
Por Adriana Prestes
Bióloga, responsável técnica por áreas de soltura e monitoramento de fauna silvestre na Serra da Mantiqueira e Vale do Paraíba (SP) e secretária executiva do Grupo de Estudo de Fauna Silvestre do Vale do Paraíba, Litoral Norte e Serra da Mantiqueira
segundachance@faunanews.com.br
Nesta coluna, venho contando várias histórias de animais silvestres que foram soltos e nesse contexto não tem como não falar de certas “criaturas” que estão diretamente relacionadas com as ações de soltura. Já falamos bastante do “dono” de animal silvestre mantido como pet e do caçador. O artigo de hoje vai tratar de um outro personagem fugidio e estranho: o colecionador de animais.
Todos os dias temos diversas notícias informando sobre ações de traficantes de animais. As finalidades são várias, mas óbvio, o que fomenta esta indústria é o dinheiro. O tráfico é complexo, vultoso e tremendamente impactante para a fauna silvestre brasileira (acesse aqui para saber mais). Mas o tráfico só existe porque existem consumidores. E nosso foco hoje é tentar entender o que motiva pessoas a “encarcerar” centenas de animais em sistema de penitenciária de segurança máxima, chamando isso de coleção.
No caso do pet, já virou meio anedota, meio exemplo real, a figura da velhinha vivendo sozinha com seu papagaio, inocente e que só quer o bem do louro, que no caso só quer café… Na prática, o que se observa é uma tremenda carência afetiva da pessoa “dona” de pet e uma ignorância do real conceito de bem-estar e da adoção de boas práticas para a criação da imensa maioria dos bichos de estimação silvestres mantidos em cativeiro. Além disso, tem o dia a dia e, depois de alguns anos na manutenção dos pets, esses donos se esquecem e se desinteressam, deixando os bichos vivendo em um tipo de cadeia decadente e suja.
Mas no caso do colecionador, o perfil é bem diferente. Não raro são pessoas que têm formação profissional compatível (veterinários e biólogos), conhecem animais a fundo e têm condições financeiras tanto para pagar os altos preços alcançados por certas espécies como para criar uma infraestrutura necessária para mantê-los. Ainda é importante ressaltar que o impacto na população de fauna silvestre é diferente nos dois casos, o do pet e o do animal exótico de coleção.
Enquanto no primeiro caso o que destrói a população natural é a massificação da procura, por papagaio-verdadeiro, por exemplo, no caso do colecionador é a busca pelo exótico; pelo raro. Todo animal raro o é por condições específicas de sua biologia (populações naturalmente restritas ou endêmicas – que só existem em uma região), que muitas vezes é até desconhecida. O tráfico sobre espécies ameaçadas é devastador e leva a extinção global da espécie em curto tempo.
Se no primeiro caso é carência e ignorância, o que motiva pessoas a manter coleções de animais? O que faz com que estes seres, que têm conhecimento e que, apesar disso, ainda alimentam a máquina que faz funcionar o tráfico de fauna em todo o mundo? Porque sim, muitas dos exemplares das espécies mais valorizadas por colecionadores brasileiros vêm de outros países, como da Indonésia entre outros.
Infelizmente conheço alguns desses colecionadores. E bem de perto. A bizarrice começa com uma conversa inocente sobre alguma espécie, digamos sobre o manejo da mesma. Daí vem a segunda parte, onde o interlocutor diz: “o ‘meu’ exemplar, trato assim… Inclusive, Zoológico tal não sabe fazer e volta e meia me chamam para ajudar.”
É uma conversa em que o “colecionador” primeiro afirma o seu poder e o eu tenho, depois a sua expertise, o eu sei e por fim, o sou legítimo pois o Zoológico tal me consultou. E assim vão vivendo e eventualmente permitindo até tours por suas coleções e, não se iluda, algumas são mesmo impressionantes e bem montadas. Algumas até mesmo viram zoológicos legalizados após alguns anos de atividade subterrânea, digamos assim. Esses colecionadores são conhecidos e têm grupos de mensagens e tudo mais, com venda na internet e por cartão de crédito.
Mas qual a relação desses personagens: o dono de pet, o traficante e o colecionador com a área de soltura?
A relação deveria ser a mais estreita possível, por que se estivéssemos combatendo a degradação de nossa biodiversidade de fato, estaríamos realmente fazendo uma campanha para, pelo menos, diminuir a atuação desses personagens e não ficarmos limitados a eventos de apreensão, que, não se iludam, dependem no mais das vezes de denúncias feitas por terceiros, pois são raros os casos onde existiram ações de inteligência investigativa para coibir o tráfico de animais silvestres.
Um instrumento valoroso, e que está em lei e permite fazer essa ponte, é a entrega voluntária. É o caso de alguém que tem um papagaio e não deseja mantê-lo poder fazer a entrega em órgão ambiental competente, no caso mais comum a Polícia Militar Ambiental, sem sofrer qualquer tipo de punição (criminal ou multa). O agente ambiental então procede a destinação, dando preferência a soltura exatamente como está na Lei Federal 9.605/1998.
Imagine que incrível fazermos uma campanha nacional de entrega voluntária de animais silvestres mantidos em cativeiro, com papagaios voando em vez de em gaiolas? Sonho? Quem sabe? Do que jeito que estamos tratando nossa biodiversidade, não vai sobrar muita coisa para contar a história…
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