O modal aquaviário e a interferência na conectividade do oceano

O transporte aquaviário desempenha papel fundamental na economia global, responsável por movimentar 90% das mercadorias produzidas no mundo. Nenhum outro modal é tão importante para os negócios internacionais. Para receber tanta movimentação, existem mais de 2 mil portos no mundo, com diferentes capacidades e especialidades. De acordo com a Agência Nacional de Transportes Aquaviários (Antaq), no Brasil existem mais de 235 instalações portuárias de cargas, que incluem portos, terminais marítimos e instalações aquaviárias.

Para realizar a ligação entre as instalações portuárias, existem infinitas rotas estabelecidas por rios, canais, lagos e oceano, que são navegadas por centenas de milhares de embarcações. Somente considerando navios mercantes com mais de 1 mil DWT (tonelagem de porte bruto), atualmente são mais de 100 mil em operação, de acordo com a Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento (Unctad, sigla em inglês).

O tráfego marítimo é regulado por uma série de convenções e acordos, bem como por órgãos reguladores nacionais e internacionais. As rotas marítimas que são seguidas pelas embarcações para navegação de um porto a outro são determinadas com base em fatores como a localização dos portos, a profundidade da água, as condições climáticas e as restrições de tráfego. Na imagem abaixo, pode-se ter uma ideia da quantidade de navios atravessando o oceano em operação no modal marítimo em 8 de abril.

Impactos do modal aquaviário sobre a fauna

Assim, um dos principais impactos do modal aquaviário sobre a fauna é a interferência que o transporte provoca na conectividade dos ecossistemas, com disrupção sobre a ligação dos organismos aquáticos com a zona costeira, as rotas migratórias, as áreas de alimentação e os sítios de reprodução. Um tema ainda com lacunas de diretrizes de avaliação e de gestão no modal aquaviário.

Conectividade e manutenção dos ecossistemas

A conectividade é essencial para o funcionamento e a manutenção da estrutura dos ecossistemas. Ela é definida pelo fluxo dos organismos pelas manchas de hábitats dos quais são dependentes em diferentes fases de vida e pela sustentabilidade dos serviços ecossistêmicos que as interligam. Identificar as zonas prioritárias e compreender os caminhos que ligam essas manchas é fundamental para avaliar a persistência das populações, a representatividade dos ambientes e a estabilidade dos sistemas.

No ambiente aquático, a conectividade vai além da superfície. Ele é um espaço tridimensional por onde os organismos se deslocam vertical, horizontal e diagonalmente, com estratificações verticais que vão desde as camadas superficiais da zona costeira ao nível do mar até zonas pelágicas e do oceano profundo. Por todo esse ambiente, existe um fluxo de diversidade biológica representada por propágulos, bentos, espécies dos baixos níveis tróficos até megavertebrados responsáveis pela manutenção dos ecossistemas saudáveis. A interrupção da movimentação de espécies migratórias que mantêm a conectividade entre diferentes zonas do oceano pode levar à extinção local de populações e, consequentemente, a redução da resiliência e viabilidade dos ecossistemas.

Projetos de pesquisa que executam o monitoramento de espécies marinhas migratórias de longas distâncias, como tartarugas, tubarões-baleia e misticetos, têm sido essenciais para fundamentar medidas mitigatórias sobre as rotas e zonas que precisam de proteção prioritária, visando a manutenção da conectividade para a vida marinha.

Informações provenientes sobre as baleias-franca-do-atlântico–norte (Eubalaena glacialis) têm sido norteadoras de medidas mitigatórias e de definições de políticas públicas nos Estados Unidos nesse sentido. Elas vão além de determinações sobre manutenção de distâncias mínimas de aproximação e redução da velocidade de embarcações em zonas pré-determinadas. Foi a partir de informações sobre locais de zonas de alimentação da espécie, que puderam ser definidas zonas e rotas (Atba – Area to be avoided, sigla em inglês) para serem evitadas por embarcações, com o reconhecimento da Organização Marítima Internacional (Imo, sigla em inglês).

Além dessas medidas, os dados do monitoramento já embasaram a alteração de percursos de rotas para que não ocorresse sobreposição como sítios de alimentação da espécie, além de reforçarem as rotas sazonalmente recomendadas para minimizar as distâncias percorridas pelas embarcações pelas áreas importantes do hábitat da baleia-franca-do-atlântico-norte.

