Por Elisa Ilha
Bióloga, mestra em Biologia Animal pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). É pesquisadora colaboradora do Laboratório de Sistemática e Ecologia de Aves e Mamíferos Marinhos (Labsmar/UFRGS) e do Projeto Botos da Barra (Ceclimar/UFRGS)
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Há um ano, densas manchas de petróleo de origem desconhecida atingiam o litoral nordestino. As manchas, registradas inicialmente na Paraíba, em 30 de agosto de 2019, antecipavam aquele que se tornaria o maior vazamento de petróleo em extensão registrado na costa brasileira e o maior “desastre” ambiental já ocorrido em regiões costeiras tropicais do mundo.
Em quatro meses, o óleo atingiu mais de mil localidades em onze Estados brasileiros, mais de 130 municípios e mais de 55 unidades de conservação. Foram diretamente afetadas, no mínimo, 27 espécies costeiras ameaçadas de extinção e, pelo menos, 870 mil pessoas vinculadas ao mar. Devido à circulação oceânica e às correntes marinhas da região onde ocorreu, a disseminação do óleo se estendeu por cerca de três mil quilômetros, desde o Maranhão até o norte do Rio de Janeiro. Foram recolhidas mais de 5,3 mil toneladas de resíduos nas áreas atingidas. Em junho deste ano houve, ainda, o reaparecimento de manchas de óleo em algumas praias do Nordeste.
Mas, o que aconteceu? Qual a origem do petróleo? Quem são os responsáveis? Quais são os maiores impactos? O que se sabe um ano depois?
Até o momento, ainda não são conhecidos os responsáveis pelo ocorrido e não houve, tampouco, quem assumisse a responsabilidade. A investigação – que segue sob sigilo e ainda não está concluída – é conduzida pela Marinha do Brasil que, em agosto de 2020, encaminhou os resultados da primeira fase à Polícia Federal, que instaurou o inquérito criminal.
Dentre o que foi divulgado, indica-se que o derramamento ocorreu à 700 quilômetros da costa brasileira e que o óleo se deslocou submerso por 40 dias até alcançar o litoral. A hipótese principal é de que aproximadamente 2,5 milhões de toneladas de petróleo tenham sido derramadas – acidental ou intencionalmente – por uma embarcação navegando em alto mar. Outras possibilidades averiguadas são a de vazamentos oriundos de naufrágios (antigos ou recentes) ou de plataformas de extração.
Ainda, pesquisas analisaram amostras de óleo coletadas nos estados da Bahia e de Sergipe e às compararam com amostras de óleo produzidos no Brasil, no Oriente Médio, na Nigéria e na Venezuela. Os resultados indicam que o óleo que atingiu o Brasil possui características geoquímicas compatíveis com as do petróleo produzido em território venezuelano. Isto não significa, contudo, que o vazamento tenha sido responsabilidade de navios, plataformas ou empresas venezuelanas. A Marinha do Brasil corrobora, também, está hipótese frente à outras recentemente levantadas. Saber a origem do petróleo ajuda a traçar algumas possibilidades. Uma das embarcações que já foi alvo da investigação (e que, a princípio, já foi descartada) é, por exemplo, o petroleiro Bouboulina, de bandeira grega, que levava petróleo da Venezuela até a Malásia.
Já se sabe, também, que o petróleo cru encontrado tem alta viscosidade, alta densidade e concentrações baixas de compostos voláteis. A partir dessas características, os principais comportamentos esperados para o óleo no ambiente marinho são os baixos níveis de evaporação, a persistência no ambiente (ou seja, o óleo não se degrada facilmente), a possibilidade de afundar em águas salobras ou se misturado com areia (devido à alta densidade), uma baixa toxicidade potencial mas com considerável potencial de sufocação física de organismos marinhos que entrarem em contato direto com o material (dada à alta viscosidade e densidade).
