Casal que há mais de 30 anos viaja até os lugares mais remotos do Brasil para fotografar a natureza. São adeptos da ciência cidadã, ou seja, do registro e fornecimento de dados e informações para a geração de conhecimento científico
observacaodeaves@faunanews.com.br
Um dos presentes que recebemos quando praticamos a observação de aves é o de conhecer lugares que não são turísticos e que dificilmente iriamos se não fosse a prática desse hobby.
Como todo observador de aves, temos a nossa lista de locais a serem visitados. Essa lista leva em consideração, principalmente, as espécies do local, a infraestrutura, os guias e o custo. Em 2019, tivemos a chance de tirar alguns dias de férias e decidimos viajar para o Piauí e o Maranhão. Além do roteiro prometer várias novas espécies, dentre elas a sanã-preta, que era o grande desafio da viagem, também iríamos ter a chance de conhecer um pouco desses dois Estados.
Contratamos o guia Thiago Rodrigues, que mora na região e conhece muito bem todos os locais e onde encontrar cada espécie. Com base na nossa lista de espécies e do tempo disponível, Thiago montou o roteiro: iriamos sair de Teresina, visitar algumas cidades no Piauí, seguindo para o Maranhão por vários municípios até chegar em São Luís, onde terminaríamos a passarinhada. Como era nossa primeira viagem na região, decidimos esticar alguns dias e aproveitar para conhecer os Lençóis Maranhenses.
A primeira boa surpresa da viagem
Nossa passarinhada iria começar numa segunda-feira. Aproveitamos para chegar no sábado em Teresina e conhecer um pouco da capital do Piauí. Alguns amigos tinham nos informado que a cidade era muito quente, um caldeirão segundo eles, mas não tínhamos muito mais informações.
Quando chegamos em Teresina, entendemos o que nossos amigos tinham falado sobre o clima – era muito quente, mas a grande surpresa era de ver uma cidade com belas e largas avenidas, belas construções, trânsito organizado, uma cidade limpa. Tivemos pouco tempo para conhecer essa cidade que nasceu de forma planejada, que abriga um moderno complexo médico referência para o Nordeste; enfim uma cidade próspera.
Início da passarinhada – Esquentando as turbinas
De Teresina, fomos para cidade de Altos, iniciando nossa passarinhada e onde fizemos vários registros, com destaque para os lifers (novas espécies) chupa-dente-de-capuz e rabo-branco-do-Maranhão.
De Altos, partimos para Campo Maior, também no Piauí, onde a Caatinga é o bioma predominante. O local estava extremamente seco e a nossa pele ardia com o sol quente. Uma ponte, que em alguns dias serviu para dar travessia sobre um riacho, estava sem função nessa época – não existia sinal de água sob ela. Foram muitos registros em Campo Maior: mineirinho, bandoleta, papa-formiga-vermelho, rapazinho-dos-velhos, gavião-de-cauda-curta, dentre outros. O destaque ficou para o sabiá-gongá, que foi o primeiro registro da espécie no bioma da Caatinga no estado do Piauí.
Nos despedimos do Piauí e seguimos para Caxias, no Maranhão, onde fizemos o registro do poiaeiro-de-sobrancelha, fruxu-do-cerrado, pica-pau-anão-pintado, chorozinho-do-papo-preto, araponga-do-Nordeste e o belo peixe-frito-verdadeiro.
A difícil vida de um passarinheiro para fazer um bom registro
Seguimos para Arari, onde tínhamos uma grande relação de espécies a serem registradas e, dentre elas, o grande desafio era a sanã-preta, que além de rara é uma das mais belas. Para se ter uma ideia da dificuldade, essa ave tem registro em apenas quatro cidades no Brasil, com apenas 46 registros fotográficos, sendo alguns repetidos do mesmo autor – posição de novembro de 2020.
A sanã-preta vive escondida em capinzais alagados, arrozais, banhados e brejos. O Thiago conhece bem os hábitos da espécie e montou toda a estratégia para o registro.
Normalmente em arrozais, o fotografo fica na borda, fazendo o registro das espécies que lá habitam. No caso da sanã-preta, nós entramos no arrozal e caminhamos até o ponto onde faríamos o registro. Caminhar em um arrozal não é algo muito agradável, pois se trata de um lugar alagado, com a vegetação até o joelho e habitado por dezenas de aves como diversas espécies de sanãs, de frangos-d’agua, socois, mas também por roedores, pequenos repteis, cobras e até jacarés.
Chegamos ao ponto onde iriamos tentar atrair a sanã-preta e lá nos sentamos no chão e nos cobrimos com um tecido de camuflagem (blind), já com as câmeras fotográficas posicionadas sobre os tripés. Ficamos lá por mais de 40 minutos, atraindo as sanãs com playback de tempos em tempos e sem nos mexer, pois elas são muito ariscas e qualquer movimento poderia assustá-las, frustrando nosso registro.
O calor era muito intenso e embaixo da camuflagem ele era potencializado. Sentíamos o suor escorrendo em nossos rostos e nas costas, mas não podíamos nos mexer. Nossos olhos estavam focados no ponto onde o playback estava posicionado, aguardando a tão esperada visita. Além do calor, começamos a sentir dores musculares por ficar muito tempo na mesma posição, imóveis. De repente, um pequeno movimento dentre os ramos do arrozal. Era uma sanã-preta sondando o local com muita desconfiança. Logo percebemos se tratar de uma dupla, possivelmente um casal. Foram se aproximando pouco a pouco e nós iniciamos as fotos.
