Relato de experiência: o resgate da borboleta-estaladeira

No distrito de Praia Seca, em Araruama (RJ), inseto foi retirado de um restaurante e salvo de uma lagartixa.

Elidiomar Ribeiro da Silva

Licenciado em Ciências Biológicas, mestre e doutor em Zoologia pelo Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Professor do Departamento de Zoologia da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio), sendo responsável pelo Laboratório de Entomologia Urbana e Cultural.
Entomólogo, tem carreira centrada no estudo da taxonomia das ordens Ephemeroptera, Hemiptera e Lepidoptera, sendo que recentemente vem se dedicando ao estudo da presença simbólica de animais nas manifestações culturais, a chamada zoologia cultural. Com mais de cem artigos científicos publicados, cerca de 200 trabalhos apresentados em congressos científicos, nove livros editados e sete capítulos de livros, orientou dez dissertações de mestrado e três teses de doutorado. É idealizador e editor do periódico A Bruxa, uma revista de biologia cultural, e do fanzine sobre ciência Homem-Leoa. É também o criador e organizador do Colóquio de Zoologia Cultural e da Mostra de Biologia Cultural.

24 de julho de 2024

FAUNA NEWS Relato de experiência: o resgate da estaladeira

O distrito de Praia Seca está localizado no município de Araruama, na Região dos Lagos do estado do Rio de Janeiro, se estendendo por uma faixa arenosa extensa entre a Laguna de Araruama e o Oceano Atlântico. Entrecortado por lagoas e brejos, além de praias muito bonitas, o distrito está integralmente incluído na Área de Proteção Ambiental (APA) de Massambaba, unidade de conservação que protege a vegetação da restinga e o bioma de Mata Atlântica, bem como sua rica biodiversidade. É considerado um excelente local para a prática do ecoturismo, tendo já sido palco de estudos acadêmicos nesse sentido [1].

Há duas semanas, eu e minha esposa, a também entomóloga Luci Boa Nova Coelho, estivemos pelas bandas de Praia Seca. Lá ela me relatou ter visto duas borboletas popularmente conhecidas como “estaladeira” em voo, sendo que uma delas pousou no tronco de uma mangueira. No dia seguinte, ela tornou a ver borboletas da mesma espécie, inclusive tirando fotografias de um dos indivíduos – fotos essas que estão entre as que ilustram esta nossa presente conversa.

Os interessantes nomes populares estaladeira e estaladora são usados para designar as borboletas do gênero Hamadryas (ordem Lepidoptera, família Nymphalidae), que inclui mais de 20 espécies distribuídas do México à Argentina [2]. O nome comum desses insetos tem a ver com o barulho em estalo que é emitido pelos machos durante o voo [3]. No caso, as borboletas vistas e fotografadas por Luci são da espécie Hamadryas februa, a estaladeira-cinzenta.

A saga da estaladeira

Pois bem, estávamos eu e Luci conversando sobre o avistamento das estaladeiras, enquanto esperávamos os pratos do almoço, quando vimos que na porta do restaurante algumas borboletas estavam em situação difícil. A porta estava aberta e, logo acima do portal, um basculante de vidro liso permitia a entrada da luz do dia, tornando ali um dos locais mais iluminados do recinto. No vidro, cuja extensão vai até quase o teto, algumas borboletas de diferentes espécies se batiam, tentando sair do restaurante. Batiam, paravam, batiam, paravam, tornavam a bater… Tudo na vã tentativa de escape.

A maioria das borboletas estava bem no alto, altura essa que inviabilizava qualquer tentativa de resgate e soltura. Mas uma, em especial, estava ao alcance das minhas mãos – isso se eu, do (não tão) alto do meu 1,75 metro, ficasse na ponta dos pés. E a borboleta possivelmente acessível era exatamente… uma estaladeira-cinzenta! Eu ponderei as chances de sucesso de um possível resgate, a possibilidade nada desprezível da empreitada falhar e, é claro, o vexame público diante de qualquer um dos resultados. Isso, em si, nem é problema de fato, pois quando você assume a profissão de biólogo, o combo inclui também o desprezo por passar eventuais vergonhas na frente de geral – falo muito sobre isso com meus alunos. Então, com o devido aval da esposa e sem receio de passar vergonha, fui lá tentar salvar o bichinho. Afinal, o almoço ainda não tinha chegado mesmo.

A estaladeira parecia cansada, alternando entre ficar pousada de asas abertas e uns poucos movimentos rápidos. Travou-se então a concretização do meme de internet “expectativa versus realidade”. Minha melhor expectativa era que, ao esticar o dedo perto da borboleta, ela pousasse nele e aí eu teria a oportunidade de, delicadamente, levá-la para fora. Obviamente isso não ocorreu e, sempre que eu, esticado ao máximo, tocava com a ponta dos dedos no inseto, ele voava para cima. Como logo depois retornava para o local inicial, minhas esperanças se renovavam e eu ficava tentando, tentando, tentando… Meio que involuntariamente, enquanto tentava e torcia que a borboleta pousasse no meu dedo, eu pensava comigo mesmo: “Vamos lá, estaladeira, me ajuda a te ajudar…”. É, claramente eu não tenho a capacidade mental de me comunicar com borboletas. Uns dez minutos de fracasso retumbante, durante os quais eu sequer ousava olhar para qualquer outra parte do restaurante, me provaram isso.

