
Por Adriana Prestes
Bióloga, responsável técnica por áreas de soltura e monitoramento de fauna silvestre na Serra da Mantiqueira e Vale do Paraíba (SP) e secretária executiva do Grupo de Estudo de Fauna Silvestre do Vale do Paraíba, Litoral Norte e Serra da Mantiqueira
segundachance@faunanews.com.br
Preguiças-de-três-dedos (Bradypus variegatus), apesar do status “pouco preocupante” no Livro Vermelho da Fauna Brasileira Ameaçada de Extinção de 2018, do ICMBio, normalmente estão restritas a áreas mais florestadas e conservadas, cada vez mais raras no bioma Mata Atlântica.
Hoje, nossa história começa com uma preguiça encontrada onde? Em uma praça, entre ruas bem movimentadas é claro! Ao ser resgatado, nosso personagem estava em péssimo estado: malnutrido e esgotado. O animal foi recebido pelo Centro de Triagem de Vida Silvestre do Projeto Selva Viva e, ao passar pelos exames de triagem, mais uma constatação: funções hepáticas comprometidas e unhas quebradas.
Caro leitor, condição de unha para um bicho-preguiça é caso de vida ou morte, pois necessitam delas intactas para conseguirem se manter nas árvores onde se alimentam. Outra questão vital diz respeito às espécies de plantas com as quais o animal se alimenta: fome ou falta das espécies alvo para esta espécie, levam a intoxicações e caquexia (quadro agudo de perda de peso). Ao ser mantida em recuperação, lá saiam diariamente os funcionários do Projeto Selva Viva coletar folhas frescas de embaúba ( Cecropia sp.) porque tem animal que não come se as folhas estiverem murchas. Detalhe: eles precisam de cerca de um quilo de folhas por dia! Haja dedicação!
Ou seja, quando se fala em recuperação de fauna silvestre, o desafio é enorme. Além do custo de exames e da medicação, há, diariamente, o incrível desafio da alimentação, sobretudo para espécies muito especializadas e pouco generalistas, isto é, não comem qualquer coisa, exatamente como as preguiças.
Ok, vencido o desafio da recuperação clínica, vem o desafio da soltura. Primeiro vencer a questão da documentação, isto é, saber se existem áreas de soltura disponíveis, se estão a uma distância razoável para o deslocamento do animal e se a área escolhida terá a autorização de manejo para a espécie – porque sim, área de soltura tem que primeiro solicitar uma autorização prévia de cadastro para a espécie, que depois de obtida, tem que ser novamente solicitada para que se torne uma autorização válida, mas que, como tem prazo de validade, deve ser novamente solicitada a cada dois anos. Essa é a rotina de autorização no estado de São Paulo. E veja que cada animal destinado a soltura passa por esse processo.
Ok novamente! Vencida a etapa da autorização, e tendo o aceite da área, define-se o dia da soltura. Nesta história, a soltura foi adiada por causa do mau tempo porque, claro, condições extremas como vento, chuvas ou baixas temperaturas impactam negativamente a ação.
Próxima etapa, a soltura propriamente dita.
A soltura de preguiça tem alguns aspectos que precisam ser considerados, pois como trata-se um animal de movimentos lentos, a questão do monitoramento pós soltura adquire um outro sentido: o local da “pega”, ponto onde o animal se prende nas árvores, é crítico. Em toda a soltura, os primeiros momentos são críticos e. em geral, os animais se sentem confusos, podendo inclusive saírem de um local adequado para um com menor capacidade de suporte, simplesmente por desorientação. Aqui na nossa história, a soltura aconteceu na Fazenda Nova Gokula, em Pindamonhangaba (SP). A equipe do Projeto Selva Viva com o animal foi recebida pela equipe da entidade Mater, responsável pela área de soltura na Fazenda Nova Gokula. Passada a fase das apresentações, as equipes seguiram ao local previsto para a soltura. Após avaliação do grupo, decide-se por um outro ponto em função da conectividade entre as embaúbas, alimento principal da espécie.
A Fazenda Nova Gokula, além ser uma área de soltura, é também uma comunidade religiosa com moradores distribuídos em vários locais da propriedade. Um novo ponto para a soltura foi identificado, no “quintal” de um casal de moradores da comunidade. Logo atrás da casa já é possível identificar o melhor caminho para o animal: um conjunto de embaúbas bem altas, envoltas por mata e com baste folhas. No caminho da soltura havia um pequeno portão dando acesso a área florestal, o que fez com a equipe tivesse que fazer o clássico número do “malabarismo da caixa de transporte”, que nessa hora já pesava 100 quilos!

Chega-se à árvore ideal e, agora, é preciso retirar delicadamente a preguiça e “pegá-la” na árvore. Mais uma sessão de malabarismo, já que ela estava apegada à caixa de transporte. Finalmente, animal no colo – isso mesmo, no colo como um bebê – é delicadamente encorajado a adotar a árvore escolhida por nós. Timidamente, ele, era mesmo um “ele adulto”, se anima e, zaz trás, engata uma segunda marcha e sobe rapidamente ao topo. Depois de uma certa espera angustiante, começa a comer! Ufa! Toda equipe respira aliviada!
Começa então toda a ação do monitoramento pós soltura com câmeras de vídeo para filmagem e binóculos para acompanhar o animal. Um verdadeiro espetáculo que não acontece todo dia, mas que deveria: uma soltura de preguiça por semana anima a alma!
Um dos pontos fundamentais é que quando usamos a expressão “monitoramento pós soltura”, não significa apenas por um período definido. O ideal é que seja feito até o animal não ser mais identificado na paisagem e isso só é possível se a soltura acontecer no quintal de alguém, exatamente o caso da preguiça da história de hoje. O simpático casal de moradores que receberem a soltura da preguiça no quintal, não só participou ativamente da ação, como ficou entusiasmadíssimo em fazer o monitoramento. Assim, eles ficaram em contato com os técnicos responsáveis, enviando as informações via grupo de WattsApp.

As preguiças evitam ir ao chão, mas para defecar elas têm de descer das árvores. Fazem isso uma vez por semana. E lá estava no grupo de Watts, a primeira imagem das primeiras fezes, motivo de comemoração de toda equipe! Na segunda semana após a soltura, muita chuva e não foi mais possível avistar o animal, só restando o desânimo pela falta de informações… Mas passados uns dias, sucesso! Animal avistado novamente! E assim vão se passando os dias e, de fato, vai se monitorando o que acontece na vida do animal, pois cada detalhe conta para se avaliar o sucesso de uma ação de soltura.
Um aspecto muito importante nas solturas é o envolvimento da comunidade. Muitas vezes, o animal destinado à soltura é mais velho ou era mantido em cativeiro e, mesmo reabilitado, é sempre mais manso do que aquele que nunca conviveu com humanos. Nesses casos, se a área do entorno da soltura é parceira, fica muito mais fácil registrar o sucesso da ação ou até mesmo auxiliar na recaptura quando necessário.
Nossa história de hoje, além de ser feliz, mostra que ninguém faz nada sozinho, sejam as instituições que trabalham afinadas seja a comunidade engajada, porque, no final do dia, solturas bem sucedidas só acontecem pelo empenho das pessoas e de sua teimosia em trabalhar pela conservação da biodiversidade.
– Leia outros artigos da coluna SEGUNDA CHANCE
Observação: as opiniões, informações e dados divulgados
no artigo são de responsabilidade exclusiva de seu(s) autor(es)