Por Dimas Marques
Editor-chefe
dimasmarques@faunanews.com.br
Reportagem também publicada pela Agência Mongabay.
Os números são os mais diversos e de diferentes instituições – inclusive do governo. E todos escancaram o massacre de animais selvagens que ocorre diariamente nas vias do Mato Grosso do Sul, pavimentadas ou não. Anualmente, milhares de espécimes morrem vítimas de atropelamentos em uma malha viária de pouco mais de 3 mil quilômetros que não oferece estruturas que permitam travessias mais seguras. Mas organizações não-governamentais estão atuando e conseguindo mobilizar o poder público, ainda que timidamente, na tentativa de mudar essa situação.
O levantamento mais minucioso sobre atropelamentos da fauna silvestre no Estado foi realizado pelo Instituto de Conservação de Animais Silvestres (Icas), que monitorou várias vezes algumas estradas e rodovias, percorrendo 85 mil quilômetros de vias entre 2017 e 2020 para o projeto Bandeiras e Rodovias. O resultado do trabalho foi o absurdo número de 12.400 carcaças de animais selvagens localizadas – 761 eram de tamanduás-bandeiras (Myrmecophaga tridactyla), espécie estudada pelo projeto. “Percorríamos 1.300 quilômetros a cada 15 dias. No total, monitoramos cerca de 15% das rodovias pavimentadas do Mato Grosso do Sul”, destaca o zoólogo e presidente do Icas, Arnaud Desbiez.
Apesar de esse número de animais mortos já ser impactante, a quantidade é ainda maior. Desbiez explica que uma boa parte das carcaças desaparece das vias sem ser contabilizada durante uma campanha de monitoramento. No caso dos tamanduás-bandeiras, a taxa de persistência dos corpos desses animais nas vias é de 25%. “E também temos de levar em conta os animais que são atropelados, conseguem sair da pista e morrem no meio do mato. Esses indivíduos não são localizados pelas equipes”, explicou.
Ainda usando como exemplo os tamanduás-bandeiras, as pesquisas do Icas concluíram que 50% dos animais dessa espécie atropelados em rodovias asfaltadas morrem fora da via. O resultado foi possível durante o monitoramento de mais de 70 tamanduás-bandeiras que receberam aparelhos de localização (telemetria): dos oito que morreram atropelados, seis foram atingidos em vias pavimentadas, sendo que as carcaças de três deles acabaram localizadas longe do asfalto.
Um estudo sobre as antas
Além do Icas, a Iniciativa Nacional para a Conservação da Anta Brasileira (Incab) do Instituto de Pesquisas Ecológicas (Ipê) também realizou uma contagem de animais atropelados no Mato Grosso do Sul. Entre 2013 e 2019, equipes monitoraram quase 6 mil quilômetros de trechos de 28 rodovias estaduais e federais e registraram 501 antas-brasileiras (Tapirus terrestris) mortas. Os dados de um novo levantamento feito em 2020 e 2021 estão sendo trabalhados e incluídos na pesquisa, mas já foi possível concluir que, de março de 2013 até março de 2020 (84 meses), foram registradas 613 carcaças de antas atropeladas em 34 rodovias do Estado.
Nos primeiros seis anos de monitoramento, a pesquisa identificou que as rodovias BR-262, BR-267 e MS-040 — principais conexões entre a capital Campo Grande e o estado de São Paulo — concentraram cerca de 80% das antas atropeladas em dez trechos críticos. O Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (DNIT) informou à Mongabay ter instalado cercas condutoras e duas passagens de fauna superiores no trecho entre Anastácio e Corumbá da BR-262 por exigência do processo de licenciamento ambiental das obras de restauração e implantação de acostamentos da via.
Sobre o trecho da BR-267 que corta o Mato Grosso do Sul (entre a divisa com o estado de São Paulo e Porto Murtinho), que inclusive está sendo revitalizada, o DNIT não esclareceu se a rodovia tem ou está recebendo infraestrutura para reduzir atropelamentos de fauna.
MS-040: com asfalto, mais mortes
A situação da MS-040, por ser mais grave, com 135 antas mortas entre 2013 e 2019, acabou recebendo tratamento diferenciado pela equipe da coordenadora do Incab, Patrícia Medici.
Ligando Campo Grande a Santa Rita do Pardo e cortando inúmeros fragmentos de Cerrado, os 230 quilômetros da MS-040 começaram a ser construídos em 1994 e tiveram seu asfaltamento concluído em 2014. Por conta de acidentes envolvendo animais silvestres e a não implementação de um plano para redução de atropelamentos de fauna e monitoramento do problema exigido no licenciamento ambiental, o Ministério Público do Estado iniciou em 2016 uma investigação por meio de um inquérito civil.
Durante a apuração, o Incab fez em 2017 um levantamento técnico estrutural da rodovia para desenvolver propostas de mitigação dos atropelamentos de fauna. “O trabalho identificou mais de 50 passagens inferiores, construídas para travessia de gado ou para drenagem do terreno, que poderiam ser adaptadas para uso dos animais silvestres”, afirmou Medici, que entregou todo o material para o Ministério Público e o governo do Estado. A principal adaptação necessária, segundo a coordenadora do Incab, é a instalação de cercas para direcionar os espécimes aos pontos de travessia.
