Os “grilos” da cunhã-poranga do Boi Garantido

Eis que, num piscar de olhos, chego a quatro anos de honrosa participação mensal na coluna Invertebrados. Para esta 48ª conversa minha por aqui, me permito trazer uma abordagem da qual gosto muito, misturando insetos com cultura. E aí tanto faz se é a cultura pop, aquela que costuma ser bem mais comercial, seguindo tendências de mercado e contando com respaldo midiático de amplitude, ou a cultura popular, de valores mais locais e históricos de cada comunidade. Se tem inseto, eu estou dentro.

Ontem, por exemplo, chegou ao fim a edição 2024 do Big Brother Brasil (BBB), programa televisivo de inegável sucesso comercial, mais um daqueles casos em que muitos dizem não assistir ou acompanhar, mas os dados de audiência meio que contradizem isso. Eu mesmo costumo dizer que, terminada a edição do BBB, meu único motivo de aborrecimento cultural volta a ser o Flamengo.

Uma das participantes de maior destaque no BBB 2024, e que, por sinal, contou com a minha torcida, é a manauara Isabelle Adriana Nogueira Dias, a cunhã-poranga do Boi Garantido, no Festival Folclórico de Parintins. Realizado anualmente no município de Parintins, interior do Amazonas, esse festival é reconhecido como Patrimônio Cultural do Brasil pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) [1], sendo considerado por muitos a maior festa folclórica do mundo. Nela, da última sexta-feira de junho até o domingo subsequente, há ferrenha disputa festiva entre duas agremiações folclóricas: o Boi Garantido (vermelho) e o Boi Caprichoso (azul).

Essa contenda acontece no Centro Cultural de Parintins, mais conhecido como Bumbódromo, que tem capacidade para 35 mil espectadores [2]. Todos os temas desenvolvidos ano a ano pelos Bois de Parintins são relacionados à cultura amazônida e à própria cultura popular brasileira. Monstros, encantados e visagens marcam presença no espetáculo e, como praticamente todos têm inspiração nos bichos e demais elementos da natureza, isso leva ao deslumbramento do estudioso de Zoologia Cultural aqui.

Assim, Cunhã (como é conhecida Isabelle) promoveu uma interessante união entre as culturas pop e popular, posto que ela frequentemente contava sobre danças, coreografias, causos e lendas da Amazônia, sempre com muito entusiasmo e brilho nos olhos. Segundo o regulamento do Festival Folclórico de Parintins, a cunhã-poranga é uma “moça bonita, guerreira e guardiã que expressa força através da beleza”. Sua performance é um dos itens pontuados na manifestação cultural. Representa também empoderamento feminino, beleza indígena, capacidade guerreira e defesa das tradições e patrimônios naturais [3].

Por sua forte ligação pessoal e profissional com a natureza, no BBB 2024 era comum ver Cunhã observando e interagindo carinhosamente com plantas, passarinhos e insetos. Dentre essas interações, uma chamou bastante atenção dos espectadores do programa: frequentemente ela pegava “grilos” nos gramados da casa. Em um BBB bastante polarizado e caracterizado por verdadeiras batalhas de narrativas nas redes sociais, em que jogadores ganharam proporções quase que míticas e torcida incondicional (independentemente de suas incoerências), xingamentos, ofensas, fake news e cancelamentos têm sido a tônica – praticamente um mini retrato da sociedade brasileira atual. Cunhã foi sempre uma das maiores vítimas de ataques nas redes sociais, tanto por causa de sua defesa do cenário cultural do qual ela faz parte quanto pela ligação com a natureza. É comum ver postagens em que ela é xingada de “grila”, dentro do comum e absolutamente inadequado uso dos animais como xingamento – tema já abordado por aqui [4].

Os grilos de Cunhã

Mas, afinal, quem são os “grilos” da Cunhã? O que é um grilo?

Bom, a nomenclatura científica é regida por regras fixas e rígidas, o que faz com que os nomes de espécies e gêneros de animais, plantas, fungos, protozoários, bactérias e outros seres vivos sejam complexos e de difícil compreensão para a maioria das pessoas. Poucos nomes científicos se tornam efetivamente mais populares, como o nosso próprio, Homo sapiens, e o do mosquito-da-dengue, Aedes aegypti, esse último já tendo sido tema neste espaço [5].

Na boca do povo costumam mesmo é estar os chamados nomes comuns ou populares. E isso é fácil de entender. Se eu descer do meu apartamento, for ao playground do prédio e perguntar aos vizinhos que encontrar por lá se eles conhecem a Panthera onca, sou capaz de apostar que ninguém conhece. O quadro muda de figura se eu usar o nome comum. Afinal, quem não conhece a onça-pintada? Os nomes comuns têm essa peculiaridade legal: eles popularizam. Outra característica deles é que são sujeitos a regionalismos, com variações locais. Mas, talvez a mais efetiva regra em relação aos nomes comuns é que eles não seguem regras: nascem espontaneamente.

