Solturas bem-feitas são possíveis

Conversarei com a bióloga Vanessa Tavares Kanaan, pós-doutora em Ecologia e em Agroecossistemas pela Universidade Federal de Santa Catarina, doutora em Zootecnia pela Purdue University (USA) e graduada em Psicologia e em Biologia pela Campbellsville University (EUA).

Atualmente, Vanessa é coordenadora-geral do único centro de triagem de animais silvestres terrestres de Santa Catarina e diretora técnica do Instituto Espaço Silvestre. Sem dúvida, uma trajetória de quem entende de animais silvestres e é apaixonada por eles.

Eu a conheci quando ela ministrou uma palestra no evento Avistar de 2012 sobre a reintrodução do papagaio-do-peito-roxo, os “Roxinhos” com carinhosamente os chama. Aprendi muito sobre manejo de aves, técnicas de como prepará-las para soltura, alimentação, recinto, enriquecimento ambiental, etc. Se tornou uma referência para mim e para muitas pessoas que haviam iniciado com projetos de solturas ou áreas de solturas, como é o caso da nossa Área de Soltura Monitorada Cambaquara, em Ilhabela (SP).

Silvana Davino – Como foi ser a idealizadora do projeto de reintrodução do papagaio-de-peito-roxo, o Amazona vinacea? Como vocês conseguiram soltar os papagaios no Parque Nacional das Araucárias, em Santa Catarina?
Vanessa Tavares Kanaan – O projeto começou em 2010, quando eu era voluntaria do Centro de Triagem de Animais Silvestres de Santa Catarina. Naquela época, mantínhamos um grupo de papagaios-de-peito-roxo, porém não havia nenhuma movimentação para soltura ou encaminhamento. Quando questionei os órgãos ambientais porque não eram soltos, fui informada que era devido ao fato de serem ameaçados de extinção.

Considerando que os papagaios acabavam passando o resto de suas vidas no local, aquela informação não fez muito sentido para mim e perguntei se poderia iniciar um projeto para soltá-los. Sabendo da minha intenção, fui convidada pelo ICMBio participar da reunião do Plano de Ação Nacional para Conservação dos Papagaios da Mata Atlântica, onde conheci o ornitólogo Adrian Rupp. Ele havia realizado o levantamento de avifauna para o plano de manejo do Parque Nacional das Araucárias, onde havia indicado a oportunidade para reintrodução da espécie, uma vez que se encontrava extinta.

A coordenação do Cetas me permitiu utilizar o recinto para reabilitação do grupo de papagaios por quatro meses, período em que buscamos todos os parceiros e autorizações necessárias para iniciar o processo. Nesse contexto, o que era pra ser somente uma soltura, se tornou um projeto de reintrodução que existe até hoje.

Silvana Davino – Você acha que hoje em dia ainda existe muita resistência para a realização de solturas, mesmo sendo o maior “gargalo” dos centros de triagem e de reabilitação? De que maneira o seu trabalho fez a diferença nesse olhar a favor das solturas?
Vanessa Tavares Kanaan – Sim, existe muita resistência, principalmente porque ainda são realizadas muitas solturas sem atender critérios mínimos recomendados.

Além do projeto de reintrodução do papagaio-de-peito-roxo, o Instituto Espaço Silvestre montou uma força-tarefa com o apoio de instituições parceiras para, através do Programa Silvestres SC, realizar a soltura e o monitoramento de animais silvestres reabilitados no Cetas em todo o estado de Santa Catarina. Dessa forma, o programa aumentou a capacidade de recebimento de animais para reabilitação no centro de triagem, além de contribuir para o bem-estar animal e a conservação da fauna silvestre nativa.

O Silvestres SC também se propõe a reintroduzir espécies que foram localmente extintas em locais estratégicos, contribuindo para a manutenção de ecossistemas mais saudáveis ao longo do estado. Sendo assim, conseguimos implementar protocolos de soltura seguindo recomendações técnicas em nível estadual.

Silvana Davino – O que você considera uma soltura bem-sucedida? Desde o início do projeto, quantos papagaios já foram reintroduzidos no parque? Houve reprodução na natureza?
Vanessa Tavares Kanaan – Dos 500 papagaios-de-peito-roxo recebidos para reabilitação no projeto desde setembro de 2010, aproximadamente metade atendeu aos critérios sanitários, comportamentais e genéticos pata soltura no Parque Nacional das Araucárias. Temos pelo menos nove filhotes nascidos na natureza que foram monitorados pela nossa equipe, mas possivelmente existam outros que desconhecemos.

Na literatura existem diversas definições para solturas bem-sucedidas. Quando se trata de reintroduções, acredito que um objetivo importante seja o estabelecimento de uma população viável no longo prazo. Eu considero que uma soltura seja bem-sucedida quando o bem-estar do indivíduo foi melhorado ou quando o animal teve a oportunidade de cumprir seu papel ecológico ou até mesmo educar e engajar as pessoas em prol da conservação da natureza.

Silvana Davino – Após as solturas, o ideal é acompanhar a movimentação das aves. Como é feito esse monitoramento?
Vanessa Tavares Kanaan – Várias técnicas já foram utilizadas no monitoramento dos papagaios-de-peito-roxo: busca ativa e ponto de escuta realizadas por nossa equipe, uso de armadilhas fotográficas, rádio telemetria e ciência cidadã.

Silvana Davino – A cultura de aves em gaiola é muito forte no Brasil. Como vocês trabalham esse tema com a população do entorno às áreas onde os papagaios são soltos?
Vanessa Tavares Kanaan – Um projeto de reintrodução com resultados como os obtidos só é possível com a participação e o engajamento da comunidade local, aliada ao trabalho de parceiros como órgãos ambientais. Além do trabalho de educação ambiental realizado nas escolas, visitas às propriedades e às empresas, capacitação de professores e parceria com meios de comunicação locais. Ainda foi criada a Rede de Proteção ao Papagaio-de-peito-roxo visando responder a eventos envolvendo papagaios soltos. A comunicação é mantida pelo aplicativo WhatsApp.

A rede conta com membros do Instituto Espaço Silvestre, ICMBio, Ibama, Instituto do Meio Ambiente de Santa Catarina, Polícia Militar Ambiental, Polícia Civil, Procuradoria Pública, Conselho Consultivo do Parque Nacional das Araucárias e prefeituras de Passos Maia e Ponte Serrada. A Rede de Proteção ao Papagaio-de-peito-roxo melhorou efetivamente a comunicação entre atores locais importantes, resultando no aumento da fiscalização e em esforços de resgate de aves silvestres no parque e no entorno que trouxerem benefícios diretos e indiretos às aves soltas.

Silvana Davino – Desde o início do projeto de reintrodução, em 2010, até hoje, você percebe uma sensibilização maior no estado de Santa Catarina sobre a importância da conservação da fauna e da biodiversidade?
Vanessa Tavares Kanaan – Percebo sim. Não só no Estado, mas projetos de reintroduções estão mais frequentes em diversas partes do Brasil. Os profissionais que trabalham nessa área estão cada vez mais alinhados e unidos e os órgãos ambientais responsáveis pelas licenças estão mais abertos a analisar propostas.

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