Outra forma inovadora de gestão utilizando dados sobre presença da fauna é o reconhecimento pela Administração Oceânica e Atmosférica Nacional (Noaa, sigla em inglês) de Áreas de Manejo Dinâmicas (Dma, sigla em inglês). Elas são implementadas quando três ou mais indivíduos de baleia são observados agregados e uma zona de proteção é estabelecida ao redor dos animais por um período de 15 dias. Nesse período, as embarcações devem evitar a área com a presença dos animais e diminuir a velocidade em caso de proximidade da zona pré-estabelecida. Essas áreas são publicamente divulgadas por meio de noticiários e as partes interessadas também são diretamente comunicadas.

Colisão de grandes navios afeta conservação da megafauna marinha

De fato, a colisão de grandes navios com baleias é um dos grandes desafios contemporâneos para a conservação desses animais. Dessa forma, a Comissão Internacional das Baleias (Cib, ou Iwc, sigla em inglês) desenvolveu um plano estratégico buscando mitigar o problema. No Brasil, o Instituto Baleia Jubarte vem trabalhando para prevenir esses incidentes através de ações integradas à indústria portuária e de navegação. Na região do Banco dos Abrolhos, um grupo de trabalho (GT) coordenado pelo instituto conseguiu mudar as rotas de trânsito das barcaças de celulose e implementar um sistema de observadores de bordo durante a temporada de reprodução das baleias-jubarte (Megaptera novaeangliae), que tem resultado em zero incidentes.

Em outra parceria, com a Great Whale Conservancy e com o Projeto Baleia à Vista, também conseguiram implementar junto ao Terminal Almirante Barroso (Tebar) da Transpetro, o maior terminal de petróleo e gás da América Latina, um conjunto de recomendações voluntárias para reduzir o risco de colisões de navios-tanque com baleias, que está em funcionamento há dois anos sem registro de incidentes, de acordo com o coordenador de desenvolvimento institucional do Instituto Baleia Jubarte, José Truda Palazzo Junior.

Todas essas medidas mitigadoras são relevantes e necessárias para a proteção das espécies marinhas. Ainda mais nos cenários das projeções econômicas em que são previstos aumentos das capacidades portuárias com projetos de expansões que contam com medidas que refletirão em expressiva ampliação da capacidade do transporte no modal aquaviário, como mais automatização, quantidade e capacidade de instalações portuárias e das frotas em operação. Para isso, consequentemente, são previstos aumento da largura e profundidade dos canais de navegação, o que refletirá na alteração direta da dinâmica e conectividade do meio aquático.

Criação de unidades de conservação marinhas

Uma das medidas mundialmente efetivas para a proteção da vida marinha é a criação de unidades de conservação. Ainda que existam lacunas no conhecimento sobre como analisar a conectividade e utilizá-la como critério de avaliação de áreas protegidas, as conectividades ecológica e funcional precisam ser consideradas para o delineamento de unidades de conservação no ambiente marinho e de redes de áreas protegidas. São elas que garantem os serviços ecossistêmicos, o fluxo gênico, a resiliência às mudanças climáticas, e a manutenção da integração com a zona costeira.

Vale ressaltar ainda que, tanto a regulação do tráfego marítimo quanto a definição de redes de áreas protegidas e a manutenção da conectividade no oceano estão relacionadas com o aumento da colaboração transfronteiriça e com a participação em acordos e regulamentações internacionais. A conectividade tem posição destacada na Convenção da Diversidade Biológica de 2022, aprovada na COP-15, que reconheceu que a conectividade de todos os ecossistemas deve ser mantida, aumentada ou restaurada até 2050. Também houve a indicação de que, até 2030, pelo menos 30% dos ecossistemas existentes devem estar efetivamente conservados em sistemas de áreas protegidas bem conectados.

Albardão

No Brasil, 25% das áreas marinhas estão legalmente protegidas. No entanto, algumas áreas especialmente relevantes ainda enfrentam entraves para serem oficialmente protegidas, como a região do Albardão, no Rio Grande do Sul – haverá audiências públicas sobre a criação do Parque Nacional de Albardão em  29 e 30 de abril, nos municípios de Rio Grande e Santa Vitória do Palmar. Apesar de ser rota migratória de pinípedes (leões-marinhos, focas, elefantes-marinhos), baleias-francas-austrais (Eubalaena australis) e baleias-jubarte, representar uma geodiversidade que fornece abrigo para uma fauna bentônica endêmica, favorecer agregações reprodutivas para raias e tubarões, situada em região transfronteiriça com o Uruguai, é ameaçada pela constante movimentação da frota de embarcações.

Ainda que se tenha tido avanços na proteção do oceano, não se pode mais esperar pela legalização da proteção de áreas de extrema relevância para a conectividade ecológica marinha, porque o mar não para e nem o transporte pelo modal aquaviário.

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