Por Luís Patriani
Mongabay
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Se te chamarem de anta, receba o insulto como um elogio.
Poucos animais são tão essenciais, subestimados e perseguidos como o Tapirus terrestris, maior mamífero terrestre nativo da América do Sul e um dos mais eficientes promotores de biodiversidade do planeta.
No Brasil, onde virou termo pejorativo (ao contrário do senso comum, a anta-brasileira é inteligente e tem alta concentração de neurônios, similar ao elefante), a anta foi caçada até quase sumir do mapa da Mata Atlântica e entrar na lista de espécies vulneráveis.
Conhecido pela habilidade de manter o equilíbrio da diversidade de plantas ao dispersar importantes sementes por grandes extensões, como indicou um estudo da Universidade Estadual Paulista (Unesp), o bicho ganhou a fama de “jardineiro das florestas”.
A virada de jogo da anta-brasileira na Mata Atlântica, contudo, depende de ações urgentes para neutralizar o isolamento da população, agravado pela grande malha rodoviária da região, que dificulta o trânsito delas entre diferentes fragmentos de florestas, não raro resultando em atropelamentos.
É o que indicou um estudo feito pelo norte-americano Kevin Flesher, pesquisador do Centro de Estudos da Biodiversidade da Reserva Ecológica Michelin, na Bahia, e a brasileira Patricia Medici, cofundadora do Instituto de Pesquisas Ecológicas (IPÊ) e uma das maiores especialistas em anta no mundo, que estimou sua distribuição e o estado de conservação na Mata Atlântica.
Publicado na revista Neotropical Biology and Conservation, o levantamento revelou que, apesar de estarem restritas a 1,78% de sua distribuição original na Mata Atlântica no Brasil, Argentina e Paraguai, os sinais são de que a maioria das populações parece estar estável ou com algum viés de aumento.
“A anta persiste vivendo em áreas diminutas, pequenas populações desconectadas e longe de estarem em bom estado de conservação”, conta Patricia Medici. “Mas a realidade é que já esteve numa situação muito pior, que ocorreu lá atrás, extinguindo esse animal localmente em várias áreas de distribuição na Mata Atlântica. A população se mantém em um platô ao longo das últimas décadas. Só que se a gente não intervir de forma criteriosa, a situação vai voltar a piorar.”
Medici é presidente do grupo de especialistas da União Internacional para a Conservação da Natureza (IUCN), uma rede internacional de 130 membros em 27 países envolvidos na conservação da anta e suas quatro ameaçadas espécies: a anta-brasileira (Tapirus terrestris), a anta-das-montanhas (Tapirus pinchaque), encontrada na Cordilheira dos Andes, a anta-centro-americana (Tapirus bairdii) e a anta-malaia (Tapirus indicus), presente no Sudeste Asiático.
Poucas populações serão viáveis em cem anos
O fundo do poço da anta-brasileira na Mata Atlântica, que já havia sido eliminada das encostas mais baixas da Serra do Mar do sul do Rio de Janeiro e em partes do Nordeste no final do século 19, ocorreu entre as décadas de 1950 e 1970, período em que os caçadores reduziram as populações remanescentes e as isolaram em florestas mais inacessíveis.
Atualmente, a pesquisa mostrou que existem ao menos 48 populações ocupando 26.654 km² na Mata Atlântica — apenas uma fração da extensão original do bioma, de 1,5 milhão de km². O número estimado de indivíduos no bioma está entre 2.665 e 15.992. A maior população — entre mil e 6 mil espécimes — está no mosaico formado pelas florestas da província de Misiones, na Argentina, e o contíguo Parque Nacional do Iguaçu, no Paraná.
Na maior parte dos fragmentos, porém, o número de indivíduos é muito pequeno, alguns mal passando de seis animais, como é o caso da Reserva Biológica da Mata Escura, em Minas Gerais, onde a população se encontra em iminente ameaça de extinção.
A análise de viabilidade populacional, por sua vez, usada para estimar o número de bichos em um local — e se esse número é o suficiente para a sobrevivência da espécie numa escala de tempo de cem anos —, revela um quadro ainda mais preocupante.
Das 48 populações de antas estudadas, entre três e 14 são viáveis no longo prazo, tanto do ponto de vista demográfico — ou seja, se têm indivíduos suficientes para perdurar diante das ameaças presentes na região — quanto genético. Nesse caso, o risco é de que indivíduos da mesma família cruzem entre si, aniquilando e corroendo a diversidade genética.
“A análise de viabilidade populacional é que vai nos dizer se um animal vai apenas persistir no local ou se ele pertence a uma população viável durante cem anos”, afirma a pesquisadora brasileira. “O número mágico é ter entre 200 e 250 antas, quantidade necessária para estabilizar uma população saudável diante dos impactos e manter a sua viabilidade genética”.
De acordo com Kevin Flesher, o risco nas pequenas populações é alto porque a anta precisa se deslocar muito para encontrar recursos alimentares fora de seu diminuto habitat, o que pode levá-la a ser atropelada ao atravessar uma estrada.
Ao mesmo tempo, o período de gestação das antas acontece em intervalos de três anos, dura 14 meses e gera apenas um filhote, deixando as populações suscetíveis a rápidos declínios, sobretudo se o número de animais naquela área for pequeno. A perda de um único indivíduo pode significar a extinção local.
Na visão de Patrícia Medici, se faz urgente a adoção de medidas que garantam a segurança para os animais transitarem entre os trechos de floresta. Muitos morrem ao tentar cruzar rodovias de alto tráfego como a BR-101, que atravessa a Mata Atlântica brasileira de norte a sul.
“Não tenho nenhum pudor ou dúvida em dizer que a principal ameaça as antas no nosso país são os atropelamentos”, diz Medici. “A malha viária só aumenta e é um problema que tende a aumentar. A estratégia é pegar os pontos críticos de estradas onde comprovadamente morrem muitas antas e preparar planos de mitigação, como passagens inferiores, cercas, placas e radares. Temos ferramentas muito eficientes. O que a gente não tem é vontade política para pressionar os gestores dessas rodovias a fazer o que tem que ser feito.”
Apesar dos riscos, os pesquisadores veem a situação da anta na Mata Atlântica com certo otimismo, principalmente em populações maiores e em áreas onde a agricultura e a pecuária entraram em declínio.
“Pelo que vimos em campo, há uma queda na pressão de caça, especialmente nas serras do Sul e do Sudeste, onde terras que foram colonizadas muitos anos atrás estão sendo abandonadas, as matas estão renascendo e as antas ocupam esses espaços”, diz Flesher.
O pesquisador cita um caso: “no Parque Estadual da Serra do Mar, em São Paulo, onde tem uma das populações mais importantes do Brasil, os animais estão começando a descer ao ponto de quase entrar na cidade de Caraguatatuba.”