Transporte aquaviário: desafio em áreas protegidas

O transporte aquaviário é uma engrenagem vital da economia global — eficiente, estratégico e em constante expansão. No entanto, à medida que cresce, também aumentam os desafios para equilibrar desenvolvimento e conservação. No Brasil, onde mais de 1,3 bilhão de toneladas foram movimentadas pelos portos em 2024, segundo a Agência Nacional de Transportes Aquaviários (ANTAQ )[1], áreas marinhas protegidas enfrentam uma pressão crescente.

A falta de regras específicas, impactos cumulativos e ausência de integração entre os setores ameaça não só a biodiversidade, mas a sustentabilidade do próprio setor marítimo.

Mesmo sendo um dos mais antigos meios de transporte da humanidade, muitos dos seus impactos ainda não são compreendidos, quantificados, valorados ou mitigados. Acompanhando a expansão do modal, estratégias nacionais têm investido em obras de dragagem de canais, derrocagem e ampliação da infraestrutura portuária. Nesse cenário, a transição energética ganha protagonismo na responsabilidade ambiental.

Paralelamente, cresce a percepção sobre a importância e necessidade da manutenção de ecossistemas marinhos e costeiros saudáveis e resilientes, fundamentais para a manutenção do setor. Nesse contexto, surgem oportunidades para o desenvolvimento de práticas sustentáveis que vão além da descarbonização, integrando ações com responsabilidades climáticas, soluções baseadas na natureza e mecanismos como os créditos de biodiversidade, adaptados a diferentes escalas e realidades.

Impactos do transporte aquaviário

Embora o transporte aquaviário seja o mais eficiente do ponto de vista operacional e ambiental, ele provoca impactos significativos sobre a fauna aquática. Entre os principais, destacam-se o risco de colisão com animais aquáticos, poluição do ambiente por combustíveis, deposição de água de lastro e resíduos das embarcações, perturbação da fauna por poluição sonora, atmosférica e pelo despejo no meio aquático das cargas transportadas; extinção da fauna bentônica; e interrupção da movimentação da fauna devido à interferência na conectividade dos ambientes e supressão de seus hábitats.

Ainda, os impactos do transporte aquaviário podem extrapolar a fauna aquática, podendo afetar a fauna terrestre pela supressão da vegetação e alteração dos ambientes adjacentes. Hidrovias e canais de navegabilidade podem atuar como efeito barreira, impedindo a conectividade das populações terrestres. Foi o caso do Parque Nacional do Superagui, no estado do Paraná, onde acredita-se que a abertura do Canal do Varadouro com seis quilômetros de extensão, iniciada de forma manual por moradores em 1820 e assumida pela iniciativa governamental em 1950, isolou duas subpopulações de mico-leão-da-cara-preta, Leontopithecus caissara, impedindo o fluxo gênico, aumentando o risco de extinção da espécie, que atualmente é classificada como “em perigo” na Lista Oficial da Fauna Brasileira Ameaçada de Extinção [2].

Nessa região, componente do Complexo Estuarino Lagunar, inserida na Grande Reserva Mata Atlântica, a ordenação de todo tipo de modal é imperiosa e medidas devem ser adotadas com o objetivo primordial de proteção do patrimônio natural.

Atualmente, cerca de 26% da Zona Econômica Exclusiva brasileira está sob algum tipo de proteção, distribuída em aproximadamente 190 unidades de conservação. No entanto, apenas cerca de 2,5% dessa área corresponde a unidades de proteção integral, com restrições mais rigorosas à atividade humana.

Gerenciar os riscos e os impactos das atividades humanas dentro das unidades de conservação é uma tarefa fundamental — e muitas vezes subestimada. No caso do transporte aquaviário, seus efeitos sobre essas áreas protegidas nem sempre são totalmente mensurados ou considerados em políticas públicas e estratégias de planejamento.

Historicamente, por exemplo, muitos dos impactos do transporte marítimo em áreas marinhas protegidas não têm sido abordados. A complexidade do tema envolve desde a conservação ambiental até questões de segurança marítima e cumprimento de normas em níveis nacional e internacional.

Regulação e gestão integrada para proteger áreas marinhas sensíveis

Nesse panorama, torna-se urgente a adoção de medidas rigorosas voltadas ao transporte aquaviário em áreas protegidas. A proteção efetiva da biodiversidade marinha exige mais do que delimitação territorial: requer fiscalização contínua, gestão integrada e um compromisso real com práticas sustentáveis.

Entre as principais legislações e convenções que regulamentam a questão estão a Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar (Unclos), a Convenção sobre Diversidade Biológica, a Marpol (Prevenção da Poluição por Navios), a Lei n° 9.885/2000, que cria o Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza (Snuc), a Lei nº 9.537/1997 e o Decreto nº 2.596/1998, que dispõem sobre a regulamentação do tráfego aquaviário.

Atualmente, grande parte do tráfego marítimo ocorre sem restrições específicas. Algumas atividades relacionadas ao transporte aquaviário precisam ser proibidas, enquanto outras podem ser ordenadas — levando em conta fatores como o tipo de embarcação, a frequência de navegação e a sazonalidade de espécies sensíveis na região.

