O percevejo-de-renda da Unirio

Abelha, besouro, borboleta, cupim, esperança, formiga, gafanhoto, grilo, libélula, marimbondo, mariposa, mosca, mosquito, percevejo, piolho, pulga, traça, vespa… Caso se sorteie alguém em meio à população de humanos e peça a ele (ou ela) que enumere os nomes de todos os insetos que conhece, provavelmente a lista não será muito diferente da mencionada acima. Mesmo que existam no planeta cerca de um milhão de espécies descritas de insetos e, certamente, muito mais ainda por descrever.

Esses nomes comuns de insetos partilham uma característica: eles abrigam não uma espécie em si, mas grandes conjuntos de espécies. Assim, abelha é o nome comum de integrantes da família Apidae, dentro da ordem Hymenoptera; besouro é o nome comum dos integrantes da ordem Coleoptera; borboleta é o nome comum dos integrantes do agrupamento Rhopalocera, dentro da ordem Lepidoptera. E por aí vai.

A ordem dos hemípteros (Hemiptera), a dos percevejos, tem mais dois exemplos desses nomes comuns “coletivos”. Um desses casos é o das marias-fedidas, populares – e malcheirosos! – integrantes da família Pentatomidae, que costumam aparecer nas casas humanas, inclusive nas áreas urbanas.

Outro exemplo é o dos percevejos-de-renda, integrantes da família Tingidae. Esses bonitos insetinhos constituem um exemplo interessante de que os chamados nomes comuns nem sempre são populares. Explicando melhor: muita gente conhece o nome maria-fedida e qual grupo de insetos ele define, mas eu, particularmente, não conheço qualquer pessoa não minimamente versada em Entomologia que reconheça um percevejo-de-renda – embora muito provavelmente conviva bem de perto com eles.

Um dos motivos disso deve ser o tamanho diminuto, em média apenas meio centímetro quando adulto. Apresentam asas rendilhadas (daí o nome), são sugadores de seiva, vivendo em colônias nas folhas de suas plantas hospedeiras. Em grandes infestações, esses insetos podem ocasionar perda de área fotossintética da planta, causando definhamento e morte [1]. O registro das plantas hospedeiras é muito importante para o estudo dos percevejos-de-renda, pois a maioria completa o ciclo de vida em um único espécime vegetal, às vezes até mesmo em uma única parte da planta [2].

Ocorrência de espécie no Rio de Janeiro

Tive a felicidade de ser coautor de um artigo [3] que detectou a ocorrência de uma espécie de percevejo-de-renda, Gargaphia lunulata, no meu local de trabalho, a Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio), mais especificamente no campus localizado na avenida Pasteur, 458, no bairro da Urca, zona sul da cidade do Rio de Janeiro. Um ambiente urbano e com considerável fluxo de pessoas.

A espécie foi originalmente descrita a partir de material procedente do Rio de Janeiro, sem menção à planta hospedeira [4]. Suas plantas-hospedeiras conhecidas até então eram Abelmoschus esculens, Gossypium arboreum, Hibiscus esculentus, Urena lobata (Malvales: Malvaceae), Chorisia speciosa (Malvales: Bombacaceae), Canavalia ensiformis, Cassia fistula, C. imperialis, Dolichos lablad, Glycine max, Meibomia adscendens, Phaseolus lunatus, P. vulgaris, Zornia diphylla (Fabales: Fabaceae), Cnidoscolus sp., Euphorbia heterophylla, Manihot utilissima, Ricinus communis, Stigmaphyllon sp. (Malpighiales: Malpighiaceae), Pyrus communis, Rosa sp. (Rosales: Rosaceae), Psidium guajaba (Myrtales: Myrtaceae), Passiflora caerulea, Passiflora violacea, Passiflora alata e Passiflora edulis (Malpighiales: Passifloraceae) [4] [5] [6].

Gargaphia lunulata apresenta registros conhecidos na Argentina, Brasil, Colômbia, Paraguai e Uruguai [5]. No Brasil, ocorre nos estados do Pará, Ceará, Bahia, Minas Gerais e Rio de Janeiro [4] [7] [8], dentre outros. No Rio de Janeiro, suas plantas hospedeiras registradas até então eram Cassia fistula, Urena lobata, Manihot utilissima e Chorisia speciosa [4].

Na Unirio, foi observada a ocorrência dos percevejos-de-renda vivendo em exemplares de Arachis repens (Fabales: Fabaceae), a grama-amendoim ou amendoim-forrageiro, e Passiflora edulis, o maracujá-amarelo, cultivados no Jardim Didático e Evolutivo. Esse jardim foi criado em 2010, sob a coordenação de pesquisadores do Departamento de Botânica. Possui uma estrutura de aproximadamente 22 m², subdividida em seis canteiros e um lago [9] [10].

Embora Gargaphia lunulata não esteja entre as pragas consideradas mais danosas ao maracujazeiro (Passiflora spp.) [11], o prejuízo ao exemplar de Passiflora edulis na Unirio foi considerável. Todas as folhas da planta com alguma parte ainda verde apresentavam pelo menos dois indivíduos adultos.  Boa parte da planta se encontrava com folhas completamente secas e enroladas, muitas em tons esmaecidos de verde, com colônias contando com um maior número de ninfas. As folhas apresentavam marcas de necroses no tecido, salpicadas de pequenas manchas escuras, decorrentes das dejeções endurecidas dos insetos. Em algumas folhas, foi observada a presença apenas de adultos, mas nunca apenas ninfas. A ocorrência simultânea de ninfas e adultos pode ser um indicativo de algum tipo de cuidado maternal [3]. Cópulas foram filmadas [12] e vale à pena ver, eles são muito bonitinhos.

