Por Kamila Bandeira
Bióloga com mestrado e doutorado em Zoologia pelo Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). É pesquisadora do Museu Nacional da UFRJ e da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Suas pesquisas estão focadas em Paleontologia de vertebrados
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No final de 2020, uma nova espécie de dinossauro brasileiro despontou em vários canais de notícias: o Ubirajara jubatus, um estranho terópode que apresentava uma densa cobertura de penas lembrando uma “juba” ao longo do corpo, além de um inesperado par de estruturas rígidas que provavelmente estariam em seus ombros. Essas armações rígidas são exclusivas desse animal e foram interpretadas como um tipo de estrutura possivelmente utilizada para atrair parceiros durante a época do acasalamento ou assustar inimigos, como muitas aves fazem hoje.
Essa nova espécie foi coletada em rochas com cerca de 110 milhões de anos, da Formação Crato, na Bacia do Araripe – uma unidade geológica situada entre os estados do Ceará, Pernambuco e Piauí – e a pesquisa foi publicada na revista científica Cretaceous Research. O Ubirajara foi identificado como um terópode do tipo compsognatídeo e um dos resultados da pesquisa indica que o novo dinossauro brasileiro é um “parente” próximo do dinossauro jurássico Compsognathus, encontrado na Europa.
De forma geral, os compsognatídeos são uma linhagem de dinossauros que é bastante rara nos continentes do sul. Além disso, esse pequeno animal também foi o primeiro dinossauro não aviário encontrado no antigo supercontinente de Gondwana com pele preservada. Assim, é inegável que essa descoberta tem extrema importância para a paleontologia.
Porém, uma série de problemas acompanham essa pesquisa. A primeira delas, e uma das mais graves, é como esse material saiu daqui do Brasil e como ele foi parar na Europa. Um outro problema é que o grupo de pesquisa que a conduziu é composto apenas por pesquisadores estrangeiros e sem participação de nenhum paleontólogo brasileiro. Esses dois problemas já vão diretamente contra duas medidas legislativas brasileiras: o Decreto-lei nº 4.146 /1942 , em que qualquer movimentação para o exterior de fósseis brasileiros deve ser validada pelo governo federal, e a Portaria MCT nº 55, um regulamento sobre os procedimentos de coleta de dados e materiais brasileiros por estrangeiros. Um terceiro problema é que dois dos pesquisadores que participaram da pesquisa do Ubirajara já são bastante conhecidos no meio acadêmico por trabalharem com fósseis brasileiros saídos de forma duvidosa no país nos últimos 30 anos – sendo assim, um problema já antigo. Um desses pesquisadores, o britânico David Martill, em particular, é também conhecido por deliberadamente soltar comentários homofóbicos, racistas, misóginos e que depreciam as pesquisas brasileiras durante as entrevistas.
Como resultado, os cientistas brasileiros lançaram uma campanha pela repatriação dos fósseis pelo Twitter por meio da hashtag #UbirajaraBelongsToBR (#UbirajaraPertenceAoBR), além de a Sociedade Brasileira de Paleontologia atualmente conduzir uma tentativa de repatriação do fóssil. Por causa dessa pressão, a revista científica Cretaceous Research tirou do ar a publicação do Ubirajara em 29 de dezembro. Apesar de tal atitude não invalidar nem a espécie nem a pesquisa em si, o ato é extremamente simbólico para a comunidade científica. Essa retirada temporária do artigo mostra que é preciso um maior esforço não só dos pesquisadores, mas das próprias revistas científicas e do processo de revisão em si, no qual os artigos científicos são submetidos. É sempre necessário checar a veracidade dos dados apresentados não só pelas questões científicas, mas também pelas questões éticas sobre a pesquisa em si.
O Ubirajara pode não ter sido o primeiro fóssil brasileiro objeto de tráfico, mas espero que tenha sido um bom exemplo para ser um dos últimos.
Para saber mais
– Smyth, Robert S. H.; Martill, David M.; Frey, Eberhard; Rivera-Silva, Hector E. & Lenz, Norbert. 2020. A maned theropod dinosaur from Brazil with elaborate integumentary structures. Cretaceous Research. doi:10.1016/j.cretres.2020.104686
– Reportagem da Folha de S. Paulo sobre o Ubirajara
– Reportagem da Galileu sobre o Ubirajara
– Nota da Sociedade Brasileira de Paleontologia sobre a tentativa de repatriação
– Vídeo do canal Colecionadores de Ossos sobre o tráfico de fósseis
– Leia outros artigos da coluna TÚNEL DO TEMPO
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