A alta densidade, é também responsável pela falha de detecção do óleo antes dele atingir os ambientes costeiros e por significar uma ameaça tão importante à ecossistemas submersos, naturalmente sensíveis e atingidos, como os recifes de corais. É essencial acrescentar que, além do impacto do petróleo, houve, neste último ano, um aumento em massa no branqueamento de corais no Nordeste devido, principalmente, ao estresse térmico (pelo aumento da temperatura superficial da água do mar).
Na região impactada, unidades de conservação como a Área de Proteção Ambiental (APA) Costa dos Corais e o Parque Nacional Marinho (Parna) dos Abrolhos protegem alguns dos maiores complexos de recifes de corais do oceano Atlântico Sul Ocidental, ecossistemas de alta biodiversidade e endemismos (com espécies que só ocorrem nesses locais). No que diz respeito aos mamíferos marinhos, por exemplo, o Parma dos Abrolhos abrange a principal área reprodutiva das baleias-jubarte (espécie que recentemente saiu da Lista Nacional Oficial de Espécies da Fauna Ameaçadas de Extinção) e a APA Costa dos Corais abriga áreas de ocorrência do peixe-boi-marinho (uma das espécies de mamíferos mais ameaçadas no país, classificada como “Em Perigo” de extinção).
Além dos recifes de corais, o derramamento também afetou outros ecossistemas tropicais únicos e ameaçados como manguezais e estuários, praias arenosas, costões rochosos, bancos de rodolitos e bancos de fanerógamas marinhas. Registrou-se – e ainda se registra – diversos espécimes da fauna afetados pelo óleo, como peixes, crustáceos, moluscos, mamíferos, aves e tartarugas-marinhas (dentre as quais, diversas também ameaçadas). Os impactos de contaminação nas redes tróficas alimentares estão sendo observados e estimados, assim como o potencial de bioacumulação. Estima-se, ainda, que os impactos – que são cumulativos – podem durar por mais de uma década.
Tanto a bioacumulação nas redes tróficas como a contaminação das águas afetam – diretamente – a segurança e a soberania alimentar, a economia, a subsistência e a saúde de povos e comunidades tradicionais e demais cidadãos que vivem nas regiões atingidas. A renda média mensal da população potencialmente exposta é de R$ 400 e as largas jornadas de trabalho associadas à pesca ou vinculadas ao turismo local (como atividades ambulantes) agravam os riscos relativos pelo tempo de exposição em ambientes contaminados. Em algumas comunidades, houve uma queda de 80% na renda de pescadores/as artesanais após o derramamento, em uma situação que rapidamente se agravou com a chegada da pandemia do coronavírus.
No ano passado houve a disponibilização de dois seguros-defeso extras para pescadores/as artesanais (o seguro-defeso tem um valor semelhante ao salário mínimo), mas nem todos os atingidos foram contemplados e os impactos do óleo seguem presentes até os dias de hoje. Segundo a Marinha do Brasil, 65 mil pescadores/as artesanais foram atendidos, mas estimativas iniciais (baseadas no número de pescadores profissionais artesanais cadastrados no Sistema Informatizado do Registro Geral da Atividade Pesqueira) indicam que, no mínimo, 159 mil foram afetados.
A dimensão trágica do “desastre”, entretanto, amplificou-se pela demora do governo federal em reagir de forma responsável. Além de tardias, as ações de contenção foram desordenadas e pouco transparentes, além de irrisórias quando comparadas à dimensão dos impactos socioambientais e econômicos. Tal como pode ser entendido como um modus operandi do governo federal, assistimos declarações que minimizavam os impactos, que propagavam desinformações (conspirações e falsas acusações) e que desacreditavam informações técnicas e científicas concomitantemente geradas, que poderiam ter ajudado a reduzir os danos.
Por outro lado, mobilizou-se uma extraordinária articulação e reação da sociedade civil (voluntários/as, organizações não governamentais, moradores/as) que, bravamente, limpou grande parte do óleo com as próprias mãos. Tais limpezas foram executadas através doações voluntárias e, muitas vezes, sem os equipamentos de segurança necessários. É certo que houve, também, a participação dos governos estaduais e municipais e também de militares. A Marinha do Brasil, inclusive, parece ter assumido maior protagonismo de atuação, se comparado ao Ministério do Meio Ambiente ou ao próprio governo federal e, talvez, pelo próprio interesse de soberania nacional frente à Amazônia Azul.
