivíduos diferentes: “existe a possibilidade de 10 ocorrências serem do mesmo bicho, da mesma área. Ao mesmo tempo em que não são 58 tamanduás diferentes, também não são poucos indivíduos, já que não pode ser sempre o mesmo”.
A dificuldade em identificar cada indivíduo é ainda maior com os tamanduás-bandeiras. Diferentemente das onças e dos tatus-canastras que têm características externas que possibilitam a diferenciação entre os indivíduos, por exemplo, eles não podem ser identificados com uma fotografia, explica Danilo. “É difícil a gente identificar o sexo também, pois os machos têm testículos internos, então não dá para saber. Tem que capturar o animal e examinar de perto. Aí conseguimos diferenciar”. Para auxiliar nessa diferenciação, os tamanduás capturados pela PM Ambiental e encaminhados ao Cras estão recebendo um microchip, que serve como uma espécie de RG para o animal. “A checagem desses dados vai indicar se alguma captura que a gente faz é reincidência. Se for o mesmo tamanduá por mais de uma vez, será identificado”, complementa o tenente-coronel Queiroz.
https://youtu.be/egLbP_flXfA
Resgate de tamanduá-bandeira em 11 de março. Animal estava em um condomínio – Imagens: PM Ambiental MS
Os possíveis motivos
Enquanto os resultados da pesquisa não estão prontos, existem alguns motivos claros para os pesquisadores que justificam a alta incidência de tamanduás-bandeiras no perímetro urbano de Campo Grande e o aumento da coexistência entre seres humanos e animais na cidade. Um deles é o fato de a cidade estar em uma região muito florestada, com parques lineares de córregos, unidades de conservação e áreas verdes que servem como trampolins para os animais chegarem até o perímetro urbano.
Tem sido cogitada uma possível recuperação da população de tamanduás-bandeiras graças a diversos esforços para a conservação da espécie, visíveis no trabalho de ONGs e institutos na cidade, além de iniciativas do governo municipal como o Zoneamento Ecológico-Econômico de Campo Grande e o próprio trabalho da Polícia Militar Ambiental. Tais fatores influenciariam na presença de animais silvestres em Campo Grande para além dos tamanduás-bandeiras, como é o caso das araras-azuis, araras-canindés, antas, capivaras, quatis e até onças e tatus-canastras mais raramente.
Para a veterinária e presidente do Instituto Tamanduá, Flávia Miranda, desmatamentos, principalmente para o estabelecimento de monoculturas e pastos, queimadas e crescimento populacional em direção às áreas rurais também influenciam diretamente no aparecimento de tamanduás-bandeiras no perímetro urbano de Campo Grande. “Infelizmente com o crescimento da cidade, a especulação imobiliária, muitas áreas verdes são perdidas. Temos o Parque dos Poderes que era uma área bem preservada e hoje já vem perdendo habitat, o que acaba influenciando também na entrada desses animais em áreas urbanas”, explica. Somado a tudo isso, o veterinário do Icas, Kluyber, acredita que as restrições ou a simples diminuição de fluxo de pessoas motivadas pela pandemia do coronavírus também contribuiu para que os animais se sentissem mais à vontade para andar pela cidade.
Coexistência entre humanos e animais silvestres
Ao mesmo tempo em que a população de Campo Grande parece estar acostumada a conviver com animais silvestres na cidade – não é raro encontrar, em praças, casinhas feitas para servir de abrigo a aves ou pessoas que conscientemente evitem viajar à noite para não causar atropelamentos -, o encontro com animais silvestres acaba despertando muita curiosidade e surpresa. Afinal, ninguém espera ver um tamanduá-bandeira no quintal de casa, como naquele caso do bairro Estrela Dalva, de 30 de janeiro de 2020. Isso faz com que algumas pessoas tenham uma grande fascinação por filmar ou ir atrás do animal e às vezes até tomar atitudes erradas nesses encontros. Foi o que aconteceu quando, em 30 de janeiro, um grupo de pessoas amarrou um tamanduá-bandeira no bairro José Abrão para depois acionar a PM Ambiental.
Para que a coexistência entre seres humanos e animais silvestres se torne harmoniosa, a população, visitantes e turistas precisam se tornar aliados, ou seja, saber o que fazer nesses encontros. “Em primeiro lugar, se o animal está andando tranquilamente, a ideia é deixá-lo seguir. Se quiser nos passar a localização e a data, ou se filmar, de longe, vai ser interessante para podermos mapear e acrescentar as informações aos nossos dados”, explica Kluyber. Às vezes, o animal entra em uma rua, mas está próximo do seu habitat e, caso não haja perturbação, retornará para seu local de origem. O tenente-coronel Queiroz ainda explica que “muitas vezes, mesmo em perímetro urbano, não é caso de captura, o que pode, inclusive, estressar o animal e colocá-lo em risco de atropelamento”.
