Biólogo, mestre em Ecologia e agente de fiscalização ambiental federal
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Darwin recebera uma carta de Wallace. Não poderia ser! A seleção natural dos caracteres, o trabalho de uma vida, de sua vida, estava ali. Elegantemente descrito, mas por outra pessoa que chegara às suas mesmas conclusões. O que fazer? Darwin era mais famoso, mais rico, poderia ter destruído a carta e se apressado a publicar. Não o fez. Publicaram juntos. A ética permeia as atitudes e decisões humanas, balizam comportamentos e, finalmente, leis e outras normas. O contrato social nos impõe limites visando que seus interesses não agridam os interesses de terceiros. Não fosse assim, viveríamos na barbárie. No final das contas, o “posso fazer” é limitado pelo “devo fazer”?
Nem sempre a esfera ética, por exemplo, permeou toda a humanidade. Escravos vêm de slaves, de eslavos, pois inúmeras pessoas desse grupo eram capturadas e mantidas como escravos. Situação anterior ao grande tráfico negreiro do Atlântico. Nessa situação, de forma abjeta, seres humanos se apropriaram de outros tratando-os como objetos e, por que não a comparação, como animais. O poder se sobrepôs ao dever.
Recuando ainda mais no tempo, chega-se às Grandes Navegações promovidas pela Europa. Novas Europas se espalharam pelo mundo: nas Américas, na Austrália e em determinados pontos da África. Os continentes e ilhas descobertas já eram habitados, possuíam outros moradores humanos. Mas eles, todavia, não compartilhavam da religião ou dos demais costumes dos europeus. Não estavam, portanto, contemplados pela proteção legal ou, principalmente, ética da civilização europeia. As terras foram invadidas e tomadas – vivemos hoje em uma nova Europa usurpada dos povos originários que foram massacrados quando os portugueses aqui chegaram.
Se ainda recuarmos um pouco mais, as invasões vikings na própria Europa desconsideravam totalmente o direito de propriedade e à vida das pessoas dos demais países. Baseavam-se na força para concluir: se posso, por que não devo?
Com o tempo, a Europa estendeu suas esferas éticas, não apenas ao povo de um país, mas aos demais países, de forma que as decisões de uma pessoa ou de um povo pudessem ser limitadas pelos interesses dos demais. O fato, porém, não ocorreu sem que em seu interstício houvesse guerras, inclusive duas guerras mundiais. Na segunda, a perseguição a uma etnia e a outras pessoas, como os homossexuais, deixou evidente ao mundo os horrores decorrentes da exclusão de pessoas da esfera de proteção ética de uma sociedade. O holocausto, a deterioração ou a desconsideração dos nazistas pelos direitos humanos, é, até hoje, uma chaga irreparável na história da humanidade. Não obstante, naquele momento se fizeram pesquisas utilizando-se cobaias humanas. Mas hoje está bem evidente que, a Ciência não deve tudo o que pode. Fosse assim, os atos horripilantes de Josef Mengele, que obteve doutorado em antropologia e Medicina pela Universidade de Munique e, após, foi o médico no campo de concentração de Auschwitz, deveriam ser perdoados. Aliás, nem ao menos repreendidos, afinal, seus atos foram em nome da deusa da Ciência.
“I have a dream” – “eu tenho um sonho”, disse Martin Luther King: “Eu tenho um sonho que … vão um dia viver em uma nação onde não serão julgadas pela cor da pele, mas pelo conteúdo de seu caráter.” A sua luta, de Zumbi dos Palmares, Nelson Mandela e de tantos outros expoentes, demonstra que nem sempre fazer parte da esfera ética da sociedade ocorre sem conflitos e sofrimento, mas, principalmente, pode revolucionar na maneira de pensar. O racismo, até hoje, é a cicatriz ética de uma sociedade que se permitiu ao erro nefasto de escravizar humanos simplesmente pela cor de sua pele.
Tais considerações demonstram com fatos históricos que a humanidade, sempre que afasta a ética de suas decisões, em momentos subsequentes, arrepende-se de seus atos.
