Por Adriana Prestes
Bióloga, responsável técnica por áreas de soltura e monitoramento de fauna silvestre na Serra da Mantiqueira e Vale do Paraíba (SP) e secretária executiva do Grupo de Estudo de Fauna Silvestre do Vale do Paraíba, Litoral Norte e Serra da Mantiqueira
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Com a chegada de dezembro, é comum fazermos um balanço do que foi o ano, o que conquistamos, o que ficou para trás e quais as metas que continuam a nos motivar e a nos empurrar em direção ao futuro.
No que tange às ações de soltura de animais silvestres, uma reflexão sobre a questão do período a que chamamos ano vai muito além daqueles 365 dias que começaram naquele 1º de janeiro.
Animais silvestres possuem um “calendário” ligeiramente diferente do nosso. Apesar da continua e raivosa destruição ambiental a qual nossa civilização tem se dedicado, eles mantêm ciclos reprodutivos, alimentares, de crescimento e migratórios. Nesse sentido, as entidades que atuam junto a área da fauna silvestre deveriam seguir esse mesmo ritmo. Não parece lógico, meu caro leitor? Ah, mas nada é mais diferente dos animais do que o tempo das instituições…
Vamos então analisar alguns casos.
O mais clássico dos problemas de quem lida com fauna silvestre é o caso do tempo dos filhotes. Cada vez é mais comum recebermos, em certas épocas do ano, dezenas, senão centenas de filhotes de alguma espécie silvestre. As razões para isso vão desde o tráfico de animais, passando por catástrofes (caso do Pantanal) ou até mesmo o prosaico problema dos animais que nidificam em telhados urbanos e, portanto, são removidos e, com sorte, podem parar em algum centro de triagem e de reabilitação.
Todo e qualquer empreendimento de fauna possui recurso financeiro limitado, recurso humano limitado, recurso de espaço limitado e normalmente esses recursos quase nunca estão em condições ótimas. Agora, amigo leitor, imagine a situação: um empreendimento já trabalhando com diversas restrições recebe, de pronto, 130 papagainhos que foram traficados! Todos precisam de atenção e ao mesmo tempo! Todos demandam uma expertise alta; são frágeis! Imaginem a pressão que essa situação coloca nos empreendimentos de fauna! Às vezes, existem ações de coordenação bem feitas e que permitem a divisão de lotes desses animais entre instituições, mas essa não é a regra. Aliás, é muito comum uma certa desconfiança entre as instituições de fauna silvestre, o que dificulta em muito o trabalho.
Agora, o detalhe é que transporte e destinação de animais silvestres dependem de licenciamento, isto é, uma autorização dos órgãos regulatórios, em nível estadual e/ou nacional, e aí que a coisa complica. Com a pandemia, foi instaurado o home office para diversos segmentos administrativos e isso criou, ainda que pese a dedicação especial de alguns funcionários, uma complicação adicional tornando esse tipo de ação ainda mais difícil. Ou seja, existe o “tempo do animal”, que é urgente, e existe o “tempo da administração”, que deveria proteger os animais, mas que tem um outro ”tempo” e muitas vezes a consequência é danosa, justamente e tão somente, para aqueles que deveriam ser protegidos: os animais de nossa fauna.
É, amigo leitor, para lidar com fauna silvestre é preciso virar mestre Zen, pois haja paciência e resignação diante dos fatos.
Na questão dos ciclos de crescimento é a mesma “sofrência”, com o perdão do neologismo. O bicho vai crescendo e precisa ser solto, não quando você quer, mas quando ele está pronto! E novamente haja paciência para aguardar todas as licenças e atender todos os questionamentos que podem surgir quando se considera uma espécie ou outra. Espécies ameaçadas precisam, por exemplo, de parecer de entidades técnicas que coordenam Planos Nacionais de Conservação (PANs). Tudo, longamente pensado para otimizar as chances dos animais em questão. Sensacional, não acham? Sim, mas essa “maquina” muitas vezes está longe de funcionar de forma azeitada e lá se vai o técnico, envolvido com a ação da soltura, consumir seu tempo com intermináveis e-mails, reuniões, pedidos e outras tantas exigências. Hoje, eu adoto a seguinte postura: tranquila e infalível como Bruce Lee! Assim as pedras vão virando pedregulhos e seguimos soltando os animais silvestres.
Há pouco tempo fiz uma soltura de um cachorro-do-mato que havia sido atropelado. A recuperação foi lenta, mas chegamos naquele ponto em que ela, uma fêmea de, me “disse”: “olha, eu estou pronta. Vocês fizeram o máximo, agradeço muito, mas tenho que ir…” Aí, amigo leitor, não tem jeito, tem que soltar… Então, escolhi um dia sem chuva, um local com alimento abundante (o animal era de vida livre, adulto) e horário ideal, final de tarde com aquela luz meio amarelada que vai fechando o dia. Abri a cambagem (portas) do recinto e saí de perto. Daqui a pouco vejo uma cena profundamente impactante, daquelas de cinema mesmo! A cachorra saiu pulando, pulando de felicidade, exatamente como nas histórias infantis. Me senti como se estivesse vendo ao vivo uma cena do Pequeno Príncipe, aquela onde o principezinho faz amizade com uma pequena raposa e eles brincam em um trigal, com ela pulando, formando um arco alto no ar! Fiquei tão impactada que nem me lembrei de filmar.
Termino o artigo de hoje com as palavras da raposa na história do Pequeno Príncipe. Ela diz: “Você é responsável por tudo que cativa!”
A amizade só existe com responsabilidade de ambas as partes. Façamos a nossa parte promovendo o bem-estar de todos aqueles à nossa volta, não importa quão pequenos ou pouco importantes. Todos contam e merecem nosso respeito!
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