Por Elisa Ilha
Bióloga, mestra em Biologia Animal pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). É pesquisadora colaboradora do Laboratório de Sistemática e Ecologia de Aves e Mamíferos Marinhos (Labsmar/UFRGS) e do Projeto Botos da Barra (Ceclimar/UFRGS)
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No artigo anterior, conversamos sobre a pesca cooperativa, uma relação interespecífica que surge da coexistência entre pescadores artesanais de tarrafa, botos e tainhas nas margens de dois estuários. Sobre como a presença de um, salvaguarda a presença do outro. E a presença de todos, salvaguarda os estuários, as relações ecológicas e as expressões socioculturais com as quais tecem teias. A indissociabilidade entre natureza e cultura.
Contudo, se olharmos para trás, para as políticas de conservação da natureza que foram implementadas no Brasil e no mundo, é necessário admitir que, historicamente, não respeitamos os vínculos entre natureza e cultura, desvalorizamos às relações traçadas e, ainda, violentamos direitos aos territórios de inúmeros povos e comunidades tradicionais.
De acordo com o modelo preservacionista vigente desde o século 19 e na concepção de parques norte-americanos, as primeiras áreas protegidas não admitiam a presença humana no seu interior. Baseadas, inegavelmente, numa retórica colonial, patriarcal e hegemônica, entendeu-se como natureza conservada, aquela natureza dita prístina. Sem gente, sem ninguém, sem cultura. Intocada. O “mito moderno da natureza intocada”, como denominou o pesquisador Carlos Diegues.
Tal visão preservacionista, no entanto, acabou por reproduzir um sem fim de injustiças sociais junto ao discurso de conservação da natureza. A própria lei do Sistema Nacional de Unidades de Conservação, o SNUC (Lei nº 9.985/2000), propiciou a expulsão e a realocação de povos e comunidades tradicionais residentes na delimitação de unidades de conservação “nas quais sua permanência não seja permitida”.
Entretanto, nos últimos anos, múltiplas pesquisas – tanto nacionais como internacionais – têm corroborado, enfim, àquilo que povos e comunidades tradicionais há muito argumentam a favor de seu direito constitucional à permanência em seus territórios. Suas presenças, práticas, culturas e cosmovisões são parte constituinte da natureza e garantem sua conservação.
Dentre tantas referências, já se tem evidência, por exemplo, de que a presença de povos originários na Amazônia influenciou em mais de 60% a atual composição florestal através da distribuição e manejo da floresta. Também, de que a Mata de Araucária presente no sul do Brasil expandiu-se em associação estreita aos assentamentos de etnias indígenas presentes nos planaltos sulinos. Até os dias de hoje, algumas das áreas mais preservadas da Mata Atlântica são territórios de comunidades quilombolas, que atuam como verdadeiras guardiãs da diversidade e dos remanescentes florestais.
Já no que se refere aos ambientes aquáticos, aos quais atentamos nesta coluna, as comunidades tradicionais vinculadas às águas, como pescadores/as artesanais, caiçaras, ribeirinhos/as e outras também contribuem para a conservação e a manutenção da biodiversidade aquática através de suas práticas culturais.
São, por exemplo, os pescadores artesanais de tarrafa que correm com os botos nas margens dos estuários. Os caiçaras que, através do seu modo de vida junto à Mata Atlântica costeira, ajudam a manter preservados os litorais Sul e Sudeste do país. Os tantos ribeirinhos e extrativistas que protegem as restingas e os mangues ao longo de rios e de praticamente toda costa atlântica brasileira.
Mundo afora, os maiores exemplos de efetividade em áreas protegidas marinhas e costeiras são, também, baseadas em estratégias de co-gestão e manejo comunitário dos bens comuns junto às comunidades locais. São pescadores/as artesanais que se unem para combater a sobrepesca; ou que redefiniram tamanhos mínimos de captura de espécies-alvo (sendo mais rígidos do que os parâmetros determinados em seu país) e autorregulamentam essas diretrizes; ou que através de seus conhecimentos tradicionais ampliam os conhecimentos científicos sobre a biodiversidade aquática, costeira e marinha, auxiliando no planejamento de estratégias de conservação.
Portanto, se almejamos a conservação dos ambientes aquáticos, é fundamental – em todos os âmbitos – a importância da dimensão humana para a governança dos oceanos, para a eficiência das áreas protegidas, para traçar estratégias de manejo adequadas para a sobrevivência da biodiversidade e para reforçar os direitos das comunidades locais sobre os bens comuns, os territórios e a soberania alimentar e nutricional.
E, até mesmo quando pretendemos a conservação de grupos específicos, como os cetáceos – os quais também damos atenção nesta coluna -, precisamos estar atentos à essas questões. Porque existem, de fato, poucos exemplos empíricos da efetividade das áreas marinhas protegidas para a conservação in situ desses organismos (e que incluem diversos desafios associados, sobre os quais conversaremos nos próximos artigos).
Mas, dentre esses poucos exemplos, um deles ocorre na Amazônia brasileira e é protagonizado na Reserva de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá (RDS Mamirauá). Neste trabalho, pesquisadoras/es avaliam as interações entre pescadores artesanais e o ameaçado boto-da-Amazônia (Inia geoffrensis), que aumentaram negativamente nos últimos anos.
Baseando-se nas percepções e nas atitudes dos pescadores, assim como nos programas estabelecidos pela atuação da RDS Mamirauá, os resultados do estudo sugerem que as interações negativas entre pescadores e botos (como, por exemplo, a captura incidental em redes de pesca) são frequentes, mas que, no entanto, a maioria dos pescadores tem atitudes positivas em relação aos botos, sendo elas influenciadas principalmente pela participação dos pescadores nos programas desenvolvidos pela RDS Mamirauá.
Os programas que influenciam nas atitudes positivas dos pescadores em relação aos botos parecem desempenhar um papel importante na limitação da mortalidade dos botos-da-Amazônia, que vem sofrendo declínio populacional. Os resultados também destacam a importância da fiscalização de base comunitária ao abordar a questão da captura ilegal do boto-da-Amazônia, um dos principais problemas atualmente enfrentados por essa espécie de cetáceo.
Vale ressaltar que as RDS são um tipo de unidade de conservação que tem como objetivo principal promover a conservação da biodiversidade, ao mesmo tempo que assegura as condições e os meios necessários para a reprodução social, a melhoria dos modos e da qualidade de vida por meio da extração racional e sustentada dos bens comuns pelas populações tradicionais, e que deve valorizar e conservar o conhecimento e as técnicas de manejo do ambiente desenvolvido por essas populações.
Dessa forma, além do compromisso que as ciências e os governos assumiram junto às metas internacionais para a conservação da natureza, é necessário assumir, também, a responsabilidade com a justiça social. Não há como falarmos em conservação da natureza se não defendermos também os direitos dos povos e das comunidades tradicionais. É imprescindível salvaguardar os direitos da natureza. É urgente manter vigente um modelo de conservação socioambiental.
Rumamos, enfim, para o fim de um ano que expôs ecocídios e genocídios tão escancaradamente quanto às mudanças ambientais e climáticas atingiram globalmente a natureza. Nem a agenda do desmonte ambiental nem a boiada podem continuar passando. O marco temporal não pode passar. Não existirá justiça climática sem equidade social. É hora de somar forças entre as lutas a favor das vidas!
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