Biólogos como eu não podem ver uma parada meio que sem regras que vão logo lá na tentativa de ordenar. Nada escapa de nossa sanha organizadora, nem mesmo os nomes comuns de seres vivos. Por exemplo, experimenta dizer que aquele simpático quelônio que você tem em casa há décadas é uma tartaruga e logo aparecerá um biólogo para “corrigir”, afirmando se tratar de um jabuti. Ou ouse chamar a orca mascote do Santos de baleia, que logo alguém dirá ser um golfinho – esquecendo que um dos nomes comuns do cetáceo preto e branco é baleia-assassina. Deve ser prerrogativa da profissão, sei lá. Eu mesmo fico todo incomodado quando alguém chama os exemplares melânicos da onça-pintada de pantera-negra. No mundo imaginário e inexistente em que eu dito as regras, a onça melânica é onça-preta, enquanto que as panteras-negras são meros leopardos… Mas não é assim que a banda toca, como bem nos ensinou a querida professora Marcia Denise Guedes [6].

Voltando aos “grilos” da Cunhã… O várias vezes aqui mencionado Dicionário do Folclore Brasileiro (sim, eu adoro essa obra) narra, no verbete “grilo”, vários usos do inseto na terapia popular [7], mas isso não vem tanto ao presente caso. Interessantemente uma espécie europeia, Gryllotalpa vulgaris, é a única citada no verbete (até com erro de grafia, diga-se de passagem – está lá como “Gryllotalpha”).

Outro dicionário dos bons e das antigas, o icônico Dicionário dos Animais do Brasil [8] diz que grilo é nome comum de todos os ortópteros (insetos da ordem Orthoptera) da família dos grilídeos (Gryllidae), bichos que vivem ao redor das casas humanas, escondidos na terra solta. Os exemplos listados são os gêneros Gryllus (grafado erroneamente como “Grillus”) e Gryllotalpa (grafado erroneamente como “Grillotalpa”), sendo esse último alusivo aos grilos-toupeiras ou paquinhas. Temos então ordem (a dos ortópteros) e família (a dos grilídeos) associadas ao nome comum grilo.

Os ortópteros estão entre os insetos mais comuns e familiares ao homem. São conhecidos por sua capacidade de locomoção aos saltos, usando as poderosas pernas posteriores, e pela capacidade de produção e propagação de sons, amplamente utilizados para fins reprodutivos. Os grilídeos são ortópteros mais achatados dorsoventralmente, quase sempre de coloração escura e de antenas muito longas [9]. Em um mundo em que nomes comuns seguissem regras científicas, a eles seria mais destinada a designação de grilo. Vale ressalvar que o gênero Gryllotalpa, duplamente mencionado acima, pertence à outra família de ortópteros, Gryllotalpidae, hoje em dia considerada à parte, mas que já foi enquadrada entre os grilídeos. Chego a ficar grilado com tanta confusão!

Ainda com relação a esse último dicionário, a cereja do bolo está ao final do verbete, em que é dito que, na Bahia, os cultivadores de cacau dão, “erroneamente”, o nome comum de grilo a várias espécies da família dos tetigonídeos (Tettigoniidae), a das chamadas esperanças. O autor do grandioso livro, Rodolpho Theodor Wilhelm Gaspar von Ihering, como bom biólogo que era, não resistiu à tentação de criticar uma utilização local de nome comum. Pois bem, os tetigonídeos são ortópteros de corpo achatado lateralmente, igualmente de antenas bem longas, só que com coloração preponderantemente verde, sendo que as asas anteriores podem ser muito semelhantes a folhas [9].

“Não é grilo, é esperança!”

Os “grilos” com os quais a Cunhã interagiu são tetigonídeos. Ao ver pela televisão a cena e ouvir a menção ao nome grilo, eu quase caí da cadeira e logo pensei algo como “não, Cunhã, não é grilo, é esperança!”. Mas, diante de tudo que já mencionei, minha vontade não se sobrepõe à vontade da Cunhã, dos cacaueiros baianos ou de qualquer outra pessoa ou grupo. À Ciência cabe o papel de dizer que os pequenos amigos da guerreira amazônida são insetos da ordem Orthoptera e da família Tettigoniidae, mas é prudente não dar palpite na voz do povo no que se refere ao nome comum dos nossos bichos.

Afinal de contas, pouco importa o nome que eu, você ou Cunhã damos aos grandes insetos verdes que apareceram no BBB 2024. O que importa é que a cunhã-poranga do Boi Garantido continue a emprestar sua representatividade para mostrar respeito e afeição aos insetos, grupo que sempre merece todos os aplausos.

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Referências

• [1] IPHAN – Boi Bumbá do Amazonas agora é Patrimônio Cultural do Brasil
• [2] Da rua para o bumbódromo: flagrantes do espetáculo em Parintins
• [3] Saiba o que é ‘cunhã-poranga’, personagem folclórico representado por Isabelle Nogueira, participante do AM no ‘BBB 24’
• [4] Não, golpistas não são insetos!
• [5] O mosquito, o besouro e a efemérida que vieram da África
• [6] Ybambe! Ybambe! Wakanda também é aqui
• [7] Cascudo, Luís da Câmara. 2012. Dicionário do Folclore Brasileiro, 12ª edição. Global Editora.
• [8] Ihering, Rodolpho von. 1968. Dicionário dos Animais do Brasil. Editora Universidade de Brasília.
• [9] Souza-Dias, Pedro G. B. et al. 2024. Cap. 19 -Orthoptera Olivier, 1789. In: Rafael, José A. et al. (ed.). Insetos do Brasil: diversidade e taxonomia, 2ª edição. Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia, p. 254-290.