Por Raul Rennó Braga
Biólogo, mestre e doutor em Ecologia e Conservação pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Atualmente, é professor da Universidade Estadual de Londrina (UEL) e pesquisador colaborador do Laboratório de Análise e Síntese em Biodiversidade (LASB) da UFPR e do Laboratório de Ecologia e Conservação (LEC) da mesma instituição. Atua principalmente com pesquisas relacionadas a ictiologia e a invasões biológicas.
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Como nenhuma espécie vive completamente isolada na natureza, é fácil imaginar que diversos tipos de interações entre elas ocorram. Naturalmente, interações de disputas e lutas pela sobrevivência trazem a percepção da hostilidade do ambiente natural; a preconcepção de que o mais forte sobreviverá a mais um dia. Em se tratando de peixes, a imagem do peixe maior comendo o menor pode ser a primeira a vir a mente.
No entanto, interações em que uma espécie se beneficia da outra são muito comuns e capazes de revelar uma complexidade imensa a respeito da intricada rede envolvendo diversas espécies que vivem em um determinado ecossistema. Peixes interagem com outras espécies durante sua atividade alimentar, se beneficiando da relação. Em alguns casos, peixes menores seguem outras espécies de maior porte se aproveitando de restos de alimento deixados para trás. Mas até aí, tudo bem, está fácil imaginar duas espécies interagindo no mesmo ambiente, como um lago ou um rio. Mas será que as conexões param por aí? A verdade é que não!
Na região de Bonito (MS), as piraputangas (Brycon hilarii) interagem com macacos-prego nesse sentido. Isso mesmo! Macacos! Vamos explicar melhor essa história.
A piraputanga é uma espécie que se alimenta majoritariamente de itens que caem da vegetação marginal do rio, como frutos, sementes e folhas, assim como de insetos que chegam até a superfície da água. Os macacos-prego também são onívoros e buscam, principalmente, frutos na vegetação marginal dos rios. Nesse processo de forrageamento, eles derrubam alguns frutos e sementes na água. Os peixes são então atraídos e aproveitam a refeição fácil enquanto seguem o bando de macacos ao longo do rio. Durante esse banquete, cardumes de até 30 indivíduos se deslocam acompanhando os primatas.
Além das duas espécies, também fazem parte dessa relação as plantas que são consumidas. Dependendo do tamanho e resistência das frutas e sementes, as piraputangas atuam somente como predadoras, já que seus dentes trituram as sementes. No entanto, quando as sementes são menores, elas acabam passando intactas pelo sistema digestório dos peixes e acabam então dispersadas no ambiente. Esse processo é chamado de ictiocoria e não é um caso isolado. Um estudo avaliou a capacidade do pacu (Piaractus mesopotamicus) em dispersar sementes de tucum (Bactris glaucescens) e revelou que quase 70% das sementes encontradas nos estômagos dos peixes continuavam viáveis. A importância dos peixes na dispersão das sementes também é grande no bioma amazônico, onde 20% das espécies de árvores que dependem de animais para a dispersão das suas sementes o fazem exclusivamente pelos peixes.
O caso da interação entre primatas, plantas e peixes é bastante emblemático para que possamos entender a conexão do ambiente aquático com o terrestre. Percebe-se, por exemplo, que há uma via em que energia e matéria são transferidas entre esses ambientes. Os ambientes não estão isolados. A importância dessas relações é enorme para a preservação das espécies e, consequentemente, para os ecossistemas envolvidos. Devemos olhar atentamente para isso. Nesse sentido, a mata ripária, que ocorre na interface entre ecossistemas terrestres e aquáticos, por um lado pode sofrer modificações com o declínio de populações de peixes afetados pela sobrepesca, poluição, introdução de espécies exóticas e tantas outras alterações antrópicas que as impactam. Do outro lado, podemos nos perguntar como as espécies de peixes serão afetadas caso haja um declínio dos primatas do caso aqui explicado ou mesmo com a sobre-exploração das espécies de plantas ou desmatamento das matas ripárias.
Conhecendo a importância das interações entre espécies terrestres e aquáticas, pode parecer óbvio que devemos levar essa conexão em conta ao planejar unidades de conservação UCs). Mas será que na prática estamos fazendo isso? A verdade é que, na maioria dos casos, muito superficialmente. É bastante comum que em um mapa de uma unidade de conservação encontremos rios que nascem fora da área protegida, passem pela UC e sua porção à jusante (à frente) novamente se encontre fora da área.
Mas será que o que acontece fora dos limites geográficos estabelecidos não influencia a eficiência dessa UC em conservar o ambiente aquático em questão? Obviamente que sim, mas estamos habituados a pensar nesses ecossistemas de forma independente, desconectada, isolada, quando na verdade a rede de interações entre as espécies nos mostra que esses limites são mais frutos da nossa forma de enxergar os ambientes do que, de fato, uma característica ecológica.
Além do planejamento de áreas a serem preservadas, em face da situação de degradação de muitos corpos d’água no Brasil e no mundo, atenção às ligações entre os peixes e os ecossistemas ripários é essencial nos esforços para restaurar lagos, rios e riachos e para prevenir maior deterioração nas populações de peixes de água doce.
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