Biólogo com mestrado e doutorado em Ecologia Aquática pela Universidade Estadual de Maringá (UEM). Atualmente, é professor da Universidade Tecnológica Federal do Paraná, onde leciona Ecologia e coordena as atividades de pesquisa do Laboratório de Ecologia Aquática.
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Com cerca de 33 mil espécies descritas, os peixes representam o grupo biológico de maior diversidade dentre os vertebrados no planeta Terra. Além de muito numerosos, os peixes se apresentam nas mais inúmeras formas, cores e tamanhos e ocupam boa parte dos ambientes aquáticos. Essas criaturas não só desempenham funções vitais para o funcionamento dos ecossistemas e fornecem bens e serviços críticos para a existência humana como apresentam estreita relação com os seres humanos desde que esses últimos passaram a habitar a superfície terrestre.
Dos pontos de vista social, econômico e ecológico, o papel dos peixes na sociedade é bastante compreendido. Porém, existem inúmeras outras formas com as quais eles contribuíram ou contribuem para o desenvolvimento da humanidade. Em um artigo recente co-autorado pelo professor Jean Ricardo Simões Vitule, do Laboratório de Ecologia e Conservação da Universidade Federal do Paraná, os autores exploram os mais diversos usos de vários tipos de peixes (excluindo o uso óbvio como recurso alimentar e recreativo) e ilustram com exemplos as formas com as quais os recursos advindos dos peixes têm sido explorados por humanos para a indústria, a tecnologia, a saúde, a joalheria, dentre outros. E a lista é surpreendente!
Na manufatura e indústria, produtos advindos de peixes assumem as mais variadas funções e estimulam o desenvolvimento de tecnologias diversas para sua produção. Existe, por exemplo, uma cola fabricada através da cocção prolongada de tecidos conjuntivos de peixes (semelhantes a uma gelatina), que foi tanto usada por gregos e romanos para juntar e colar madeiras durante o período medieval e por chineses com fins medicinais quanto ainda é utilizada como produto base para material em restaurações diversas. Mas esse é só um exemplo inicial para ilustrar uma utilidade que talvez fosse inimaginável para, pelo menos, parte dos leitores.
Mas há outros tantos produtos inimagináveis que os humanos exploram dos peixes. Diversos tipos de óleos são extraídos de vários órgãos diferentes desses animais e são usados para os mais variados fins, desde selantes e vernizes para proteção de madeiras, metais, fibras e concretos a lubrificantes, medicamentos e cosméticos. Além disso, podem ser fabricados repelentes biodegradáveis que produzem um odor/sabor desagradável e mantêm ratos e coelhos, por exemplo, afastados de produções ou de locais onde são indesejáveis.
Energia
Como fonte de energia, óleos de peixes são eficientes biocombustíveis. Por exemplo, o óleo de lambari foi muito utilizado para acender lamparinas no Pantanal. Na Rússia, lampreias (peixes em formato de enguias sem mandíbulas) costumavam ser desidratadas e queimadas como velas para iluminação, o que era possível devido a seu alto teor de gordura. Pesquisas mais recentes sugerem que o uso de óleo residual de peixe pode ser utilizado como um biodiesel e é crescente o interesse de parcerias entre as indústrias pesqueiras e produtores de biocombustíveis.
Bioplástico
Ainda no âmbito ambiental e por razões óbvias, bioplásticos são uma necessidade atual e urgente para substituir os plásticos convencionais. Nesse sentido, cientistas trabalham para produzir esses materiais, que nada mais são do que plásticos totalmente degradáveis feitos a partir de escamas de peixe. As escamas sofrem processos de fermentação, lavagens e secagens e, ao final, produzem um plástico de origem totalmente biológica, estéril e inodoro, que serve como matéria-prima para fabricar utensílios domésticos, vestuário e embalagens. A versatilidade e o baixo risco de transmissão de patógenos oferecido pelo bioplástico produzido a partir de peixes fazem aumentar o interesse das indústrias para a produção de embalagens destinadas a produtos alimentícios. Essa produção talvez seja parte da solução da diminuição de resíduos plásticos que tanto preocupa o futuro do planeta.
