Por Elisa Ilha
Bióloga, mestra em Biologia Animal pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). É pesquisadora colaboradora do Laboratório de Sistemática e Ecologia de Aves e Mamíferos Marinhos (Labsmar/UFRGS) e do Projeto Botos da Barra (Ceclimar/UFRGS)
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No artigo anterior “Como os cetáceos contribuem para difundir a cultura oceânica”, abordei a Cultura Oceânica e como os cetáceos (baleias, botos e golfinhos) podem ajudar a difundir os princípios vinculados a essa estratégia. Enquanto animais carismáticos, os cetáceos têm o potencial de atrair a atenção das pessoas, ajudando no engajamento de todos(as) pela conservação.
A compreensão da influência do oceano em nós e da nossa influência no oceano é a essência da Cultura Oceânica, estratégia vinculada à Década do Oceano e ao Objetivo do Desenvolvimento Sustentável (ODS) 14 – Vida na Água. Essas iniciativas buscam ampliar a conscientização global sobre a importância do oceano e mobilizar pessoas, organizações e governos para dialogar e agir por cenários mais sustentáveis, capazes de contribuir para a saúde do oceano e dos ecossistemas marinhos – e, consequentemente, de todos(as) nós!.
O principal instrumento da Cultura Oceânica é o livro Cultura Oceânica para todos: Kit Pedagógico, que apresenta sete princípios fundamentais:
Para o Princípio 1: a Terra tem um oceano global e muito diverso, as baleias-verdadeiras e seus movimentos migratórios nos ajudaram a entender como o oceano é um grande oceano global; interconectado através das bacias oceânicas (Atlântico, Pacífico, Índico, Antártico e Ártico), de modo que a água do mar, a matéria e os organismos podem se mover entre elas.
Por sua vez, o Princípio 2: o oceano e a vida marinha têm uma forte ação na dinâmica da Terra aborda como o oceano e as formas de vida nele contidas moldam o planeta, através do movimento lento e contínuo das marés, da ação das ondas, da atividade das placas tectônicas, da erosão ou da formação de áreas costeiras ao longo do mundo. São apresentados como exemplos dessa força, as falésias da Normandia (no litoral norte da França) e a cadeia montanhosa das Dolomitas (contida nos Alpes, no norte da Itália).
Algumas partes da cadeia montanhosa das Dolomitas alcançam, atualmente, mais de três mil metros de altitude. Há milhões de anos atrás, entretanto, elas estavam debaixo d’água e foram recifes de coral que habitavam o fundo oceânico do antigo mar de Tethys.
O mar de Tethys foi uma imensa massa de água (um oceano gigante) que se formou há 250 milhões de anos, quando todos os continentes da Terra ainda estavam unidos no supercontinente Pangeia. Essa imensa massa de água inundava parte do que hoje em dia conhecemos como Europa e existiu até aproximadamente 15 milhões de anos atrás.
Com o passar do tempo, a fragmentação da Pangeia e o deslocamento dos continentes, o mar de Tethys foi diminuindo e dando lugar ao que hoje conhecemos como mar Mediterrâneo. Além do Mediterrâneo (mar que se localiza entre Europa, África e Ásia), também existem evidências da vida no mar de Tethys em terra ou no alto de montanhas, como as Dolomitas. No Everest, a montanha mais alta do mundo, também há formações de rochas marinhas que são evidências do Mar de Tethys, a mais de oito quilômetros acima do nível do mar.
O extenso registro fóssil de organismos marinhos que foi encontrado nos Alpes europeus, em montanhas e desertos do continente africano e na cordilheira do Himalaia, na Ásia, revelou os movimentos das placas tectônicas e como essas formações geológicas estiveram debaixo d’água antes de formarem parte da superfície da Terra. O registro fóssil revelou, também, a biodiversidade que existia nesse antigo mar tropical, como amonites, tubarões e celacantos, répteis marinhos, trilobitas e mariscos que viviam no fundo do mar.
Foi também no mar de Tethys que, entre 55-50 milhões de anos atrás, se originaram os primeiros cetáceos: mamíferos que se adaptaram completamente à vida aquática. Hoje, sabemos que os ancestrais mais antigos dos cetáceos foram mamíferos terrestres, herbívoros, de quatro patas e com cascos fendidos (ou seja, com número par de dedos). Eram animais semelhantes a veados e relacionados aos artiodáctilos. Dados atuais suportam, que, dentre os artiodáctilos, o grupo não extinto mais próximo aos cetáceos são os hipopótamos (outros exemplos viventes dos artiodáctilos são os bovinos e os suínos).
Os primeiros cetáceos parecem ter começado a utilizar o ambiente aquático como refúgio contra predadores e/ou como fonte de alimento. Na literatura, costumam ser referidos como “anfíbios” devido sua capacidade de andar em terra e nadar. Existem múltiplas linhas de evidências que documentam a evolução dos cetáceos na transição do ambiente terrestre para o aquático (veja algumas delas). Os ancestrais dos cetáceos passaram por inúmeras mudanças que são observadas em uma série de adaptações funcionais e ecológicas: corpos hidrodinâmicos, membros anteriores adaptados em nadadeiras com a redução dos membros posteriores, o orifício respiratório no topo da cabeça, entre outros.
O registro fóssil segue ajudando a contar a história da evolução dos cetáceos e dos ambientes onde viveram: um dos últimos fósseis encontrados estava na depressão de Fayum, no deserto ocidental do Egito, em região que também esteve sob o nível do mar de Tethys.
A evolução dos cetáceos não foi uma história linear e refletiu inúmeras mudanças que ocorreram também no ambiente marinho. O oceano austral surgiu, os continentes se separaram da Gondwana (supercontinente que existiu ao sul da linha do Equador, após a fragmentação da Pangeia, e que deu origem ao supercontinente Laurásia, ao norte do Equador), os gradientes trópico-polares passaram a ser demarcados e houve mudanças na produtividade oceânica. O ambiente marinho, assim como as suas formas de vida, se diversificou.
Entre 12-15 milhões de anos atrás, ocorreu a mais recente diversificação entre os cetáceos, com o surgimento rápido de várias das espécies de odontocetos e misticetos que conhecemos hoje. Essas espécies parecem ter respondido a novos nichos ecológicos em um oceano em rápida transformação. Na diversidade das espécies de cetáceos viventes, podemos observar todas as adaptações que esses organismos passaram para poder viver no ambiente aquático.
Além disso, sabemos, cada vez mais, como a vida marinha exerce uma forte ação na dinâmica na Terra. Em relação aos cetáceos, isso se dá principalmente na regulação térmica do planeta e na produção do oxigênio que respiramos. E, com essa temática, nos adiantamos para o Princípio 3: o oceano exerce uma influência importante no clima. Mas, como esse tema já foi abordado em outros dois artigos aqui na coluna Aquáticos (“Precisamos das grandes baleias para reduzir os efeitos das mudanças climáticas” e “Do valor intrínseco ao valor monetário: por que conservar as baleias e os golfinhos?”), vou evitar ser repetitiva e extensa e deixar os dois artigos como sugestão de leitura!
No próximo mês, seguimos com os demais princípios da Cultura Oceânica.
Até lá!
– Leia outros artigos da coluna AQUÁTICOS
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