Pela aposentadoria da teoria da biofilia

Antes de ter sido popularizada pelo ecólogo norte-americano Edward Osborne Wilson, a nossa “orientação psicológica” a tudo que é vivo já havia sido citada pelo cientista social alemão Erich Fromm.

E antes deles, Aristóteles já havia, em seus ensaios, se aproximado desse conceito do “amor aos animais e plantas” com o termo “philia”. E ainda antes a eles e da popularização do termo, podemos certamente afirmar que a percepção da nossa interação com o ambiente natural como algo benéfico, positivo e proveitoso já existia. É antiga, muito antiga. Tão antiga que deve estar cansada. E defasada.

Eu sou a favor da aposentadoria da teoria da biofilia por três motivos que, ao longo deste texto, vou descrever em argumentos:

1º argumento: gostar da natureza o tempo todo não é natural. E “tá” tudo bem

Sempre fui uma pessoa que salva formigas de afogamentos em piscinas ou no box do chuveiro. Sempre assinei petições pela proteção das abelhas, etc. Até ir para a África.

Em 2022, passei nove meses num acampamento no meio da segunda maior reserva de floresta tropical do mundo. Sem banheiro, água encanada, energia elétrica ou internet. Hoje, em casa, eu voltei a ser a pessoa que salva insetos e assina petições, mas o meu ponto é: na África eu era diferente. Lá eu comemorava quando conseguia matar um inseto. Lá, tudo que era vivo queria beber do meu suor, picar a minha pele, se grudar em meus olhos ou entrar na minha boca.

É muito fácil gostar da natureza quando se vai a uma praia, quando se anda numa trilha bem demarcada, quando se senta num jardim ou numa praça cheia de flores coloridas. É óbvio que a gente quer adicionar plantas ornamentais verdes ao nosso ambiente de trabalho, que vive com o ar-condicionado ligado.

Essa experiência é uma coisa.

Outra coisa é estar diariamente em contato com uma parcela da natureza onde você se encontra permanentemente sujeito a leis que não estão nem um pouco sob a sua influência e nas quais você não tem o mínimo controle. Lá, você é só mais um animal e o seu “gostar” é indiferente. Você não tem tempo para pensar “se gosta ou não”. Não existe essa pergunta. Lá, é preciso ser humilde e aceitar que não é tudo sobre você e sobre o que você quer. Lá, os seres humanos são a minoria. Lá, é preciso aprender a dividir o espaço.

E dividir o nosso espaço (seja com animais humanos ou não-humanos) nem sempre é bom, nem sempre é confortável, nem sempre é o que a gente está com vontade de fazer. E como ninguém é perfeito, não precisamos tentar mentir sobre isso ou nos esforçar para conseguir.

2º argumento: o “gostar” da biofilia é, em sua maioria, egoísta e antropocêntrico

No livro A teoria de biofilia (Stephen R. Kellert e E.O.Wilson, 1993) são descritos nove valores “biofílicos” da natureza. Em resumo, são termos/nomenclaturas e suas definições que categorizam tudo o que a gente sente ou pode sentir (bom ou ruim) em relação ao meio natural, às plantas e aos animais. São eles:

• Valoração estética: atração por critérios de “aparência” física da natureza.
• Valoração dominionística: gosto pelo domínio/controle da natureza.
• Valoração humanística: apego emocional ou afetivo pela natureza.
• Valoração moralística: relação ética/moral com/sobre a natureza.
• Valoração naturalística: prazer sentido pelo contato com a natureza.
• Valoração negativista: medo e aversão à natureza.
• Valoração científica/ecológica: gosto pela compreensão e estudo da natureza.
• Valoração simbólica: o gosto pelo uso da natureza para linguagem e metáforas.
• Valoração utilitária: uso prático da natureza (como recurso/bem material).

Esses nove valores foram e ainda são muito utilizados na literatura científica qualitativa e também para justificar a importância da conservação e da proteção ambiental. Por exemplo: à pergunta “por que uma cascavel importa?” pode-se responder que: a) os componentes do seu veneno são importantes na indústria biomédica (valor utilitário) ou que b) ela importa por que é bonita (valor estético) ou c) ela é importante para o equilíbrio da cadeia alimentar/para o controle de pequenos roedores (valor científico/ecológico).

Alguém aí já achou a brecha?

Eu aponto: o que aconteceria se a gente não conseguisse estabelecer um valor utilitário à cascavel, ela deixaria de importar? O que acontece quando a gente não consegue atribuir um valor estético a um animal ou planta, ou desconhecemos o seu valor científico? Deixamos de sentir biofilia?

Disse que o “gostar” da biofilia é “em sua maioria” egoísta, pois os valores humanístico e naturalístico poderiam até salvar o jogo dizendo que todo e qualquer ser vivo tem o direito intrínseco de existir. Mas a verdade é que é difícil convencer as pessoas com base somente nesses critérios, que num mundo capitalista, muitos diriam que são “românticos”. E é por essas e outras que eu acredito que precisamos nos atualizar com outro termo.

