Predizendo riscos, protegendo vidas: a modelagem de conectividade na gestão de rodovias

No contexto do licenciamento ambiental de estradas, muitas vezes tentamos associar características da paisagem para propor medidas mitigadoras de atropelamentos de fauna. Por exemplo, associamos como os ambientes nas imediações das estradas (como corpos d’água, remanescentes de vegetação nativa ou áreas úmidas) podem ser locais potenciais de atropelamentos, não somente porque inferimos sua ocupação pela fauna de interesse, mas também seu potencial de conectividade e consequente entrada de animais na pista.

Essas inferências funcionam como modelos simples, mas, embora bem-intencionadas, ainda carregam muita incerteza. Isso porque são influenciadas por percepções pessoais e, em geral, não passam por testes que confirmem sua validade. Ou seja, desconsideramos o uso de outras variáveis e raramente avaliamos, de fato, se esses ambientes predizem a presença das espécies e deslocamento de fauna. Para melhorar a capacidade de inferência se faz necessário incluir em nosso modelo informações e abordagens adequadas para verificar se é realmente possível identificar áreas de atropelamentos pelas características da paisagem.

Mas, o que é um modelo?

Um modelo é, essencialmente, uma representação de um fenômeno. No campo da Ecologia, modelar significa integrar um conjunto de informações que expliquem (ou representem) um processo ecológico. Se o modelo é bom, conseguiremos usá-lo para prever a direção ou magnitude de um processo ecológico, como o uso do hábitat, o deslocamento de uma espécie ou o risco de mortalidade. Um bom modelo, além de utilizar informações robustas, é aquele que passa por validação, ou seja, que tem sua capacidade de previsão testada com base em dados reais.

O que entendemos por conectividade?

Conectividade pode ser compreendido como a forma de entender o território sob a perspectiva dos animais: não importa apenas quais hábitats existem, mas como eles se conectam entre si no espaço. Para alguns anfíbios, por exemplo, o essencial é poder se deslocar entre corpos d’água, áreas sombreadas ou zonas úmidas de forma segura. Já outras espécies, por exemplo alguns mamíferos, ainda que de hábitos florestais, podem apresentar maior flexibilidade ou tolerância para se locomover em outros ambientes não florestais.

Assim, os modelos de conectividade podem representar fluxos potenciais de movimento da fauna entre fragmentos de hábitat. Em vez de inferir o risco de atropelamento apenas pela presença de um corpo de água ou fragmento florestal, por exemplo, os modelos de conectividade podem avaliar o potencial que determinado elemento possui, conforme suas características, para influenciar o deslocamento da fauna na paisagem e a travessia das rodovias, identificando assim, zonas de maior risco de atropelamentos.

E na prática, como isso nos ajuda?

Os usos de modelos de conectividade ecológica representam um aliado importante no campo da gestão ambiental de estradas, pois nos permite identificar áreas prioritárias para mitigação, especialmente em contextos em que os dados de mortalidade por atropelamento ainda são escassos ou inexistentes.

Por exemplo, modelos de conectividade podem ser criados ou adaptados para anfíbios e outras espécies de pequeno porte, cuja detecção é dificultada pelo tamanho reduzido e pela rápida remoção dos indivíduos atropelados, sobretudo em segmentos ou redes viárias onde o monitoramento a pé é inviável devido à sua extensão. Incluso também durante a implantação de novas rodovias ou em estradas não licenciadas. Além disso, espécies de grande porte com poucos registros, mas cuja mortalidade por atropelamento representa um impacto ecológico significativo (por exemplo, espécies ameaçadas como a onça-pintada), também podem se beneficiar com a construção de modelos específicos.

Uma proposta de conectividade a partir de modelos de nicho ecológico

O estudo “Me fala aonde tu vais e direi onde tu morres” (em inglês, “Tell me where you go, and I’ll tell you where you die”) apresenta um modelo de conectividade para prever onde os anfíbios seriam mais propensos a cruzar rodovias. Para avaliar a conectividade, foi necessário identificar os corpos de água com características ideais para a presença de animais das espécies de interesse e atribuir valores de resistência à paisagem. Locais com maior resistência correspondem àqueles onde os anfíbios encontram maior dificuldade para se deslocar.

O diferencial desse estudo é o uso de um modelo de nicho ecológico para atribuir os valores de resistência da conectividade (observe que foi construído um modelo para obter informações que guiarão o ajuste do modelo de conectividade). Assim, os autores do artigo mapearam a possibilidade de uso da paisagem dos anfíbios a partir de informações sobre preferências das espécies quanto ao uso do solo (agrícola ou florestal), topografia (elevação e declividade) e índices de vegetação relacionados à qualidade ambiental. Dados de amostragens de anfíbios nos corpos d’água foram utilizados como variáveis-resposta, permitindo estimar onde há maior probabilidade de presença de indivíduos e, portanto, menor resistência ao deslocamento entre os fragmentos.

Uma vez conferidos os dados de resistência na paisagem, se obtém a conectividade por meio da teoria dos circuitos, que descreve como a corrente elétrica flui em um circuito, entre outros elementos, em função das suas resistências. Na Ecologia, essa abordagem permite simular como movimentos dos indivíduos entre os corpos d’água, em princípio aleatórios, são influenciados pelas características da paisagem, isto é, por sua resistência. Isso permite identificar os corredores com maior probabilidade de uso. Em teoria, os locais com maior conectividade e, portanto, com maior movimentação da fauna, que interceptam as rodovias, indicariam também maior risco de atropelamentos.

Nesse ponto já se tem o modelo construído, que tem por objetivo identificar áreas com maior probabilidade de atropelamentos a partir da conectividade, usando dados de nicho ecológico para estimar a resistência da paisagem. No entanto, ainda é necessário verificar sua validade. Para isso, os pesquisadores compararam os dados de conectividade de diferentes segmentos da estrada com os registros reais de atropelamentos nesses mesmos trechos. Ainda que pareça um passo ordinário, validar o modelo é de vital importância para entender o alcance de predição em circunstâncias reais.

Mas é complicado demais!

Sei que, do ponto de vista de um consultor ambiental, a construção de modelos pode parecer algo complicado e, de fato, exige certo esforço e conhecimento técnico, não vou mentir. No entanto, a literatura já reúne muitos exemplos de modelos desenvolvidos com dados e ferramentas acessíveis e de fácil uso.

Além de isso, em contextos com dados limitados sobre atropelamento de fauna e elevada incerteza quanto à localização ideal para implementar medidas de mitigação, o uso de abordagens como a modelagem preditiva torna-se fundamental.

Então, considerando tanto à imperante necessidade de seu uso, assim como o aceso cada vez mais comum dessas abordagens, vale a pena investir em algum aprimoramento técnico e, talvez ainda mais interessante, procurar por boas parcerias para replicar, adaptar ou criar modelos conforme necessidades específicas.

No final, aplicar modelos preditivos de conectividade pode ser muito mais viável do que parece à primeira vista no âmbito da gestão ambiental de estradas e retornar, além de resultados robustos, uma satisfação pessoal ao realizar nossas inferências com maior grau de certeza.

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