
Bióloga pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), onde é mestranda junto ao Núcleo de Ecologia de Rodovias e Ferrovias (NERF)
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A contagem de carcaças em rodovias e ferrovias é amplamente usada para medir e monitorar o impacto das fatalidades de animais nessas infraestruturas. Como já abordamos em artigos de 2016 e 2019, só essa contagem não representa o número real de animais que morrem nessas circunstâncias, já que no momento da amostragem nem todas as carcaças que estão disponíveis na rodovia/ferrovia serão vistas pelos observadores e também algumas já poderão ter sido removidas da área amostrada (por diversos fatores), não estando disponíveis para serem contadas. Esses dois principais problemas relacionados à amostragem de carcaças precisam ser levados em consideração nas estimativas de fatalidades para que as conclusões tiradas dos estudos sejam confiáveis e comparáveis, tanto dentro de um mesmo estudo quanto entre estudos diferentes.
Geralmente a amostragem de fatalidades em rodovias e ferrovias consiste em uma única ocasião amostral de contagem de carcaças em cada campanha amostral. Além disso, ainda deveriam ser realizados experimentos para estimar a detecção dos observadores e a persistência das carcaças a fim de corrigir essa contagem bruta, embora muitas vezes esses experimentos não sejam feitos. Estudos recentes têm proposto uma alternativa a esse método, realizando amostragens repetidas (mais de uma ocasião amostral) dentro de uma mesma campanha amostral, de maneira que não seja necessário realizar experimentos para estimar os erros. Essa ideia foi primeiro proposta para estimar fatalidades de aves e morcegos em parques eólicos com base em contagem de carcaças (embora nesses casos os experimentos ainda fossem necessários) e mais recentemente testada e adaptada para estimativas de fatalidades em rodovias.
Esse método com várias ocasiões amostrais é baseado em modelos ecológicos já utilizados para estimar o tamanho de populações de animais vivos por meio da marcação e recaptura de indivíduos. No contexto das rodovias ou ferrovias, ele consiste em monitorar um mesmo trecho repetidas vezes sendo que cada carcaça achada deverá ser deixada na pista/trilho e identificada com um número ou código para ser reconhecida todas as vezes que for encontrada. Dessa maneira, cada carcaça terá ao final da amostragem uma sequência de encontros (1) e não encontros (0) (ex.: carcaça_A1 – 0, 1, 0, 1 – não foi vista na primeira ocasião, foi vista na segunda, não foi vista na terceira e foi vista na quarta). Essas sequências 0s e 1s das carcaças encontradas serão utilizadas nos modelos para estimar a detecção dos observadores, a persistência das carcaças e as taxas de atropelamento. Além disso, esse método consegue descontar carcaças velhas que tenham se acumulado ao longo do tempo antes da amostragem e que não correspondem às fatalidades daquele período amostrado, sendo assim, as taxas estimadas refletem os atropelamentos de um período conhecido.

Durante minha pesquisa de mestrado, adaptamos e testamos esse método. Para isso, escolhemos duas espécies para monitorar: o gambá-de-orelha-branca (Didelphis albiventris) e o teiú (Salvator merianae). As amostragens foram realizadas em um trecho de 100 quilômetros de rodovia, que foi percorrido de carro à aproximadamente 40 km/h por dois observadores. Foram realizadas campanhas amostrais mensais, cada uma com quatro ocasiões amostrais; nesse caso, quatro dias consecutivos. Cada carcaça encontrada recebeu uma identificação através de uma etiqueta com um número e, ao longo dos dias, poderia ser reencontrada e reconhecida. Além disso, para um artigo que está em preparação, comparamos os resultados dessa amostragem (quatro ocasiões amostrais) com outro trabalho desenvolvido pelo NERF (com oito ocasiões amostrais) para essas duas espécies.
Como mensagem principal desses dois trabalhos, deixando os detalhes mais minuciosos para o artigo a ser publicado, constatamos que utilizar um método que usa as próprias carcaças amostradas para dar conta dos problemas da amostragem é vantajoso, pois reflete as exatas condições da amostragem, não necessitando um experimento extra. Isso permite que se façam comparações mais confiáveis entre diferentes cenários, como antes e depois de pavimentação, expansão, instalação de medidas mitigadoras; como entre diferentes segmentos, períodos ou espécies; e mesmo que os desenhos dos estudos não sejam exatamente os mesmos (mudem o número de observadores, tamanho da rodovia, número de ocasiões, por exemplo). Além disso, o método nos dá o intervalo de credibilidade das estimativas feitas e nos ajuda a tomar decisões de priorização de mitigação com mais confiança.
Como maior desafio, percebemos que as estimativas da detecção dos observadores, persistência das carcaças e as taxas diárias de atropelamento por quilômetro ficam mais precisas com um número maior de capturas e recapturas, ou seja, precisamos encontrar um número grande de carcaças na via. No entanto, também encontramos soluções possíveis. Uma delas é justamente o aumento do número de ocasiões amostrais (aumentando as chances de encontrar/capturar mais carcaças).
Existem outros detalhes de metodologia, resultados, discussão e desafios desses trabalhos e dessa amostragem que vou deixar para uma outra oportunidade, mas queria aproveitar o clima de ano novo para plantar novas ideias e reflexões. Sempre que começamos a usar coisas novas, elas parecem difíceis, desafiadoras e às vezes até erradas. Mas isso não significa que não devemos dar chances a elas para, de fato, testarmos suas aplicabilidades.
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