Cosméticos e remédios
A indústria de cosméticos e cuidados com a saúde também se beneficia de produtos extraídos de peixes. Cremes dentais, esmaltes de unha, batons, rímel, xampu e outros produtos para cuidados com a pele e os cabelos são produzidos a partir de matéria-prima oriunda de peixes. Além disso, derivado de diversos tecidos de peixes, o colágeno, que é a principal proteína estrutural no espaço extracelular de vários tecidos conjuntivos, apresenta uma variedade de aplicações farmacêuticas e biomédicas, como fabricação de curativos cirúrgicos, administração de medicamentos e produtos para cuidados com a pele.
Ainda no contexto biomédico, a pele da tilápia tem se mostrado uma opção barata e eficaz para ser utilizada como curativo para tratamento de queimaduras e como enxerto biológico em ginecologia, tanto para evitar as cicatrizes quanto promover a cicatrização de feridas.
Do ponto de vista farmacológico, muitos compostos químicos foram extraídos de peixes e levaram ao desenvolvimento de drogas anticancerígenas, antivirais, estimulantes cardíacos, anti-inflamatórios, antifúngicos e antibióticos. Além de substâncias extraídas diretamente desses organismos, pequenos peixes da família Cyprinidae, conhecidos como peixes-zebra, são frequentemente usados em testes de fármacos. Em comparação com o uso tradicional de mamíferos, como ratos e coelhos, os peixes fornecem muitas vantagens, incluindo rastreabilidade genética e molecular e a redução de custos e de tempo experimentais.
Cientistas da área médica continuam a explorar a utilidade dos peixes para maior compreensão de doenças humanas em várias dimensões e, com isso, aprimorar a descoberta e a aplicação de novas terapias.
Ainda no contexto da saúde, os peixes são amplamente utilizados em medicinas tradicionais para tratar infertilidade, calvície, asma, artrite e disfunção erétil. Os modos de preparação e administração para tratar esses problemas e mais uma diversidade de enfermidades incluem partes do tecido secas e em pó, pomadas feitas com gorduras ou mucos, remédios para pingar nos ouvidos e ingestão direta como alimento ou bebida (chás e óleos de peixe). Embora nesse contexto as evidências de seus benefícios à saúde sejam escassas, pesquisas recentes indicam que alguns peixes, como os cavalos-marinhos, exibem propriedades antitumorais, antienvelhecimento e antifadiga.
Quando percebidos no contexto sexual da sociedade, os produtos oriundos de peixes não são menos surpreendentes. Preservativos rudimentares foram produzidos com as bexigas natatórias de peixes durante a Guerra Civil Inglesa (por volta de 1642–1647) e enviados ao exército para tentar conter a transmissão da sífilis. Além disso, testes de gravidez em mulheres foram realizados utilizando fêmeas de pequenos peixes (Rhodeus amarus) na Europa na década de 1930 – os animais eram expostos à urina de mulheres supostamente grávidas, cujos hormônios estimulavam o desenvolvimento de sua estrutura ovopositora, confirmando (ou não) a gravidez.
Joias, vestuários, instrumentos musicais, os mais diversos enfeites e souvenires, armas e ferramentas compõem o conjunto histórico de utilização de peixes para o desenvolvimento da sociedade, provavelmente, desde que humanos coabitam a Terra com esses magníficos organismos. Mais recentemente, a indústria, a medicina e a biotecnologia colocam os peixes na lista de organismos com valores inestimáveis, que acompanham a história da humanidade e se fazem presentes e necessários nos dias atuais, inclusive acelerando e subsidiando o desenvolvimento tecnológico.
Bem é verdade, que a lista de utilidades e benefícios é muito maior e mais impressionante do que caberia neste modesto artigo. Além dessa íntima relação entre peixes e a humanidade, cientistas se preocupam com as ações de conservação para esse grupo de animais que, muitas vezes, negligenciam a sustentabilidade e ignoram os interesses dos benefícios oferecidos por esse grupo.
Ao demonstrar a importância dos peixes em extraordinárias facetas da vida, espera-se que a exploração seja mais consciente e acompanhada de ações eficientes de conservação e manejo sustentável. Esses animais, de fato, foram muito presentes na história do desenvolvimento da humanidade e desde sempre subsidiam muitos dos avanços que possibilitam a vida como ela é hoje.
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