O documento não foi implantado até o momento. A Agência Estadual de Gestão de Empreendimentos de Mato Grosso do Sul (Agesul), da Secretaria de Infraestrutura, informou que o plano preparado pelo Incab foi incorporado ao programa Estrada Viva, uma iniciativa do governo do Estado para reduzir atropelamentos de fauna em diversas rodovias.
A investigação do MP culminou em uma ação civil pública em 2018 contra o governo do Mato Grosso do Sul, o Instituto de Meio Ambiente do Estado (Imasul), a Agesul e empresas prestadoras de serviço para o poder público local. À Mongabay, o promotor Luiz Antônio Freitas de Almeida informou que a ação entrará na etapa de audiências com testemunhas. “Temos tido bons contatos com o atual secretário de Infraestrutura, Eduardo Riedel, e há a possibilidade de termos um acordo com melhorias para a MS-040 antes do julgamento da ação”, salientou, otimista, o representante do MP.
Esforços por soluções
Apesar de o problema dos atropelamentos de fauna nas rodovias do Mato Grosso do Sul não ser novidade, sendo estudado e denunciado há anos por ONGs, e de o poder público ter esboçado algumas iniciativas para reduzir o problema, foi a partir de 2021 que uma convergência de ações culminou em uma mobilização iniciada no município de Bonito, um dos principais destinos de ecoturismo do país. A articulação de ONGs denominada Bonito Não Atropela é a responsável por conseguir uma aproximação com resultados positivos junto a governantes.
Bonito Não Atropela é formado pelo Instituto Raquel Machado, a Rede Nacional Pró Unidades de Conservação, a Ampara Silvestre, a Fundação Neotrópica do Brasil e o Icas, além da empresa ViaFauna. “O projeto surgiu da necessidade de fazer algo efetivo para salvar vidas, tanto de animais quanto de pessoas. Não podemos aceitar que a capital do ecoturismo do Brasil tenha dezenas de animais silvestres morrendo em suas estradas. Nosso principal objetivo é tornar as rodovias da região de Bonito referências de segurança para a fauna local e para seus usuários”, afirmou o gerente de pesquisa da Ampara Silvestre, Maurício Forlani.
De acordo com Forlani, a malha viária da região, com destaque para as rodovias MS-178 e MS-382, não tinha qualquer infraestrutura para redução dos atropelamentos, com acidentes envolvendo espécimes silvestres ocorrendo diariamente. Tatus-peba, tamanduás-mirins, cachorros-do-mato e macacos-prego são os animais mortos com mais frequência, mas tamanduás-bandeira, antas e jaguatiricas também são atropelados.
Os representantes do Bonito Não Atropela conseguiram primeiro o apoio da prefeitura e, posteriormente, do secretário de Infraestrutura do Estado, Eduardo Riedel. A aproximação com o poder público e as ações para arrecadação de verbas e materiais permitiram que duas passagens superiores de fauna e dois redutores de velocidade já fossem instalados na região do município. Essas estruturas fazem parte de um conjunto de três planos de mitigação de atropelamentos de rodovias da região (MS-382, Estrada do Turismo e MS-345), além de um plano de conectividade para a fauna que vive ou frequenta as copas das árvores que é formado por 11 passagens superiores.
“A prefeitura é parceira da iniciativa através da destinação de recursos para construção de passarelas suspensas para fauna. E a Secretaria Municipal de Meio Ambiente criou um projeto de educação ambiental anual, voltado para a defesa e proteção da fauna, abordando a temática do atropelamento de fauna”, informou à Mongabay a prefeitura de Bonito.
Segundo Forlani, o próximo passo do Bonito Não Atropela é expandir sua atuação para a região da Serra da Bodoquena, onde existe um Parque Nacional.
O diálogo aberto entre o Bonito Não Atropela e Riedel culminou na publicação do Manual de Orientações Técnicas para Mitigação de Colisões Veiculares com Fauna Silvestre nas Rodovias Estaduais do Mato Grosso do Sul. ONGs, empresas e o poder público elaboraram esse guia, que foi lançado em dezembro de 2021 e “traz diretrizes técnicas de elaboração para os novos projetos viários estaduais, bem como a aplicação prática em algumas obras já em execução.”
O manual foi incorporado ao programa Estrada Viva, iniciado pelo governo do Estado em 2016 em parceria com a Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul. Por meio dele, são monitoradas seis rodovias, identificando trechos onde ocorrem mais atropelamentos e as espécies mais atingidas.
Patrícia Medici afirma que, mais uma vez, o poder público está respondendo às pressões da sociedade para agir. “Trabalho com essa problemática dos atropelamentos de fauna no Mato Grosso do Sul tempo o suficiente para ter me tornado uma pessoa um tanto cética com relação à mobilização dos órgãos governamentais aqui no Estado”, salientou. O lançamento do manual ocorreu, segundo a coordenadora do Incab, pelo fato de que Riedel “vestiu a camisa” do combate aos atropelamentos, cabendo ao tempo mostrar se o secretário de Infraestrutura do Estado realmente está interessado em resolver o problema ou se foi apenas uma ação com fins eleitoreiros para 2022.