Quando estava cursando mestrado, me insurgi contra o corte de artelhos (corte de dedos dos animais) como metodologia válida de marcação de pequenos mamíferos e lagartos. O doutor com o qual eu debatia me descredenciou; menosprezou, na verdade, aquilo que ele considerava apenas um sentimentalismo ignorante frente à deusa da Ciência, do conhecimento advindo de suas pesquisas. Mas, como disse Galileu Galilei: “A verdade é filha do tempo, não da autoridade.” Assim, em um futuro que, nem foi tão distante, apenas uma ou duas décadas depois, o mesmo doutor teve de admitir uma mudança em sua metodologia de pesquisa já que as revistas científicas internacionais já não aceitavam marcações arcaicas como aquela que eu, em meu “ignorante sentimentalismo” ético, critiquei. Não obstante o obscurantismo daquele doutor ter sido vencido, ele e muitos outros pesquisadores foram responsáveis por inúmeros animais mutilados.
Usualmente, os cursos que tratam de questões relativas ao ser humano, mesmo que extremamente técnicos, possuem disciplina de Ética. O tratamento ético de clientes e pacientes é um ponto crucial em várias profissões, mesmo que os profissionais em questão desenvolvam atividades científicas. Aliás, as questões éticas são preponderantes em pesquisas científicas que envolvam seres humanos. Cursos de Medicina, de Direito e, também, de Medicina Veterinária possuem Ética como disciplina. No Direito, mesmo o mais ignóbil humano deve ter assegurada sua defesa, afinal, sem uma defesa e um julgamento justo e imparcial, como se poderia determinar se ele é realmente ignóbil e culpado? Derivando disso, portanto, vem o direito à defesa e o acesso universal a uma defesa especializada prestada por um advogado. Uma pessoa moribunda, mas não morta, poderia ter seu coração e pulmões transplantados para salvar uma criança ou adolescente? Assim, a Ética é disciplina essencial e, sem a qual, injustiças seriam cometidas.
Dessa forma, a ética perpassa inúmeras profissões e, em especial as que tratam ou lidam com a saúde ou a vida, principalmente das pessoas, por óbvio. Mas a Biologia lida com a vida e os seres vivos, em especial os animais, possuem interesses. Assim como os humanos, animais evitam a dor e buscam o prazer. Uma lesma evitará o sol e buscará um local mais sombreado. Os animais não podem prestar sua própria defesa e nem possuem advogados designados que, às agressões de humanos, interponham seus interesses ou direitos. Aliás, falar em direito dos animais em uma sociedade de normas antropocêntricas nem sempre encontra reverberação. Mas, assim como no passado, os interesses de escravos, de pessoas pretas e de judeus foram aviltados e desconsiderados, hoje os interesses dos animais também o são. É importante que se busque de forma constante e crescente avançar no tempo. A vanguarda constitui em cuidar e lutar por interesses cuja maioria ainda considera ridículos ou absurdos. Os direitos dos povos originários, das pessoas pretas, dos judeus, das mulheres, dos homossexuais, de todos eles e de outras minorias, já foram desconsiderados em algum momento histórico e, hoje, a humanidade lhes deve por não ter tido o discernimento ético no devido tempo.
A falta de ética também já ultrajou a Ciência. Alan Turing, gênio precursor da computação, foi quimicamente castrado pela canhestra, melhor dizendo, absurda visão de combate à homossexualidade. Sua morte, advinda da falta de ética e de tolerância à diversidade, atrasou a Ciência da Computação. A ausência de pensamento ético da Inglaterra, naquele momento, atacou a Ciência. A ética não obstrui a Ciência, ela baliza suas atitudes. Sem diretrizes éticas, a Ciência, que não é boa nem má, se torna malévola. Os dados, a pesquisa, a Ciência, portanto, não são contrários nem superiores à ética. Mas sem a ética, a Ciência se corrompe e a injustiça se instaura sob um pretenso manto de que, pela Ciência, todas as atrocidades podem ser justificadas. Muitas vezes, até com a perseguição de cientistas. Pois, como disse Heinrich Heine, “onde se queimam livros, acaba-se queimando pessoas.
O texto reflete posição pessoal e não, necessariamente, institucional.
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