Bióloga e mestra em Ecologia. É analista portuária-bióloga na Portos do Paraná e integrante da REET Brasil
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As migrações humanas, sejam por terra ou por mar, trazem como consequência a dispersão de vários organismos vegetais, animais e, inclusive, patógenos, tanto de forma intencional quanto acidental. As grandes navegações (iniciadas no século 15) intensificaram essa dispersão entre os diferentes continentes e a globalização atual potencializou ainda mais esse processo.
As espécies aquáticas podem ser dispersadas através da água de lastro e bioincrustação, conforme discutido aqui no artigo “Os perigos ocultos na água de lastro à fauna”(29 de outubro de 2020).Mas os mamíferos terrestres, como os roedores, também encontram possibilidades de dispersão através do modal aquaviário.
As espécies asiáticas Rattus norvegicus (rato-marrom ou ratazana), Rattus rattus (rato-de-telhado ou rato-preto) e Mus musculus (camundongo) são atualmente encontradas em todos os continentes, com exceção da Antártica, e foram dispersadas primariamente através de navios. Esses animais embarcam através dos cabos de amarração, das escadas e da própria movimentação das cargas/contêineres dos armazéns para os porões das embarcações.
Fonte: countryservicespestcontrol.co.uk, mammalnet.com, biolib.cz
Esses roedores são classificados como fauna sinantrópica nociva, que corresponde aos animais (silvestres nativos ou exóticos) que utilizam recursos de áreas antrópicas, de forma transitória ou permanente, e interagem de forma negativa com a população humana, causando-lhe transtornos significativos econômicos ou ambientais, ou que represente riscos à saúde pública (Instrução Normativa IBAMA nº 141/2006). Atualmente, esses animais estão distribuídos em praticamente todos os centros urbanos.
Dada a dieta generalista desses roedores invasores, eles representam uma ameaça para as populações nativas de aves, pequenos mamíferos, répteis e anfíbios, ao predarem os adultos e os ovos1; e até mesmo para espécies vegetais, ao consumirem as sementes2. Também foi reportado o declínio e a extinção de populações de invertebrados (como besouros e moluscos), inclusive os marinhos (como as cracas), devido à presença desses roedores3. Assim como as demais espécies exóticas invasoras, esses animais, ao encontrarem no novo ambiente condições adequadas à sua sobrevivência e reprodução, podem afetar as populações locais e, consequentemente, ter efeitos na comunidade e nos serviços ecossistêmicos da região.
No entanto, em Paranaguá (Paraná), foi verificado que a presença de fragmentos de florestas próximos ao centro urbano parece atuar como uma barreira para a dispersão desses roedores invasores para além das áreas urbanas. Isso se deve pela presença de predadores4, ressaltando assim a importância da conservação dos remanescentes florestais e de sua biodiversidade, principalmente na área do entorno das áreas portuárias e de apoio ao transporte aquaviário.
Ainda, as espécies Rattus norvegicus e Rattus rattus são vetores de vários patógenos para os seres humanos e para outros animais, como a leptospirose e a síndrome pulmonar por hantavírus, sendo que o segundo também é associado a propagação de tifo e da peste bubônica através da sua pulga. Dessa forma, o controle desses animais é uma medida necessária e urgente.
Os navios, de forma a evitar o acesso desses animais a bordo, utilizam protetores nos cabos de amarração quando atracados e evitam deixar as escadas em contato direto com o cais.
Dado os impactos negativos que esses roedores invasivos, assim como o restante da fauna sinantrópica nociva, geram ao meio ambiente e à saúde humana, tanto o Ibama quanto a Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) possuem normativas para o manejo dessas espécies (IN IBAMA nº 141/2006, Resolução da Diretoria Colegiada – RDC n° 72/2009 e RDC n° 222/2018).
A RDC n° 72/2009 trata especificamente do controle sanitário dos portos nacionais e das embarcações que por eles transitem, abarcando todas as espécies sinantrópicas nocivas, na qual exige um programa de controle e monitoramento dessa fauna e a limpeza e desinfecção sistemática e periódica das embarcações e dos terminais portuários. Dentre os profissionais que podem atuar nesse controle e monitoramento, destacam-se os biólogos, que conforme a Resolução do Conselho Federal de Biologia nº 384/2015 são profissionais habilitados para executar esse serviço.
Os riscos ocasionados pelas espécies exóticas invasoras, juntamente com as medidas e demais cuidados para evitar a entrada e dispersão delas e a conservação dos fragmentos florestais, são fundamentais para a proteção da fauna nativa e da saúde pública, além de se tornam urgentes no contexto em que vivemos uma crise da perda da biodiversidade e uma emergência de saúde de importância internacional com transmissão associada à globalização (pandemia de Covid-19).
Referências
1 – Sarmento R., Brito D., Ladle R.J., Leal G.R., Efe M.A., 2014. Invasive house (Rattus rattus) and brown rats (Rattus norvegicus) threaten the viability of red-billed tropicbird Phaethon aethereus) in Abrolhos National, Brazil. Trop. Conserv. Sci. 7: 614–627.
2 – Allen, R.B., Lee, W.G. and Rance, B.D., 1994. Regeneration in indigenous forest after eradication of Norway rats, Breaksea Island, New Zealand. New Zealand Journal of Botany 32: 429–439.
3 – St Clair, J.J.H., 2011. The impacts of invasive rodents on island invertebrates. Biol. Conserv. 144: 68–81.
4- Gatto-Almeida, F., Ferreguetti, A.C., Pontes, J.S. Tiepolo, L.M., Hassi, I., 2020. The Atlantic Forest as a barrier to invasive rodents: study of a seaport in southern Brazil. Hystrix, the Italian Journal of Mammalogy. 31 (2): 87–93.
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