No Jardim Didático e Evolutivo da Unirio, os exemplares de Arachis repens estavam presentes em estreito contato com a folhagem do maracujá. De modo geral, essas forrageiras encontravam-se saudáveis, mas com a presença do percevejo-de-renda em algumas folhas. Foi o primeiro registro de ocorrência de Gargaphia lunulata em Arachis repens. Com média de três adultos e um número próximo de ninfas, as folhas de Arachis repens apresentavam pequenas áreas esbranquiçadas por toda a superfície. Não foram encontradas folhas completamente secas ou enroladas, sugerindo que o maracujá era, naquele momento, o hospedeiro preferencial de Gargaphia lunulata. À época dessas observações, em 2015, outros canteiros com amendoim-forrageiro foram inspecionados, tanto no campus quanto fora dele. E neles não foi detectado qualquer sinal de incidência do percevejo-de-renda [3].

O tempo passou e o quadro mudou bastante de figura. A partir de agora, as informações constantes nesta nossa conversa são inéditas, no sentido de ainda não terem sido publicadas em revistas científicas. Fica como uma espécie de spoiler.

Adaptações da espécie

Alguns meses após nossas observações no Jardim Didático e Evolutivo, os danos causados pelo percevejo-de-renda prejudicaram bastante o maracujazeiro. Possivelmente isso levou à morte da planta ou à sua remoção por parte dos mantenedores do espaço. Sem seu hospedeiro principal, os percevejos-de-renda se espalharam mais pela grama-amendoim e, aparentemente, se deram bem com isso. Mais tempos depois, a grama-amendoim também foi retirada do espaço. O que não constituiu problema para os percevejos-de-renda, que se estabeleceram em um canteiro ao lado do Restaurante-Escola (“Bandejão”), apinhado de grama-amendoim e situado a poucos metros da localidade original.

Até hoje tal população aparenta estar bem estabilizada e, mais que isso, qualquer canteiro de grama-amendoim nos arredores revela a efetiva presença dos pequenos insetos. Arrisco-me a dizer que tal fato ocorre em muitos canteiros de grama-amendoim por toda a cidade do Rio de Janeiro. E minhas observações têm referendado isso.

A partir de 2017, tenho feito inspeções semestrais no canteiro ao lado do Bandejão, mostrando a ocorrência do percevejo-de-renda aos alunos das minhas disciplinas. Desde então, não houve sequer uma vez em que não tivéssemos encontrado os insetinhos. O procedimento da aula é sempre o mesmo: usando apetrechos diversos, dos mais simples, como coadores de pano para café, às redes entomológicas mais elaboradas, varremos o canteiro e despejamos o conteúdo em uma bandeja branca. Assim, podemos ver os percevejos-de-renda capturados e até contá-los, pois eles não são muito afeitos à fuga. Depois da aula, os exemplares são liberados de volta ao canteiro.

Vale à pena ter em mente que os processos e eventos biológicos não são exclusividade das áreas naturais. Muito pelo contrário, ocorrem também nos ambientes urbanos, quase sempre sem que percebamos. Eventualmente bem pertinho de nós, junto às nossas casas ou até no lugar do trabalho. E, no que se refere aos insetos, isso é sempre uma oportunidade para se investigar, aprender e ensinar.

Até mês que vem.

Referências:

• [1] http://www.diadecampo.com.br/zpublisher/materias/Materia.asp?id=30772&secao=Agrotemas
• [2] Guidoti, M. et al., 2014. Baeotingis Drake & Poor, 1939 and Coleopterodes Philippi, 1864 (Hemiptera: Heteroptera: Tingidae): first genera records for Brazil from pampa. Zootaxa 3760(3): 497–500.
• [3] Coelho, L.B.N. & Da-Silva, E.R. 2015. Registro de dano de Gargaphia lunulata (Insecta: Hemiptera: Tingidae) em Passiflora edulis (Malpighiales: Passifloraceae) e Arachis repens (Fabales: Fabaceae) em uma área urbana do Rio de Janeiro. Agrarian Academy 2(3): 90-100.
• [4] Ajmat, M. V. et al. 2003. Aspectos morfológicos, biológicos y daño de Gargaphia lunulata (Mayr) 1865 (Heteroptera: Tingidae) sobre Passiflora caerulea L. (Passifloraceae). Boletin de Sanidad Vegetal – Plagas 29: 339-346.
• [5] Montemayor, S. &; Coscarón, M.C. 2005. List of Argentinian Tingidae Laporte (Heteroptera) with their host plants. Zootaxa 1065: 29–50.
• [6] Leonel, S. & Sampaio, A.C. 2007. Maracujá-doce: aspectos técnicos e econômicos. Editora da Unesp.
• [7] Drake, C.J. 1935. American Tingitoidea (Hemiptera) in the Natural History Museum of Vienna. Sondar-Abdruckaus Konowia 14: 9-20.
• [8] Gallo, D. et al. 2002. Entomologia agrícola. FEALQ.
• [9] http://www.botanica.org.br/trabalhos-cientificos/64CNBot/resumo-ins20224-id6576.pdf
• [10] http://www.aprenda.bio.br/portal/?p=7647
• [11] Caetano, A.C. et al. 2000. Avaliação da ocorrência sazonal de percevejos em cinco espécies de maracujazeiro, utilizando dois métodos de amostragem. Bragantia 59(1): 45-51.
• [12] https://www.youtube.com/watch?v=Ky4iXScX5ts&feature=em-share_video_user

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