Por Elisa Ilha
Bióloga, mestra em Biologia Animal pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). É pesquisadora colaboradora do Laboratório de Sistemática e Ecologia de Aves e Mamíferos Marinhos (Labsmar/UFRGS) e do Projeto Botos da Barra (Ceclimar/UFRGS)
aquaticos@faunanews.com.br
No dia 8 de junho, celebramos o Dia Mundial dos Oceanos. O objetivo dessa data é lembrar a todos e todas o papel fundamental que os oceanos têm em nossas vidas cotidianas.
Além disso, vivemos, em 2022, o Ano Internacional da Pesca e Aquicultura Artesanal e recém adentramos na Década do Oceano (2021-2030). Esses períodos também têm o intuito de informar sobre o impacto das ações humanas sobre os oceanos e mobilizar a população mundial por e para um projeto de gestão sustentável dos recursos e de conservação dos ecossistemas marinhos.
Nas últimas décadas, a ampliação da escala e da intensidade da pesca comercial, que extrai recursos em níveis industriais, têm levado à sobre-exploração que põe em risco a saúde dos oceanos e a biodiversidade marinha. Ela também põe em risco a segurança e a soberania alimentar de povos e comunidades tradicionais que vivem do mar.
“Pequena em escala, grande em valor” é a frase que marca o Ano Internacional da Pesca e Aquicultura Artesanal, destacando a importância da pequena escala para a manutenção dos sistemas alimentares, dos meios de subsistência e das culturas, e da saúde do ambiente marinho. É reconhecido, assim, o potencial positivo que a pesca artesanal tem de promover mudanças transformadoras – por quem, como e para quem os recursos do mar são obtidos, produzidos, processados e distribuídos – no sistema alimentar global.
É objetivo deste ano, portanto, valorizar as contribuições da pesca artesanal em termos alimentares, econômicos e culturais. Também de promover o diálogo e a cooperação científica-política para fortalecer as comunidades e famílias que dependem dessa atividade. Proporcionar a participação efetiva do setor da pesca artesanal de pequena escala no processo de tomada de decisões, também assegurar que seus conhecimentos tradicionais sejam incluídos na construção de entornos normativos favoráveis – o que também é fundamental para poder traçar estratégias efetivas de conservação para a biodiversidade marinha ameaçada.
Um exemplo desse cenário é a sobrepesca de tainhas (Mugil liza) na região Sul e Sudeste do Brasil. A tainha é uma das principais pescarias do país e é uma espécie sobre-explorada pela pesca comercial, principalmente pela frota industrial de traineiras e pelas frotas de média escala de emalhe anilhado. Estudos indicam que os estoques de tainha estão abaixo do esperado nas regiões Sul e Sudeste e que a captura de cardumes está acima da capacidade biológica que a população da espécie tem de se recuperar. Esse cenário põe em risco tanto uma atividade econômica importante quanto a manutenção dos ecossistemas costeiros e marinhos envolvidos.
Além de fazer parte da tradição culinária dessas regiões, a tainha também é fonte de trabalho, renda e segurança alimentar para inúmeros pescadores/as artesanais – que sofrem diretamente com os impactos da sobrepesca, que ameaça a reprodução dos seus modos de vida tradicionais.
A pesca artesanal da tainha foi reconhecida como um patrimônio cultural imaterial de Santa Catarina. O benefício desse reconhecimento é a oportunidade do resguardo legal, que poderia ajudar a manter a existência dessa prática tradicional, também ameaçada pela especulação imobiliária, pelo turismo de massa convencional e pela prática do surf durante o período de pesca. Esse reconhecimento poderá ajudar na promoção do turismo responsável e de base comunitária, que impulsiona a valorização dos modos de vida, dos conhecimentos e das práticas tradicionais e potencializa o envolvimento da população local.
A tainha é, ainda, um dos três sujeitos principais da pesca cooperativa entre botos-de-Lahille e pescadores artesanais de tarrafa no Sul do Brasil, prática cultural que também avança em direção à patrimonialização no nosso país.
A aprovação da pertinência do registro da “Pesca Cooperativa com a interação entre humanos, botos e tainhas” como patrimônio cultural do Brasil pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) em 2021 fez o processo andar para fase de instrução técnica. Essa prática cultural foi indicada para compor o Livro de Saberes, embora também sejam identificadas relações com outro instrumento de tombamento, conhecido como Chancela da Paisagem Cultural.
O Ofício nº 790/2021 do Iphan destaca os elementos técnicos avaliados em favor da patrimonialização a partir da Nota Técnica 2718925/2021, reconhecendo que tanto os pescadores artesanais de tarrafa, como os botos e as tainhas são fundamentais para a ocorrência dessa prática cultural:
“Foi ressaltado que esse bem [Pesca Cooperativa com a interação entre humanos, botos e tainhas] abre novas fronteiras no campo do patrimônio, pela atratividade de sua temática, cuja trama de cooperação nos oceanos articula homens, tainhas e botos no território, bem como aponta a Nota Técnica (2718925), que aponta para a importância em reconhecer a agência dos botos e de entender a cultura dos botos para se pensar um Registro de uma cultura imaterial interespecífica ou multiespecífica. E, para além disso, incluir o papel das tainhas nesta relação, visto que a pesca não se dá sem as tainhas.”
Isso quer dizer que garantir a conservação dos estoques de tainha, das populações de botos-de-Lahille (espécie classificada como “Em Perigo” de extinção no país), e, também, os territórios e as territorialidades dos pescadores artesanais é necessário para a garantir salvaguarda da pesca cooperativa (ou seja, sua continuação ao longo do tempo).
A pesca artesanal de tarrafa com auxílio dos botos apresenta, por sua vez, uma série de características que ajudam a assegurar a sustentabilidade da pesca de tainhas. Dada sua dimensão, ela não seria capaz de suprir demandas de consumo nacionais, mas tem, sim, potencial de estimular cadeias curtas e redes de comércio locais – que podem beneficiar, ainda, diversos outros atores locais.
Comprando tainhas diretamente com os/as pescadores/as artesanais profissionais, consumidores/as optam por apoiar uma pesca responsável e de pequena escala, que captura tainhas com tamanhos adequados para consumo a partir de redes de pesca mais seletivas (o que se refere às malhas, características dessas redes). Além disso, ao fomentar redes de comércio a partir de um produto da sociobiodiversidade (que reúne práticas e conhecimentos tradicionais dos detentores desse saber), consumidores/as também contribuem para difundir a riqueza dos patrimônios culturais brasileiros e ajudam a mantê-los acontecendo.
Nossas escolhas diárias de consumo não são a única solução para os problemas dos oceanos, mas podem ser um primeiro passo. Por outras vias, é preciso fortalecer a cooperação científica-política para que decisões importantes possam ser tomadas a partir de dados. É, também, preciso engajar e eleger tomadores de decisão que garantam espaços de participação efetiva dos representantes da pesca artesanal de pequena escala nas decisões que os afetam. “A ciência que precisamos para o oceano que queremos” precisa aliar o conhecimento tradicional ao científico para que, de mãos dadas, possam subsidiar políticas de gestão e de conservação que atuem para a proteção dos oceanos e de todas as suas vidas.
– Leia outros artigos da coluna AQUÁTICOS
Observação: as opiniões, informações e dados divulgados
no artigo são de responsabilidade exclusiva de seu(s) autor(es).