Primatas traficados: ética na reintrodução à natureza

O tráfico de animais silvestres é um grande problema para a fauna, afetando diversas espécies. Esse comércio ilegal está entre as principais ameaças para diversas espécies de primatas. As razões relacionadas ao tráfico de primatas podem ser diferentes, entre elas a pesquisa biomédica, o consumo de carne, para compor coleções de zoológicos ou coleções privadas, além de servirem como bichos de estimação. Uma boa parte dos animais traficados morre, outros chegam até o destino, mas ainda há muitos que são apreendidos em operações de fiscalização de órgãos especializados e encaminhados para centros de triagem de fauna.

Quando são apreendidos, quais são os seus destinos? Quais são as segundas chances que possuem – se possuem? As decisões para a destinação são realizadas zelando por manejos adequados e considerando o bem-estar dos animais, mas há, entre outras, uma grande complexidade ética relacionada.

Para falar um pouco desse assunto, trago um artigo que aborda uma perspectiva ética a respeito da reintrodução de primadas de origem do tráfico. O artigo com o título “An ethical matrix for the reintroduction of trafficked primates: a platyrrhine case study”, em tradução livre “Uma matriz ética para a reintrodução de primatas traficados: um estudo de caso dos platirrinos”, foi publicado em fevereiro de 2024 e discute questões éticas relacionadas à conservação. A proposta da publicação foi avaliar diferentes aspectos em uma matriz ética como forma de gerar informações que possam ajudar na decisão da destinação de primatas que vieram do tráfico: o retorno à natureza, o cativeiro e até a eutanásia, mais rara de ocorrer.

Para esse estudo foram reunidas informações de 22 publicações de pesquisas de reintroduções de espécies de primatas platirrinos, que são encontrados na América do Sul e Central (Colômbia, Belize, Brasil, Argentina, Peru, Costa Rica, Panamá e Guiana Francesa). São conhecidos como primatas neotropicais ou do Novo Mundo, entre eles estão os bugios, macacos-aranha, macacos-prego, saguis, micos e tamarins.

O conceito de reintrodução conforme definido nas Diretrizes da União Internacional para a Conservação da Natureza (IUCN, na sigla em inglês) refere-se tanto para reintroduzir uma espécie que não habita mais determinada área como para o reforço populacional. Às vezes se tem a ideia de que a soltura na natureza de um indivíduo ou grupo é sempre uma ação que beneficia a conservação. No entanto, há implicações em qualquer reintrodução e podem afetar o meio ambiente, as comunidades e a própria população. Ou seja, as consequências de soltura podem ser positivas ou negativas, se não houver uma avaliação adequada de cada situação. A premissa principal da reintrodução é fornecer um benefício de conservação, seja para a espécie ou para o ecossistema. No estudo, o termo reintrodução é usado de forma genérica para se referir aos animais que estão em cativeiro e são soltos na natureza.

Preocupações éticas na reintrodução

Uma revisão abrangente, publicada em 2019 pelo pesquisador Benjamin Beck, identificou que em mais da metade (60%) dos casos o bem-estar dos animais é o principal objetivo das reintroduções. Já a conservação foi o objetivo principal em apenas 12% dos 234 projetos revisados. Esses resultados mostram haver uma desconexão entre isso e as diretrizes da IUCN sobre reintrodução, que afirmam que as reintroduções devem ser realizadas para benefícios de conservação.

Encontrar as melhores alternativas para os dilemas éticos que surgem a cada situação está longe de ser trivial. Há uma grande complexidade e essa é uma das motivações dessa publicação: trazer uma contribuição para essa tomada de decisão. Vale o destaque e o estímulo positivo que, dos projetos revisados nessa publicação, 43% foram bem-sucedidos ao considerar o “sucesso” de forma mais ampla.

A matriz ética possui três princípios padrão: respeito pelo bem-estar, autonomia e justiça. O peso atribuído a cada uma das células depende do julgamento de valor daqueles que conduzem a análise. Esse modelo de metodologia tem sido utilizado para abordar várias questões éticas, como o uso de biotecnologia, peixes geneticamente modificados e pescarias, qualidade e ética na pesquisa educacional, análise ética em medicina veterinária.

Recentemente, uma versão revisada dessa matriz ética foi publicada para abordar questões relacionadas à conservação. Há vantagens nessa metodologia como incluir diferentes pontos de vista e ajudar na transparência das decisões. No entanto, também tem limitações, como não ser uma ferramenta de decisão definitiva e depender de evidências que podem ser escassas ou de baixa qualidade.

A matriz ética considerou apenas a reintrodução desses primatas, sem relação com outros componentes como reabilitação ou não que possa ter sido realizada nos estudos avaliados. Para a construção da matriz foram consideradas questões sobre conservação e definidos sete grupos de interessante com base no envolvimento na questão ética e na adequação para avaliações pertencentes às três categorias principais: ecossistema, animais e humanos envolvidos. Os grupos de interesse são os seguintes:

• Ecossistema: refere-se a todos os organismos vivos no local de soltura ou na área onde os macacos foram soltos como parte do projeto de reintrodução. Isso incluiu outros animais, plantas e fungos e a maneira como interagem entre si;
• Espécies de primatas de interesse: refere-se às espécies que fazem parte do projeto de reabilitação e reintrodução;
• Primatas individuais resgatados/reintroduzidos que fazem parte do projeto de reintrodução e serão soltos;
• Primatas individuais em vida livre que habitam o local de soltura, se houver algum;
• Comunidades humanas locais que vivem no local de soltura ou próximo a ela;
• Equipe envolvida no trabalho, incluindo veterinários, biólogos, pesquisadores acadêmicos e outros;
• Sociedade local. Isso se refere às comunidades humanas que podem estar diretamente interessadas no projeto de reabilitação e reintrodução, como pessoas interessadas no bem-estar animal, conservação da vida selvagem ou educação ambiental, ou ainda outros atores que podem ser afetados pelas decisões tomadas em relação ao projeto de reabilitação e reintrodução.