Nem sempre o tráfego representa, por si só, um risco direto aos objetivos de conservação da área protegida. Quando ele é estabelecido com regras claras, pode contribuir para o uso público e fortalecer os objetivos da conservação das áreas protegidas e da fauna. É o caso do Refúgio de Vida Silvestre Ilha dos Lobos, em Torres (RS), onde o ICMBio aprovou um plano de uso público, permitindo a observação de lobos-marinhos (Arctocephalus australis) e leões-marinhos (Otaria flavescens) que habitam a formação rochosa nos meses mais frios do ano, a partir de embarcações. A circulação com caiaque e stand up paddle também será liberada. Limites de distância de aproximação e quantidade e frequência de passeios estão em fase de definição. No entanto, em nenhum dos casos, o desembarque e a interação com os animais serão permitidos. É previsto ainda que as autorizações dos passeios poderão ser cassadas sempre que as regras não forem cumpridas.

Por outro lado, quando identificado algum grau de ameaça aos objetivos da área protegida, ele deve ser devidamente mitigado. É fundamental estabelecer com clareza quais atividades podem ou não ser realizadas nessas áreas, considerando o tipo e a intensidade dos impactos que geram, bem como a movimentação natural das embarcações.

O cumprimento das restrições não deve se limitar às exigências legais. Acordos voluntários entre o setor público, privado e a sociedade civil podem desempenhar um papel importante na redução de danos e na melhoria dos resultados de conservação. Medidas como a diminuição de ruído subaquático e a implementação de sistemas de detecção e notificação de grandes cetáceos para a navegação comercial são exemplos de boas práticas que conciliam segurança e sustentabilidade e podem ser lidos aqui na coluna.

Os efeitos cumulativos do transporte marítimo tendem a gerar impactos crônicos sobre a saúde e a produtividade dos ecossistemas marinhos. Por isso, a realização de qualquer atividade que possa perturbar, danificar ou destruir a fauna marinha ou seus hábitats deve ser cuidadosamente avaliada — e, quando necessário, proibida.

Em geral, podem ser permitidos: navegação de passagem (sem parada ou pesca), navegação para turismo ecológico regulamentado (como observação de baleias), navegação para pesquisa científica autorizada, transporte marítimo em rotas internacionais, com restrições. Ancoragem em áreas sensíveis, como recifes, deve ser proibida. Situação que acontece nas piscinas naturais das Galés de Maragogi, na área de Proteção Ambiental (APA) da Costa dos Corais, onde a ancoragem de embarcações fora das poitas construídas para esse fim é proibida (ICMBio, 2009).

O transporte aquaviário é essencial para o desenvolvimento econômico, assim como a conservação de áreas marinhas protegidas é vital para a resiliência dos oceanos. Portanto, é necessário ampliar o conhecimento e a percepção pública sobre o tema e aprofundar a compreensão sobre os impactos cumulativos desse setor.

Educação é essencial

Nesse ponto, a educação para a transformação da percepção é crucial. E o Brasil apresentou expressivo avanço em educação ambiental quando, recentemente, assumiu papel de protagonista mundial na inserção da cultura oceânica nos currículos escolares, demonstrando o compromisso brasileiro com os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) e com a Década das Nações Unidas da Ciência Oceânica para o Desenvolvimento Sustentável (2021-2030).

A cultura oceânica promove a visão integrada do oceano, abordando diversos aspectos sobre o seu uso e conservação, reconhecendo-o como fonte essencial para a vida no planeta. E nesse contexto as áreas protegidas assumem papel de destaque.

Cada área marinha protegida apresenta características únicas, que podem ser influenciadas por diferentes tipos de impactos relacionados ao transporte. Isso exige uma abordagem específica para cada caso, com medidas de gestão tecnicamente avaliadas nos planos de manejo das unidades e adaptadas aos tipos de risco identificados. A categorização desses impactos permite aplicar ferramentas de regulação mais eficazes.

A gestão do transporte aquaviário precisa estar integrada à gestão ambiental das áreas costeiras e oceânicas. É imprescindível que as instituições cumpram as normativas, se responsabilizem e que, na ponta, comandantes, práticos e sociedade em geral recebam informações claras e acessíveis sobre as áreas protegidas, incluindo orientações sobre como minimizar riscos durante a navegação.

Por fim, para alcançar as metas globais de conservação não basta expandir a cobertura das áreas protegidas. É fundamental garantir a qualidade da gestão e da articulação intersetorial. Governança de qualidade é tão importante quanto a expansão. O enfrentamento dos impactos do transporte aquaviário sobre áreas costeiras e marinhas protegidas deve ser mitigado e compensado e fazer parte de uma estratégia transversal e urgente.

Referências

• [1] ANTAQ. Desempenho Aquaviário 2024. SESGI. Superintendência de ESG e Inovação. GEA. Gerência de Estatística e Avaliação de Desempenho. Resultados do ano de 2024. 18 fev 2025.
• [2] BRASIL, Ministério do Meio Ambiente e Mudanças do Clima. Portaria MMA nº 148, de 7 de junho de 2022. Diário Oficial da União, Seção 1, 7 de junho de 2022.
• [3] ADMINISTRAÇÃO DOS PORTOS DE PARANAGUÁ E ANTONINA – APPA. 2021. Programa de monitoramento da biota aquática e determinação de bioindicadores. Relatório anual do subprograma de monitoramento de cetáceos e quelônios. 74p.

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