Já se o tamanduá-bandeira entrar em alguma propriedade, mas ficar na área externa em que ele consiga sair sozinho, a orientação é não se aproximar do animal, retirar crianças e animais domésticos de perto, não oferecer comida nem água e jamais acuá-lo ou tentar amarrá-lo. Se possível, fique dentro de casa ou do estabelecimento. “O animal silvestre nunca vai ter aquela reação de intimidade com o ser humano do nada. A sua principal característica é se defender e fugir”, destaca Kluyber. Informação reiterada pelo tenente-coronel Queiroz em suas experiências nas capturas: “O animal continua sendo silvestre independentemente de ter uma certa convivência com o ser humano. Ele age instintivamente”.
Se o animal não conseguir sair sozinho de onde se encontra e estiver encurralado ou ainda entrar na residência ou estabelecimento é o caso de acionar a Polícia Militar Ambiental, ligando para o 190. A captura só pode ser realizada quando há risco iminente ao animal ou para a população e somente pessoas capacitadas e com equipamento devem fazê-la.
Sobre o tamanduá-bandeira
O tamanduá-bandeira é um mamífero da superordem Xenarthra, encontrado na América Central e na América do Sul, “primo” das preguiças e dos tatus. A espécie corre risco de extinção estando classificada como “vulnerável” pela União Internacional para a Conservação da Natureza (IUCN, na sila em inglês) e na Lista Nacional Oficial de Espécies da Fauna Ameaçadas de Extinção. “Trata-se de uma espécie muito sensível e que a gente tem que tratar com todo carinho e amor na hora do resgate”, comenta a Flávia Miranda.
“O animal é extremamente adaptável a mudanças, diferentes situações e habitat, o que fica visível na sua adaptação ao Cerrado. Muitos vivem perto de plantações de eucalipto ou dormem em pastos. É uma espécie que tem a visão reduzida, o metabolismo mais lento, não tem aquele reflexo das luzes de carros nas rodovias no olho, não percebem muito o movimento e não se incomodam com barulho o que, por vezes, causa muitos atropelamentos”, explica Danilo. Os tamanduás-bandeiras também sofrem com crendices populares, por isso é importante também desmistificar conceitos como “tamanduá-bandeira dá azar” ou “abraço de tamanduá”, que contribuem para atitudes errôneas e violentas contra eles.
Antas urbanas
Não são somente os tamanduás-bandeiras que têm chamado a atenção de pesquisadores por entrarem na área urbana de Campo Grande. As antas (Tapirus terrestris) têm sido objeto de estudo do projeto Antas Urbanas, da Iniciativa Nacional para a Conservação da Anta Brasileira/Instituto de Pesquisas Ecológicas (Incab-IPÊ). “Apesar da frequência de avistamentos de antas, até o momento, não existem informações sobre a espécie em áreas periurbanas e urbanas de grande adensamento populacional humano”, afirma a engenheira florestal Patrícia Medici, coordenadora da Incab, iniciativa do IPÊ – Instituto de Pesquisas Ecológicas.
Reconhecida em 2020 com o chamado Oscar verde da conservação, o Whitley Gold Award, do Whitley Fund for Nature (WFN), Patrícia e equipe pretendem obter dados capazes de subsidiar o desenvolvimento e a implementação de estratégias de conservação da espécie com potencial de contribuir com a viabilidade desses animais a longo prazo.
Inicialmente, o estudo utilizará dados de avistamentos de antas no perímetro urbano de Campo Grande feitos pela Polícia Militar Ambiental, noticiados por veículos de comunicação, compartilhados por moradores da cidade e por gestores e funcionários das unidades de conservação e outras áreas verdes localizadas dentro dos limites do município.
A partir desses dados, a equipe da Incab-Ipê fará a elaboração de mapas sobrepostos a imagens de satélite para ilustrar os pontos de avistamento de antas. “Dessa forma, vamos estabelecer os hotspots de ocorrência e os locais com maior probabilidade de sucesso de captura”, explica Patrícia. As áreas mais frequentadas serão os locais onde antas serão capturadas para a instalação de colares de monitoramento e a realização de exames de saúde pelos veterinários da equipe.
As antas que receberem colar de monitoramento serão acompanhadas por 12 meses. A intenção é conhecer a movimentação dos indivíduos pela cidade e seus arredores e investigar o estado de conservação das antas nessas áreas.
A anta está na Lista Vermelha da União Internacional para a Conservação da Natureza como espécie vulnerável à extinção. Ela também consta na lista nacional de espécies ameaçadas no bioma Cerrado.
Tamanduás Urbanos
Para passar informações (localização e data) caso aviste algum tamanduá-bandeira no perímetro urbano de Campo Grande (MS):
Instituto de Conservação de Animais Silvestres (Icas)
E-mail: icasconservation@gmail.com
Instagram: @bandeiraserodovias
Facebook: Projeto Bandeiras e Rodovias – Anteaters and Highways Project
Antas Urbanas
Para passar informações (localização e data) caso aviste alguma anta no perímetro urbano de Campo Grande (MS):
Iniciativa Nacional para a Conservação da Anta Brasileira/Instituto de Pesquisas Ecológicas (Incab-IPÊ)
Felipe Fantacini (Incab-Ipê): fantacini@ipe.org.br ou (67) 99337-0799
Instagram: @incab_brasil