Uber Monkey, IA e “coração de mãe”: sempre cabe mais uma ameaça à fauna

Há alguns dias atrás, eu assisti a uma apresentação de trabalho de conclusão de curso (o famoso TCC) de um colega membro do meu laboratório de pesquisa de formação. De casa, assistindo pelo Google Meets, eu acompanhei também, brevemente, as observações da banca avaliadora e a discussão.

Foi nesse momento que eu, que não tenho mais redes sociais, ouvi um comentário que me deixou a par de um recente vídeo viral que não só me chocou como chocou a todos, presentes e virtuais. O que ouvimos foi algo como: “Eu vi que agora, em Dubai, eles colocaram, no aplicativo do Uber, a opção de você pedir um Orangotango como motorista. Aparece assim, a opção ‘Uber Monkey‘, e tem até um emoticon”. A primeira reação de todos foi, é claro, repleta de expressões diversas sobre como o dinheiro compra tudo, menos o atraso do “fim do mundo”.

Eu, como tenho uma sacrificante mania de checar toda e qualquer informação que passa por mim na internet, pensei “Não é possível” (ou “não quero acreditar, tem que ser mentira”) e fui pesquisar. “Homem viraliza ao pedir ‘Uber Macaco’ por cerca de R$ 30 mil em Dubai” foi a manchete que eu encontrei no Google quando pesquisei o que ouvi.

Depois de assistir ao vídeo na íntegra – que, infelizmente, realmente continha imagens de um orangotango abrindo para ele a porta de um carro de luxo –, atestei que tal homem era, aparentemente, o único usuário da world wide web a se filmar pedindo o tal “Uber Macaco” (que na verdade é um símio, ou ape, e não um macaco). Estranhando a “extrema exclusividade” desse suposto milionário emirati, li um pouco mais a fundo e esbarrei com a informação de que tudo era uma estratégia de marketing da própria empresa Uber.

Mesmo passadas algumas horas desde a defesa de TCC do meu colega, na qual ele foi aprovado, é claro, não hesitei em mandar uma mensagem de áudio, via WhatsApp, contando a ele, animada, que, (ainda bem) “O Uber Monkey é fake!”. Porém, mais tarde naquele mesmo dia, desatei a pensar sobre quantas e quais pessoas que estavam assistindo àquela mesma arguição fizeram o mesmo que eu (pesquisar). Ademais, no contexto em que o tal vídeo viral foi citado pelo meu colega, a discussão era, afinal de contas, sobre a desinformação causada por certos tipos de exibição (e exploração) de animais silvestres na mídia. Foi assim que eu acessei novamente o celular e a nossa conversa para, tristemente, me contradizer: “Aliás, ignore o que eu disse, não faz a menor diferença se é fake ou não”. Faz?

Cenas artificiais, consequências reais

É óbvio que, para os indivíduos orangotangos (micro) e para seus conservacionistas, a “inexistência terrena” de uma opção num aplicativo de uma companhia de transporte, que os obrigaria a, além de viver em cativeiro, “performar” em cenários antropogênicos, é fonte de paz e tranquilidade. Mas num cenário maior e mais distante (macro), o estrago desta “existência virtual” existe e já está feito: está impressa, neste exato momento, na cabeça de milhões de pessoas, não só aquelas presentes na arguição de meu colega, a imagem de um orangotango não como um símio, nosso primo evolutivo, extremamente raro e ameaçado de extinção, mas como um absurdo e desajeitado “motorista de aplicativo”.

É como, por exemplo, quando assistimos a um filme de terror e sentimos susto, medo, ansiedade e, bem, terror. Faz diferença alguém nos acalmar dizendo que é só um filme que não pode nos machucar? Talvez um pouco, mas a verdade é que, para a maioria das pessoas, não exatamente. Em outras palavras, a forma como imagens são percebidas e digeridas por nós tem consequências reais – com poderosas, profundas e, frequentemente subestimadas, implicações sociais – pouco importando se as imagens são virtuais (ou falsas).

Na prática, nessa interface humano-virtual, prescinde no que alguém, em seu consciente, acredite – as informações são injetadas automática e diretamente à nossa memória subconsciente, estando prontas para estabelecer um novo modelo de ações e eventos a partir dele. A nível individual, estas informações serão como lentes através das quais as pessoas agora irão enxergar. E em nível de sociedade? Bom, aí só o tempo poderá dizer. Mas se me perguntassem, eu diria que as minhas previsões não são das melhores.

Inteligência artificial

Ainda passeando pelo triplex que esse caso do Uber Monkey alugou na minha cabeça, procurei, na literatura, o que os cientistas andam dizendo sobre o impacto que o crescente uso da inteligência artificial (IA) pode ter na proteção e conservação da fauna silvestre e, para ser justa, encontrei alguns cenários positivos. A IA pode ser incorporada em veículos automobilísticos para detectar animais silvestres na pista e reduzir acidentes de atropelamentos; pode ser utilizada para rastrear o tráfico de animais silvestres, focos de poluição e perigos de pandemias zoonóticas e até mesmo evoluir os atuais testes de cosméticos, drogas e toxinas, sendo capaz de reduzir drasticamente a crueldade à animais usados em laboratório.

Em suma, a conclusão é que a IA é, afinal de contas, mais uma faca de dois gumes vinda ao mundo pelas mãos do Homo sapiens sapiens. O escopo de ameaças ao meio ambiente em prol do nosso desenvolvimento tecnológico parece ser, enfim, como um “coração de mãe” – incrivelmente espaçoso, generoso e infinito. Aliás, infinito?

A única coisa capaz de “explicar” a essa faca se ela deve cortar um queijo e não uma pessoa chama-se regulação. Códigos de ética, guias de uso responsável e legislações sobre inteligência artificial e o mundo digital/virtual em geral devem também considerar os animais. Da mesma forma, em observância aos princípios federais de prevenção/precaução, as leis de proteção animal e ambiental precisam passar por atualizações em relação à IA. E de forma, preferencialmente, célere – o mais rápido possível. Nem que para isso a gente acabe precisando, ironicamente, recorrer aos recursos da própria.

Referências

• https://link.springer.com/article/10.1007/s13347-023-00627-
• https://www.woah.org/en/article/the-next-big-threat-to-animal-health-emergencies-misinformation-and-disinformation/

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