Embora, no estudo, a avaliação da matriz tenha revelado problemas éticos e potenciais conflitos nessas solturas, principalmente em relação ao bem-estar dos animais reintroduzidos, conservação das espécies e conflitos tanto com indivíduos presentes em vida livre como comunidades humanas. Há diversos benefícios, não apenas para os animais soltos, como para o meio ambiente. Além disso, alguns potenciais efeitos negativos podem ser minimizados com a aplicação das diretrizes da IUCN.

Pontos positivos e negativos das solturas

No aspecto da conservação da biodiversidade, primatas como bugios e macacos-prego, por exemplo, são dispersores de sementes, contribuindo na restauração de processos ecológicos em áreas fragmentadas, como na Mata Atlântica, trazendo benefícios para o bioma e não apenas para a espécie. Na perspectiva da conservação da espécie, alguns dos estudos avaliados abordam possíveis riscos para os grupos locais de primatas pela transmissão de patógenos pelos animais reintroduzidos. No entanto, maior parte dos estudos que foram avaliados realiza protocolos de triagem de saúde antes da soltura, evitando problemas diretos com relação a doenças. Outra questão ligada diretamente com a espécie é a hibridização. A reintrodução de indivíduos traficados de espécies de primatas não-nativas pode levar à hibridação e ameaçar a conservação de outras espécies de primatas nativas ao local de soltura.

Um exemplo de hibridização relacionada ao comércio ilegal de animais de estimação é o caso dos saguis (Callithrix sp.). Alguns saguis são nativos da Mata Atlântica no Sudeste do Brasil, como o sagui-de-orelhas-brancas (Callithrix aurita) e o sagui-de-cabeça-branca (Callithrix flaviceps). Outras espécies, como o sagui-de-tufos-pretos (Callithrix penicillata) e o sagui-comum (Callithrix jacchus), são nativas do Nordeste do Brasil e são frequentemente comercializadas ilegalmente. Hibridização resultou após a fuga durante o transporte e abandono de indivíduos traficados dessas espécies do nordeste no sudeste do Brasil. Para evitar esses problemas em relação a levar uma espécie que não é da região, testes genéticos poderiam ser realizados, mas os estudos avaliados não realizam procedimentos para essa avaliação, provavelmente pelo alto custo.

Ainda no âmbito da conservação da espécie ainda há o bem-estar de macacos individuais reintroduzidos e os residentes que estão no local de soltura. Pode ocorrer competição ou brigas por recursos como alimento ou acesso a fêmeas. No entanto, foi considerado nesse estudo um baixo risco nesse aspecto, desde que a capacidade ecológica do hábitat tenha sido avaliada e possa sustentar as populações de primatas reintroduzidas e residentes.

Nas relações humano-fauna, que acontecem entre as comunidades humanas locais e os macacos reintroduzidos, pode haver algum grau de conflito se os indivíduos reintroduzidos representarem um risco de segurança para as comunidades humanas. Quatro dos estudos revisados (18%) relataram que os macacos reintroduzidos continuaram tentando interagir com humanos nos locais de liberação ou continuaram retornando ao centro de triagem de fauna. Por isso, uma análise completa de todos os interessados potenciais, incluindo animais e humanos individuais, populações animais e humanas e biodiversidade como um todo, deve ser realizada previamente. Campanhas de educação ambiental também podem integrar todos os envolvidos.

Requisitos de sucesso na reintrodução

Por fim, o maior objetivo é que a segunda chance desses animais tenha sucesso e para isso alguns requisitos precisam ser cumpridos, como:

• Alguns indivíduos soltos devem sobreviver por pelo menos um ano após a soltura.
• Deve haver alguma evidência de reprodução pós-soltura ou integração com coespecíficos em vida livre.
• Indivíduos soltos devem ser capazes de sobreviver sem apoio humano e/ou provisão.

Aqui são apenas alguns poucos requisitos. Há diversos outros indicadores que podem medir o sucesso das reintroduções. Obviamente que as equipes de especialistas envolvidas em reintroduções devem realizar o trabalho de forma cuidadosa e utilizar das metodologias para ajudar na tomada de decisões de destinação dos primatas do tráfico ou de outras origens. No entanto, a perfeição, o ambiente totalmente controlado e sem conflitos é pouco provável que exista. Entretanto, isso não deve inviabilizar a  soltura e o retorno à natureza dos primatas.

Referências 

• Hernández-Cruz, G., Ferreira, R.G., Mendl, M. et al. An Ethical Matrix for the Reintroduction of Trafficked Primates: A Platyrrhine Case Study. Int J Primatol (2024).
• Beck, B. B. (2018). Unwitting travelers: A history of primate reintroduction. Salt Water Media.

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