Peixes-das-nuvens: quem são eles? São mesmo das nuvens?

Estratégias de sobrevivência de algumas espécies são bem interessantes e intrigam as pessoas, gerando lendas populares, como a dos rivulídeos.

Márcio Joaquim da Silva

Biólogo, com mestrado em Ecologia e Conservação pela Universidade Estadual da Paraíba (UEPB) e doutorado em Sistemática e Evolução pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Trabalha principalmente com peixes de água doce em três áreas: Conservação, Ecologia e Sistemática. Atualmente, é professor adjunto na Universidade Federal do Pará (UFPA), ministrando aulas na graduação e pós-graduação. Coordenador do Laboratório de Conservação, Ecologia e Sistemática de Peixes da mesma instituição (LACESP/UFPA).

10 de janeiro de 2025

Em uma das minhas primeiras participações em trabalhos de campo, lembro-me de ouvir uma conversa entre pesquisadores e alguns ribeirinhos. Estes falavam de uns peixes que, segundo eles, “vinham das chuvas” (caíam das nuvens). A percepção deles era de que, como o local secava completamente e não havia ligação nenhuma com um rio ou riacho, nenhum peixe permanecia ali quando o ambiente secava e, no ano seguinte, eles seriam trazidos de volta com as primeiras pancadas de chuva. Do ponto de vista científico, eles estão, até certo ponto, certos. Acontece que a ideia deles representa apenas uma parte da história dos peixinhos que logo surgem após as primeiras chuvas. Vamos entender?

Peixes-das-nuvens

Esses animais são da família Rivulidae, um grupo de pequeninos peixes de água doce que se distribuem pelas Américas (principalmente na América do Sul) e podem ser classificados, em linhas gerais, como anuais (quando os ambientes em que vivem secam em algum momento do ano) e não-anuais (quando o ambiente tem água o ano todo). As espécies anuais são bem peculiares, entre outros aspectos, por terem machos bem coloridos, ciclos de vida rápido, viverem em pequenas áreas alagadiças (brejos, charcos ou poças temporárias) e apresentarem ovos que passam por um processo chamado de diapausa (essa é a outra parte da história).

Na diapausa (e não hibernação, como às vezes é mencionada erroneamente em alguns textos), os ovos fertilizados ficam sob as primeiras camadas de solo seco, com seu desenvolvimento embrionário parado, até que recursos ambientais adequados voltem a existir (água, por exemplo) e eles retomem o seu crescimento. Esse fenômeno biológico é tão fascinante que existem registros de que esses ovinhos aguardam alguns anos para que a água retorne em quantidade e qualidade adequadas. Não é legal? Mas, os peixes-das-nuvens, por suas características biológicas peculiares e área de vida reduzida, são uns dos peixes de água doce mais ameaçados de extinção no mundo.

Imaginem a situação: um terreno que, em uma parte do ano, seca e; em outra, fica alagado, mas não tem peixes grandes que possam ser comercializados para alimentação e está próximo de uma cidade, parque industrial ou até mesmo na rota de construção de uma estrada ou outro empreendimento. Um dos primeiros pensamentos dos donos ou responsáveis por essa área provavelmente será: “vamos aterrar (para impedir o alagamento) e fazer um loteamento ou nivelar o terreno para construirmos seja lá o que for”.

Isso mudará completamente o ambiente ou até mesmo o extinguirá (caso seja completamente soterrado ou cimentado) e, se modificar/extinguir o local, o que inevitavelmente vai acontecer com os peixes? E se esse for o único local do mundo em que essa espécie ocorre? Coitados dos peixinhos! A perda ou modificação do hábitat é a principal causa de extinção de espécies no mundo, e não é diferente com os peixes-das-nuvens.

Esforço para a conservação

Nesse contexto, desde 2013 (até 2018, ciclo 1, e de 2022 até 2027, ciclo 2), o Centro Nacional de Pesquisa e Conservação da Biodiversidade Aquática Continental (CEPTA-ICMBio) coordena o Plano de Ação Nacional para Conservação dos Peixes da Família Rivulidae. O primeiro ciclo desse plano buscou estabelecer mecanismos de proteção aos rivulídeos e anular a perda de hábitat das espécies focais. Atualmente, em seu segundo ciclo, tem o objetivo consolidar e ampliar estratégias de conservação dos peixes rivulídeos ameaçados de extinção e dos seus ambientes.

Entre 2022 e 2024, colaborando com essa política pública, equipes de pesquisadores de várias partes do Brasil desenvolveram trabalhos de campo na tentativa de ampliar o conhecimento sobre esses peixes em diversos biomas brasileiros. Na Amazônia, foram realizadas três expedições (Rivulídeos Amazônicos 1, 2 e 3) em três Estados: Pará, Maranhão e Tocantins. Ao todo, foram visitados mais de 150 locais e feitos importantes registros de espécies ameaçadas de extinção que ajudarão a traçar melhores estratégias de conservação desses peixes nos próximos anos.

Portanto, os peixes-das-nuvens adultos deixam de existir em locais que secam. Mas antes, colocam seus ovinhos no substrato, os quais, após as primeiras chuvas, eclodem, dando a impressão que eles caem com a chuva, sim! Para garantir esse curioso ciclo de vida, devemos conservar nossas áreas úmidas.

Referências

Costa, WJEM. Peixes anuais brasileiros: diversidade e conservação. Editora UFPR. 2003. 238p.
Brasil (MMA-ICMBio). Plano de Ação Nacional para a Conservação dos Peixes Rivulídeos Ameaçados de Extinção
Silva, MJ. et al. Novos registros de ocorrência de espécies sob risco de extinção da família Rivulidae da Amazônia Brasileira, Pará, Brasil. Anais do XXXV Congresso Brasileiro de Zoologia. 2024.

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Sobre o autor / Márcio Joaquim da Silva

Biólogo, com mestrado em Ecologia e Conservação pela Universidade Estadual da Paraíba (UEPB) e doutorado em Sistemática e Evolução pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Trabalha principalmente com peixes de água doce em três áreas: Conservação, Ecologia e Sistemática. Atualmente, é professor adjunto na Universidade Federal do Pará (UFPA), ministrando aulas na […]