
Por Adriana Prestes
Bióloga, responsável técnica por áreas de soltura e monitoramento de fauna silvestre na Serra da Mantiqueira e Vale do Paraíba (SP) e secretária executiva do Grupo de Estudo de Fauna Silvestre do Vale do Paraíba, Litoral Norte e Serra da Mantiqueira
segundachance@faunanews.com.br
Amigo leitor, tenho feito uma série de artigos enfatizando a questão legal no que tange a ações de soltura. Lembrando que, conforme tenho insistido aqui, soltura é uma ação técnica planejada e não está relacionada a escape ou abandono. Mas, voltando à questão legal, não são incomuns decisões judiciais, em diferentes instâncias do poder judiciário, que determinam a devolução do animal silvestre, mantido de forma irregular, ao seu “dono”.
Em primeiro lugar, o que significa ser “dono” de um animal? É possível ser “dono” de um animal silvestre?
Tento como referência os animais silvestres, temos o clássico texto da Lei Federal nº 5.197, de 3 de janeiro de 1967, que dispõe sobre a proteção à fauna e que explicita em seu primeiro artigo:
“Artigo 1º – Os animais de quaisquer espécies, em qualquer fase do seu desenvolvimento e que vivem naturalmente fora do cativeiro, constituindo a fauna silvestre, bem como seus ninhos, abrigos e criadouros naturais são propriedades do Estado, sendo proibida a sua utilização, perseguição, destruição, caça ou apanha.”
Ou seja, ninguém pode ser legalmente “dono” de um silvestre de vida livre!
No caso dos animais domésticos, exóticos ou até mesmo de animais silvestres oriundos de criadouros regularizados, ainda que possam ser comprados e vendidos, o “dono” não está livre para realizar maus-tratos ou colocar em risco a saúde de terceiros, só para citar alguns exemplos, e as pessoas não estão liberadas para adquirir o animal de forma irregular, mediante fraude ou roubo.
Em síntese, mesmo no caso dos animais que podem ser mantidos legalmente, o “dono” está sujeito aos vários limites impostos por legislações, regras sanitárias e regras de comercialização.
Mas então, por que existem decisões em que o animal silvestre mantido irregularmente por terceiros é devolvido ao “dono”?
A questão deveria ser clara, mas está longe de sê-lo!
A título de exemplo, vejamos o caso da Resolução SMA (Secretaria de Meio Ambiente) nº 73, de 24 de julho de 2017, vigente no estado de São Paulo, em sua seção III, subseção II, artigo 89:
“III – Em último caso, o animal silvestre apreendido poderá ser destinado à guarda doméstica provisória.”
A justificativa para essa decisão é sempre a mesma: dificuldades para a destinação e a soltura.
Então, aquilo que deveria ser a prioridade, soltar o animal silvestre, passa a ser a exceção…
É sempre interessante analisar o caso do estado de São Paulo, pois é o maior mercado consumidor de fauna silvestre e, portanto, estamos tratando de milhões de animais, que por “dificuldades na destinação” podem ficar com o infrator – forma que corretamente deveriam ser chamados os “donos” de animais silvestres mantidos ilegalmente.
Outra incrível argumentação que também vejo em decisões judiciais é a de que o animal está mantido pelo infrator por um tempo X, o que por si justifica a continuidade do ato criminoso. Oi? Como assim? Efeito Tostines? Me explico.
Recentemente, uma orientação para um órgão federal definiu que oito anos é um número mágico, ou seja, se o animal está mantido em cativeiro por oito anos, nada mais pode ser feito para este indivíduo e que, portanto, ele pode permanecer com seu infrator. Digo número mágico pois a orientação não cita qualquer referência técnica ou científica.
Vejamos então. Fazendo um cálculo rápido, um papagaio, por exemplo, que tenha sido traficado quando bebê e que tenha oito anos não poderia ser reabilitado e devolvido a natureza. Ok, ainda que pesem as dificuldades de reabilitação para um animal assim, o coitado pode viver 70 anos! Então, número mágico determina que este animal jovem com todo um potencial de vida pela frente não pode mais exercer suas funções ecológicas, pois uma vez escravo, escravo para sempre.
Confuso, não é mesmo?
A reabilitação e soltura de qualquer animal de espécie silvestre é sempre um desafio, as áreas de soltura no estado de São Paulo são poucas (ainda bem que em outros Estados não é assim!), mas a prioridade é e sempre será reintegrar o animal ao meio ambiente e não o mantê-lo isolado em ambiente artificial por mero capricho do “dono”. A fauna é um bem comum a todos e é um direto fundamental de qualquer indivíduo desfrutar de um meio ambiente equilibrado. Sem fauna não existe equilíbrio.
Bora soltar?
– Leia outros artigos da coluna SEGUNDA CHANCE
Observação: as opiniões, informações e dados divulgados
no artigo são de responsabilidade exclusiva de seu(s) autor(es)