Era chegada a hora de mudar a tática. Pegar um inseto é sempre tarefa complicada, graças à obviamente gigantesca desproporção física, aliada à delicadeza das partes anatômicas do pequeno ser, especialmente as asas. E, ainda mais especialmente, no caso dos delicados lepidópteros e suas asas finas e frágeis. Tenho uma certa manha para pegar mariposas invasoras, algo absolutamente necessário quando se tem três gatos super predadores em casa, casos de Anakin, Odin e Loki. O que eu faço é ir com a mão em concha aberta, com os dedos espaçados, e tentar englobar a mariposa emulando uma gaiola. Como as mariposas, em sua maioria, pousam de asas abertas, isso se tem revelado como um procedimento adequado. E, muito importante, depois da mariposa estar presa na mão, é sebo nas canelas para, o mais rapidamente possível, soltá-la janela afora.

A invasão de borboletas é bem menos comum e, no caso delas, o procedimento de resgate também é outro: como elas, geralmente, pousam de asas fechadas, o ideal é tentar pegá-las com o dedo indicador e o polegar em pinça. Vale realçar que isso tudo é em caso de necessidade extrema, posto que o melhor mesmo é sempre deixar o bicho em paz, evitando qualquer chance de dano.

Mesmo sendo borboletas, as estaladeiras pousam com as asas abertas. Isso acontece porque elas têm padrão críptico de coloração na face dorsal das asas. Ou seja, pousadas nos troncos das árvores com as asas abertas, dificilmente as estaladeiras são vistas. Uma defesa e tanto contra predadores e enxeridos.

Aí então, mesmo sendo o caso de uma borboleta, lá fui eu usar meu quase infalível método de captura de mariposas que invadem a casa à noite. Muito rapidamente, envolvi a estaladeira com os dedos em grade e lancei pela porta rumo à liberdade. Na fração de segundo que durou esse movimento, algo aterrador (para mim) aconteceu: uma lagartixa-de-parede, até então escondida, correu pelo vidro, passando a centímetros da minha mão, antes de eu fazer a soltura da estaladeira.

Sim, eu confesso: me provoca arrepios até a alma o tal do Hemidactylus mabouia, como é cientificamente conhecido esse pequeno réptil africano da ordem Sauria, família Gekkonidae, também chamado popularmente de lagartixa-doméstica-tropical, osga, briba, jacaré-de-parede, crocodilinho-de-parede, víbora ou simplesmente lagartixa mesmo, além de muitos outros nomes. Na verdade, eu acho que mais que medo, eu tenho é fobia da criatura escaladora de paredes, o que é meio que uma herança de família, posto que descendo de vasta linhagem de pessoas com esse tipo bem específico de herpetofobia (medo de répteis). Muitos de meus familiares, graças a esse medo, acumulam um sem-número de situações públicas vexatórias. Mas isso, felizmente, não é papo para um texto sobre insetos, graças aos deuses e deusas!

Voltando à estaladeira, o que importa é que ela foi solta sã e salva. Apesar do susto. Na real, eu nem acredito que segurei legal a onda, sem gritar ou fazer escândalo. Luci, que estava de olho, pode confirmar. Na verdade, ela sequer notou o susto que eu tomei, tamanha discrição de minha parte. O interessante nisso tudo é que eu, nos embates da natureza, geralmente torço pelo predador e, sem querer, acabei frustrando um. A lagartixa que me desculpe pois, no caso, acabei salvando um bicho nativo do ataque de um invasor.

No final, tudo correu bem…

Brincadeiras à parte, ao longo do dia nós ainda vimos outros exemplares da estaladeira-cinzenta, alguns infelizmente mortos. Embora as estaladeiras sejam borboletas relativamente comuns, inclusive em áreas urbanas, ao menos no Rio de Janeiro elas são mais frequentes nos meses quentes do ano [3]. Talvez pelo fato de estarmos vivenciando o inverno mais quente dos últimos tempos tenha influenciando a dinâmica populacional dessa interessante espécie. Não tem, jeito, esse tipo de mudança climática e ambiental acaba influenciando tudo e as consequências são imprevisíveis. Infelizmente, a natureza acaba pagando o pato das desastradas ações do macaco-pelado, como as que levam ao aquecimento global que a gente sente na pele. E se a gente sente, os outros bichos sentem até mais, bem como as plantas, algas, fungos e toda a biota.

Isso, é claro, em larga escala. A escala de biomas, ecossistemas, comunidades. Mas as consequências de nossos atos são sentidas também em escalas mais baixas, como a das populações. E a nossa borboleta tema de hoje não escapou impune, mesmo sendo inocente. Estudos recentes [2] mostram a preocupante presença de metais pesados, especialmente chumbo e mercúrio, nas asas das estaladeiras-cinzentas em território paulista. E eu preocupado em não molestar as asas da pobre borboleta deste relato… Realmente não sei aonde a gente vai chegar.

O que sei é que nós, aqui do Fauna News, seguiremos fazendo o nosso papel, o de porta-vozes da defesa da biodiversidade, tarefa que exercemos com todas as nossas forças. E, de minha parte, sei também que, da próxima vez que eu for resgatar algum inseto em apuros, antes procurarei bem por eventuais predadores à espreita. Afinal, sabe-se lá até quando eu vou conseguir evitar fazer escândalo ao me deparar com um certo escalador de paredes…

Referências

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Sobre o autor / Elidiomar Ribeiro da Silva

Licenciado em Ciências Biológicas, mestre e doutor em Zoologia pelo Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Professor do Departamento de Zoologia da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio), sendo responsável pelo Laboratório de Entomologia Urbana e Cultural. Entomólogo, tem carreira centrada no estudo da taxonomia das ordens Ephemeroptera, Hemiptera […]