Um dos símbolos da negligência que caracteriza este “desastre” seja, talvez, o próprio Plano Nacional de Contingência para Incidentes de Poluição por Óleo em Águas sob Jurisdição Nacional, que foi acionado apenas 43 dias após o início do derramamento. Em meados de outubro, o Ministério Público Federal entrou, inclusive, com uma ação civil pública contra a União por omissão sobre manchas de óleo. Ela solicitava, em situação de emergência, a execução imediata do Plano Nacional de Contingência, através da documentação da negligência da União e sendo assinada pelos procuradores da República de todos os Estados atingidos.
Ainda, segundo uma das pesquisas que mais aprofundou o levantamento de fatos, é importante relembrar, também, que no início de 2019 o governo federal extinguiu diversos colegiados da administração pública federal. Dentre eles, estavam os comitês executivo e de apoio ao Plano Nacional de Contingência que, se existentes, deveriam representar a autoridade nacional do plano e fomentar sua capacidade de resposta, respectivamente.
Um ano depois, segue-se esperando que o Plano Nacional de Contingência seja executado por completo. Segue-se aguardando que a Marinha do Brasil e a Polícia Federal avancem na investigação e acionem (de acordo com a Constituição Federal) o princípio do poluidor-pagador ao responsável, destinando, assim, os recursos devidos a recuperação, mitigação, compensação ambiental e justiça social. Segue-se, ainda, esperando que recursos financeiros sejam disponibilizados para as pesquisas e as universidades públicas brasileiras que, apesar das adversidades enfrentadas, têm sido as principais responsáveis por gerar uma base robusta de dados (algumas das quais compiladas no decorrer deste artigo) para que se possa enfrentar os impactos.
Contudo – mesmo que disfarçado de incompetência administrativa –, houve uma clara estratégia de não-reação do governo federal frente ao derramamento do óleo no litoral brasileiro, assim como há nos outros “desastres” vigentes. Não à toa, acompanhamos a inércia governamental na contenção de danos – escancaradamente substituída pelo incentivo ao desmatamento ilegal – que mantêm intencionalmente a Amazônia, o Pantanal e o Cerrado em chamas. Não à toa, repete-se a mesma negligência com a saúde pública de povos e comunidades tradicionais e outros cidadãos em situação de vulnerabilidade, agora, com o “desastre” da pandemia do coronavírus. Nada disso foi diferente do descaso estatal com os graves “desastres” de Brumadinho e de Mariana.
O questionamento latente é, então, por que naturalizamos como “desastres” processos inerentes ao desenvolvimento? Por que não os enfrentamos, enfim, como processos que convém aos grupos políticos e econômicos dominantes, que se nutrem da perpetuação dos problemas, ocultam suas responsabilidades e prejudicam desproporcionalmente grupos sociais vulneráveis?
A manutenção desse formato de progresso, reiterada na retórica daqueles que o defendem, trata-se, somente, “de uma ilusão de cidadania dentro de mecanismos atualizados de crueldade institucionalizada”. E é preciso enfrentar, assim, cada omissão, cada corte de verba, cada legitimação do desmonte da política ambiental, cada exclusão da participação social, cada decisão que opta por aumentar, cada vez mais, as desigualdades econômicas e sociais, como uma escolha administrativa consciente de não-ação. Não seria mais correto, então, nominar os “desastres”, tais como são, de crimes socioambientais?
Se você se interessou pela discussão, outros materiais interessantes são: live no canal Ecoando Sustentabilidade, com pesquisadores que vivenciaram de perto o derramamento (Marcelo Soares/UFC e Pedro Pereira/PCR/GEF-MAR); o episódio “O óleo nas praias do nordeste: um ano depois” do podcast Café da Manhã da Folha com o jornalista que conversou com comunidades diretamente afetadas (João Pedro Pitombo/Folha); Valencio (2019) “Desastres no Brasil: a face hídrica do antidesenvolvimento” (capítulo 4).
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