Por Marcelo Calazans
Técnico em agropecuária, administrador de empresas e fotógrafo. Foi professor da disciplina Fotografia de Natureza pelo Senac (MS)
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Poucos sabem, mas trabalhei com ecoturismo no Pantanal do Mato Grosso do Sul, recebendo visitantes do Brasil e do mundo, em um lugar chamado Fazenda Porto São Pedro. Essa fazenda fica a quase 300 quilômetros subindo o rio Paraguai, partindo de Corumbá (MS) sentido norte. Era originariamente uma propriedade dedicada à pecuária, mas nas cheias do rio Taquari no fim da década de 70, foi alagada e nunca mais secou. Hoje, já faz parte do ecossistema do Pantanal e toda a biodiversidade do bioma é encontrada nesse lugar. De peixes a onças-pintadas, passando por centenas de espécies de aves. Um lugar que foi minha casa por um bom tempo. E lá, coletei imagens e histórias suficientes para um livro, que espero publicar em um futuro próximo.
É uma dessas histórias que quero contar para você.
O ano era 2018, mais precisamente no mês de outubro. Estava sozinho naquele domingo, o caseiro da fazenda e sua família estavam em Corumbá, e era mais ou menos umas seis da manhã. Sentado em uma varanda anexa à casa onde eu morava, comia umas fatias de pão de forma com café. Olhando o tempo passar, que tem uma velocidade diferente quando se mora em um lugar muito parecido com o que idealizamos como paraíso, me distraí com o céu azul com algumas nuvens. De repente, um vulto passa na minha frente e pousa ao meu lado.
Era um anu-branco (Guira guira) a pouco mais de um metro de mim. Ficou me olhando, levantando e abaixando sua cabeça, como que me indagando sobre o que eu fazia. Tirei uma pequena lasca de pão, estendi meu braço e ofereci para o pequeno visitante. Ele olhou o alimento e, sem hesitar, se aproximou para pegá-lo. Minha surpresa foi que, após pegar o pão, o anu não se afastou e começou a “piar”, pedindo mais. Dei o segundo, o terceiro pedaço. E assim foi com quase uma fatia inteira!
Pensei comigo: vai terminar de comer e ir embora. Mas não. Ali ele ficou. Me encarando. Uma conexão de almas se formou.
No Pantanal, essa espécie de ave é muito abundante e conhecida por vários nomes comuns, como rabo-de-palha, anum e outros. Mas o mais utilizado pelos moradores é “piririta”, talvez uma onomatopeia do som que a ave faz quando está socializando ou marcando território. E assim eu a chamava!
Os dias foram passando e a intimidade crescendo. Piririta começou a comer na minha mão, se empoleirava em meus dedos para “caçar” bichinhos nas telas de proteção das janelas da casa e me acompanhava pelo quintal em busca de outras presas. Eu erguia pedras grandes e pedaços de madeira do chão que já estavam podres e ele capturava toda sorte de petiscos nesses lugares, como pequenos sapos, gafanhotos, aranhas e outros seres. Me causou espanto a “intimidade” do anu-branco comigo, como se fôssemos conhecidos de longa data ou até mesmo que ele fosse domesticado desde filhote. Ao fim do dia, depois de se fartar, ele se recolhia comigo para dormir dentro da casa, na cabeceira da minha cama. Várias vezes fui “batizado” pelas necessidades do meu pequeno amigo, mas eu não me importava. Me sentia um privilegiado por desfrutar da sua presença e ser merecedor da sua confiança.
O anu-branco é uma espécie de ave extremamente sociável, tolerando bem a presença humana. Talvez daí a facilidade desse camarada em aceitar a minha presença e se aproximar. Terá sido uma relação apenas de conveniência (pela facilidade em receber alimento) ou algo mais do que isso? Seria uma questão de afinidade entre um ser senciente e um apaixonado pela natureza? Essas perguntas não me importam, já que a resposta vai muito além do que palavras podem expressar e apenas quem já viveu algo parecido vai entender. É esse o único tipo de interação homem e animal que eu aprecio. Nada forçado ou artificial. Um ser vivo em harmonia com outro e só.
Diversos turistas – brasileiros e estrangeiros – testemunharam essa relação, ficando encantados com tanta intimidade e alegria entre nós. Inclusive, fui entrevistado por uma equipe do programa Terra da Gente sobre isso, mas infelizmente a matéria não foi ao ar.
Abaixo, o vídeo que fiz de celular no dia que Piririta apareceu na fazenda:
Essa amizade perdurou por alguns meses, até que a natureza do meu amigo falou mais forte: ele arrumou uma parceira e mesmo assim não se distanciou. Formou sua “casa-ninho” em um pé de bocaiúva ao lado da casa onde eu morava. E todos os dias, descia ao nível do chão para nossa caçada matinal por petiscos. E seguiu sua vida, com sua família. Na foto abaixo, pode-se ver a bocaiúva, no canto esquerdo, em que ele criou sua família.
Por diversas vezes, fotografei e filmei Piririta. Ele não se incomodava com isso. Fazia poses e “conversava” comigo como se entendesse o que eu estava falando. Essas passagens ficarão na minha memória até o fim dos meus dias como exemplo do que eu sempre falo e vivo: a convivência pacífica, a coexistência e o respeito entre espécies diferentes é sim possível e não é difícil. Essa é a lição que eu gostaria de deixar com este texto e espero que alguns a sigam.
E quando a saudade bate, revejo os vídeos e as fotos do “meu” Piririta…
Até a próxima!
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