Por Adriana Prestes
Bióloga, responsável técnica por áreas de soltura e monitoramento de fauna silvestre na Serra da Mantiqueira e Vale do Paraíba (SP) e secretária executiva do Grupo de Estudo de Fauna Silvestre do Vale do Paraíba, Litoral Norte e Serra da Mantiqueira
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Essa pergunta pode parecer estranha, amigo leitor, mas vamos ver juntos neste artigo que ela faz todo o sentido!
No ano de 2021, pretendo focar meus artigos esmiuçando as principais críticas que têm sido feitas às solturas de animais silvestres da fauna brasileira. Antes, porém, já cabe uma questão: afinal, quando usamos a palavra soltura, queremos de fato dizer o quê?
Para responder essa questão, é necessário fazer uma certa “engenharia reversa”, partindo do animal. Um animal silvestre pode “seguir” vários caminhos até o seu destino em um local de recebimento e manutenção de fauna. O primeiro deles, e infelizmente o mais comum e em maior quantidade, sobretudo quando consideramos algumas espécies em como papagaios e araras, é o caminho do tráfico ilegal de silvestres. Normalmente são traficados os filhotes, que são mantidos por atravessadores até sua venda. É exatamente aí, com esses atravessadores que mantêm os animais de forma precária, já que a atividade é ilegal, que podem ocorrer os escapes. Ou seja, os animais “fogem”.
A fuga também acontece quando alguém compra e mantém de forma inadequada esses animais. São gaiolas pequenas, viveiros improvisados aliados o infame hábito de cortar ou arrancar as penas das asas (sim amigos, é muito comum receber animais com as penas das asas arrancadas!) em que silvestres são mantidos em semiliberdade até que, uau, eles saem voando!
E embora algumas pessoas apontem também que “donos” de animais silvestres façam regularmente “solturas” clandestinas por medo de serem responsabilizados legalmente, nossa experiência mostra que essa situação não é tão comum como as outras duas. Conclusão: todas essas situações ligadas ao tráfico de fauna não são solturas, mas sim escapes.
Um segundo caso, também muito comum, ocorre quando pessoas compram animais, exóticos ou não, e por várias razões não os querem mais. Para resolverem o problema, elas fazem uma “soltura”, que, claro, acontece de forma discreta quando ninguém está vendo. Os tigres d’água, aquela tartaruguinha de água doce, são bons exemplos disso. Conclusão: o nome disso não é soltura, mas sim abandono.
Soltura é aquela ação planejada da liberação de animais da fauna nativa, por agente público ou privado devidamente autorizado, de animais devidamente reabilitados em ambiente compatível com a espécie, que após a soltura são devidamente monitorados, ou seja, nada a ver com as situações apontadas anteriormente. Portanto quando falamos em soltura nesta coluna, estamos falando de uma ação planejada!
Agora voltemos a questão colocada no título deste artigo. Afinal, o que soltamos: a espécie ou o indivíduo?
Uma das mais ferrenhas críticas feitas às ações de soltura é a de que reintroduzir indivíduos em qualquer local teria um impacto negativo sobre as populações de indivíduos que já estivessem “residindo” lá, assim afetando a espécie como um todo. Ok, amigo leitor, vamos agora avaliar essa ideia mais de perto. Parece óbvio, mas não é, que animais silvestres devidamente reabilitados se dispersam no meio ambiente. Aliás, uma das situações menos comuns é a de quando o animal solto permanece próximo do ponto de soltura. Ainda, os ditos animais “residentes” de fato não residem, no sentido de que ficam “fixos” em algum ponto. Eles se deslocam de forma nômade ou migratória. Isso ocorre mesmo quando são ofertados comedores regularmente abastecidos. Nem mesmo a oferta constante de comida faz com que um animal, repito, devidamente reabilitado ou de vida livre, fique somente em um local.
Ponto dois e, finalmente, o que soltamos: um indivíduo, ou a espécie? Ora, recebemos, reabilitamos e soltamos indivíduos! O conceito de espécie é complexo e tem sido objeto de intenso debate científico há mais de um século. Mas um ponto é claro: a palavra espécie não significa nem pode estar associada às ideias de “pureza” e “perfeitas cópias de um tipo” definido por critérios exclusivamente morfológicos. Sobre esse assunto, recomendo o clássico título What Makes Biology Unique?, capítulo 10, escrito por um cara chamado Ernest Mayr… Vale a leitura!
Ponto três: como fazer afirmações sobre populações e sobre o real status de conservação de uma espécie, sem dados? Quantas espécies são, de fato, alvo de pesquisa robusta em nosso país? Serão os dados disponíveis de fato confiáveis para todas as espécies?
Por que somos muito bons para compilar listas, feitas quase sempre usando dados secundários? Já para levantamentos confiáveis e atualizados de populações…
Em nossa experiência, a degradação ambiental (incluindo queimadas, conversão de florestas, desmatamento, poluição e atropelamentos) associada ao tráfico de animais são os principais fatores impactando as populações de animais silvestres e que, em menos de 10 anos, irão resultar, se nada for feito, na extinção da fauna de vida livre em várias áreas do país. Em nossa região, a Serra da Mantiqueira paulista, e de acordo com nossos dados de monitoramento, várias áreas no vale e ao pé da serra já são jardins sem animais, com exceção dos sinantrópicos (animais que se adaptaram a viver perto do homem, em ambientes modificados, mas que não dependem de cuidados como os domésticos).
Animais soltos de forma planejada podem a mudar essa realidade, tanto na produção de dados técnico-científicos como reintroduzindo um equilíbrio a essas áreas e promovendo a regeneração florestal, já que as espécies florestais clímax dependem dos animais para sua dispersão de sementes. Áreas florestais destinadas para esse fim são fundamentais se quisermos reverter esse cenário.
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