3º argumento: prazer, biosinergia!

O que diabos a natureza tem a ver com a nossa biofilia? É simples citar os benefícios que ela nos dá. Mas e nós, o que damos a ela? Qual a nossa importância para animais, plantas e fungos? Já se perguntaram isso? Eu sei que não, já que estamos todos muito distraídos com nossos umbigos. E reparem que eu não estou nem citando bactérias e outros seres unicelulares.

Se a nossa “atenção ao mundo vivo” não engloba todo e qualquer ser, com todas as suas partes e características e comportamentos, ela é realmente “biofilia”? Se a nossa teoria da biofilia se ampara em critérios condicionais e antropocêntricos, não seria ela, muito pelo contrário do que a gente gosta de pregar, só mais um paradigma do nosso distanciamento moral, físico e emocional da natureza?

Em meio a tantas perguntas, eu gostaria de citar um termo por um autor que eu pouco conheço e de quem eu pouco consegui descobrir, mas que em 2019 foi o responsável por abrir a minha mente para um novo conceito:

O termo “biosinergia” descreve/engloba (1) a forma como o resultado da interação entre dois ou mais agentes ou forças biológicas é maior do que a soma de seus efeitos individuais e (2) a teoria de que as estruturas dinâmica e biossociais do mundo natural, responsáveis pela sobrevivência e vigor de existência de todas as formas de vida, são mantidas por essas cooperações e interações entre indivíduos ou forças.

Em resumo, diferentemente da biofilia, que foca meramente em como os seres humanos são impelidos a admirar, entender e se afiliar com espécies que nos são agradáveis ou nos são similares, a biosinergia fala de todas as relações interespécies e forças e fenômenos biológicos: inclusive os que não nos incluem. E para que o ambiente natural seja capaz de recuperar a saúde da biosfera e de seus ecossistemas, a humanidade precisa aceitar a contribuição de toda formiga e grande primata, vírus e serpente, erva daninha e floresta selvagem: “A biofilia não é o suficiente” (Anthony L Rose, 2007; 2011).

Conclusão: argumento bônus

Antes de eu realmente ter a experiência, era fácil romantizar a África. Quando cheguei lá, descobri que, no pior dos meus dias em campo, minha tristeza não era exatamente a exaustação ou a saudade de casa: era me culpar por me ver odiando o que eu tanto havia sonhado pra conseguir. E se a gente pensar bem, é assim com a vida também.

É assim com as nossas relações com nossos familiares e amigos, é assim com o nosso trabalho (qualquer que seja ele). Tem momentos em que a gente cansa, fica abusado, precisa se afastar. Amar algo ou alguém não significa gostar o tempo inteiro. Veio-me agora aquela frase do Schopenhauer: “a vida é uma constante oscilação entre a ânsia de ter e o tédio de possuir”. Às vezes, o grande sinal do “gostar o tempo inteiro” é a falta de conhecimento do outro – característica da paixão. Então, com isso, eu queria te perguntar: será que gente conhece a natureza?

O que você sente pela natureza quando vê fotos ou vídeos de predação entre animais selvagens, como uma leoa carregando um filhote de macaco ensanguentado na boca? Certamente é difícil gostar da cena, mas você é capaz de aceitar? Você é capaz de aceitar o lado da natureza que você não pode controlar?

Será que a gente é capaz de aceitar não encontrar morango no supermercado da nossa cidade por que aquela fruta simplesmente não cresce no solo da nossa região? Ou não encontrar milho pra comer por que estamos fora da estação? Seríamos capazes de não ter raiva quando encontramos uma minhoca dentro de uma berinjela que a gente vai cozinhar ou quando percebemos que todo o dinheiro do mundo não é capaz de garantir que cangurus vão aparecer durante o seu passeio tão caro e planejado na Austrália?

Será que a gente é capaz de enxergar como óbvio que abelhas vão se aproximar da nossa lata doce e cheirosa de refrigerante de guaraná durante o piquenique com os amigos e que nem mesmo o animal mais meigo do mundo tem a obrigação de querer nossa companhia e, pior, “ser nosso”?

Se a gente for capaz disso tudo, eu diria que sim, somos capazes de realmente amar a natureza. E se é de amor que estamos falando – uma das coisas mais naturais que existem -, não precisamos de nenhuma teoria (nem de biosinergia).  Se esse for o caso, não precisamos dar outro nome: não precisamos apelidar de biofilia.

Indicações de leitura

• Livro Biophilia – The Human Bond with Other Species – Edward O. Wilson (1986)
• Livro The Biophilia Hypothesis – Edward O. Wilson e Stephen R. Kellert (1993)
• Artigo Biosynergy : The Synergy of Life – Rose, A. L., &Ph, D. (2007)
• Artigo COMMENTARY Bonding, Biophilia, Biosynergy, and the Future of Primates in the Wild. – American Journal of Primatology, 73, 245–252. Rose, A. L. (2011)
• Artigo Aristotelian Ethics and Biophilia” Ethics and the Environment 19(1):95-121 Santas (2014)

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