Nesse momento tão esperado, começamos a ouvir barulhos no arrozal, atrás de nós. Ficamos apreensivos, pois não fazíamos ideia de qual bicho se tratava. Mas nossa preparação mental para ficar imóveis prevaleceu, ainda mais que naquele momento estávamos começando as fotos. A dupla de sanãs-pretas iam e vinham como se estivessem ganhando confiança e não acreditamos quando elas finalmente ficaram no limpo, nos presenteando com fotos perfeitas – Uma das fotos da Susana é capa da espécie no WikiAves.
Bem, qual era o bicho que estava fazendo barulho atrás de nós? Até hoje não sabemos. O barulho no arrozal durou alguns minutos – deve ter sido a passagem de algum animal com certo porte que causou movimento nos ramos do arrozal e nós não estávamos no menu de alimentação dele!
Após as fotos da sanã-preta, ainda embaixo da camuflagem, atraímos e fizemos lindos registros da sanã-do-capim e da sanã-carijó.
Já tínhamos passarinhado em arrozais antes, mas de longe essa foi a melhor experiência que tivemos nesse ambiente e arredores. Além das sanãs, fizemos lindos registros do guará, do socó-boi-baio, socoí-vermelho, narceja, sanã-parda e da jandaia-verdadeira.
Vale destacar que, antes de nossa viagem, o Thiago esteve no local, obteve as autorizações para entrada e determinou os possíveis pontos para o registro. Isso porque a área é muito grande, com plantações em diferentes estágios e tudo isso faz a diferença para o sucesso no localizar essa difícil espécie.
Passarinhar é também viajar e conhecer novos hábitos
Além de registrar essas preciosidades de aves, essas viagens nos enriquecem com o conhecimento dos hábitos de cada região. Nessa viagem, vimos algumas situações interessantes, como motociclistas andando com moças na garupa e elas segurando sombrinha aberta para proteger os dois do sol, motociclistas andando com espingardas penduradas nas costas” – possivelmente indo ou voltando da caça – e, por fim, presenciamos um motociclista transportando um porco vivo e um pato também vivo na garupa da moto, isso em plena rodovia.
A grande quantidade de espécies da passarinhada estava ainda por vir
Saímos de Arari felizes e pegamos a estrada em direção à São Luís, onde tínhamos uma grande relação de espécies a serem fotografadas.
São Luís, capital do Maranhão, é uma cidade linda e no seu centro existem inúmeros casarões históricos que forma um conjunto arquitetônico tão importante que foi declarado Patrimônio da Humanidade. O nosso planejamento não permitia grandes passeios em São Luís para explorar seus belos pontos turísticos e aí vai uma dica: no planejamento de uma passarinhada em São Luís, reserve pelo menos uns dois dias para conhecer essa bela cidade.
A passarinhada em São Luís foi predominantemente feita nas areias das praias, onde registramos o guará, o maçarico-branco, o maçarico-rasteirinho, a batuira-de-bando, o savacu-de-coroa, a garça-azul e a garça-tricolor. Não podemos deixar de mencionar o gavião-caranguejeiro, que era uma espécie muito desejada e que fotografamos em Bacabeira, cidade vizinha de São Luís.
A ilha dos sonhos de muitos passarinheiros – Cuidado você pode atolar!
Contudo, a grande experiência para os observadores de aves é em uma ilha próxima a São Luiz, na cidade de Raposa. Contratamos a travessia até a ilha com um barco – tipo pescador. A ilha tem poucos turistas, lugar ideal para passarinhar. Um dos cuidados que deve-se ter nessa ilha é que em vários locais, quando a maré baixa, a areia fica como se fosse um lodaçal, que você só percebe quando pisa e se atola até o joelho e continua afundando – é como se fosse uma areia movediça. Todo cuidado é pouco, principalmente com equipamento fotográfico nas mãos. Estávamos andando com uma distância de alguns metros entre nós, quando escutamos literalmente os pedidos de socorro da Susana, que estava afundando na areia, segurando a máquina para cima e com areia já acima dos joelhos – algo desesperador. O Thiago e o Will, passarinheiro que conhecemos lá, que estavam mais próximos a socorreram. O equipamento estava impecável, mas a Susana estava suja de areia até a cintura. Ficou como uma das pérolas da viagem.
Nessa ilha fizemos muitos registros, passarinhando na areia descalços – uma delícia. Registros a destacar: maçarico-de-papo-vermelho, maçarico-de-bico-torto, maçarico-de-asa-branca, maçarico-de-costas-brancas, trinta-réis-real, trinta-reis-ártico, trinta-reis-boreal, trinta-réis-de-bando, trinta-réis-de-bico-preto, trinta-réis-grande, gaivota-alegre, gaivota-de-cabeça-cinza, batuíra-bicuda, saracura-matraca, figuinha-do-mangue, vira-pedras, batuiruçu-de-axila-preta.
Nossa passarinhada encerrava, após rodarmos mais de 1.600 quilômetros entre Piauí e Maranhão. Colocávamos em nossa bagagem o prazer de ter conhecido um pouco mais do Brasil, suas cidades, povos, hábitos, culinária e de ter feito mais um amigo na viagem – o competente guia Thiago Rodrigues.
Lençóis Maranhenses – Beleza indescritível
Aproveitando que estávamos em São Luís, esticamos a viagem, dessa vez sem guia, até a cidade de Barreirinhas para conhecer os Lençóis Maranhenses. Um lugar ímpar que merece ser visitado.
– Leia outros artigos da coluna OBSERVAÇÃO DE AVES
Observação: as opiniões, informações e dados divulgados
no artigo são de responsabilidade exclusiva de seu(s) autor(es)