Por Vera Maria Ferreira da Silva
Bióloga, mestre em Biologia de Água Doce e Pesca Interior e doutora em Mammalian Ecology and Reproduction pela Universidade de Cambridge (Inglaterra). É pesquisadora do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa) e coordena o Projeto Boto na Reserva de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá e o Projeto Mamíferos Aquáticos da Amazônia, da Associação dos Amigos do Peixe-boi (Ampa)
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Entre os mamíferos aquáticos da Amazônia, certamente o peixe-boi foi o mais explorado. Inicialmente eram utilizados pelas populações tradicionais, bem antes da chegada dos europeus à região, como pode ser constatado nos relatos de frei Gaspar de Carvajal que, em 1542, acompanhou a expedição de Francisco de Orellana desde o rio Napo, no Equador, até o estuário do Amazonas.
Carvajal relata que, além de utilizados na alimentação, o couro do peixe-boi era usado pelos indígenas como escudos para defesa. “…. os índios eram numerosos e muito bem armados, com armas muito estranhas e nunca vista antes por algum cristão, eram cobertos da cabeça aos pés com pequenos escudos feitos de couro de peixes-bois, e estes eram de tal forma que uma flecha não poderia perfurá-los…”.
Fato esse também confirmado por Cristóbal de Acuña que, cem anos depois, em 1641, descreveu o uso da queixada e do couro do peixe-boi para a fabricação de ferramentas e para a defesa respectivamente: “… do couro, que é muito grosso, fazem adargas¹ os guerreiros, e tão fortes, que bem curtido, não o atravessa uma bala de arcabuz²…”
De acordo com os relatos desse missionário espanhol, entre todos os pescados “… que como rei aí domina, e do qual está povoado todo o rio, desde as suas nascentes até que deságua nos mares, é o peixe-boi, peixe que de tal só tem nome, pois não há pessoa que, quando o come, não o tenha por carne temperada…”.
Posteriormente, no entanto, a espécie foi intensamente explorada pela sua carne, gordura e couro, pelos colonizadores e residentes na região.
Registros do século 18 mostraram que, em um período de dois anos, na década de 1780, somente o Pesqueiro Real de Villa Franca (próximo a Santarém, no Pará), produziu mais de 58 mil quilos de carne salgada e seca de peixe-boi e cerca de 48 mil quilos de banha, com registros estimados de mais de 1.500 peixes-bois mortos para esse fim.
Outro naturalista, Alexandre Rodriguez Ferreira, que iniciou suas expedições no Brasil em 1783 e durante nove anos viajou pelo Estado do Grão Pará e Rio Negro, na Amazônia, relatou que mais de 3.873 arrobas (arroba = 15 quilos) de carne seca e salgada e 1.613 potes (pote = 20-30 quilos) de gordura e mixira – que é a carne cozida ou moqueada e conservada na própria gordura do animal – eram exportadas anualmente para Europa e abasteciam diversos povoamentos existentes no Brasil.
O principal uso do peixe-boi foi primeiramente pela sua carne e gordura e, mais tarde, pelo couro. A carne do peixe-boi é bastante apreciada pelos ribeirinhos amazônicos e por isso, mesmo estando protegido por lei, o animal ainda é caçado não só para subsistência, mas também para abastecer o mercado ilegal da sua carne in natura e de mixira. Ainda hoje é possível encontrar em algumas feiras e mercados populares de diversas cidades ao longo da calha do rio Amazonas a carne de peixe-boi entre outras caças.
E foi devido a essa exploração indiscriminada ao longo de séculos, levando a uma redução drástica das populações naturais, que o peixe-boi da Amazônia está classificado como espécie vulnerável a extinção.
Existem muitas histórias e relatos sobre a carne desse magnífico animal. A carne do peixe-boi é clara e rosada devido à grande quantidade de gordura entre as camadas musculares e à baixa concentração da proteína mioglobina nos músculos. A coloração dos músculos varia dependendo das partes do corpo, gerando a crença de que existem três tipos de carne: uma vermelha, como a do boi; outra rosada, como a do porco; e a última branca, como a de peixe. Algumas populações nativas chegam até mesmo a distinguir sete diferentes tipos de sabores nas carnes dos peixes-bois.
O naturalista inglês Henry Bates, em 1859, ao consumir a carne desse mamífero, escreveu: “A carne tem, algum tanto, o sabor de porco meio rústico; mas a gordura que fica em espessas camadas entre as partes magras é de cor esverdeada e de desagradável cheiro de peixe “.
Outro famoso naturalista inglês, A.R. Wallace (1889), por sua vez, relata o preparo das carnes desse animal ressaltando a sua importância na dieta dos nativos da região e descreve como os dois exemplares que levou a bordo para o seu sustento e da tripulação foram cozidos, ressaltando que “…a carne é muito gostosa, seu sabor é um meio termo entre a carne de boi e a de porco…”.
O padre Fernão Cardim, na década de 1850, menciona que os fiéis, devido ao excessivo rigor nas práticas religiosas e a severa obediência aos ditames da Igreja Católica com relação aos dias de jejum e abstinência de carne, tinham problemas de consciência e faziam confusão quanto a comer, nos dias de preceito, a carne desse animal, que ele mesmo afirmava tratar-se de um peixe, dizendo que “…já houve alguns escrúpulos por se comer em dias de peixe”.
Da mesma forma, o padre jesuíta José de Anchieta (1560) também mencionou o peixe-boi dizendo: ” É muito bom para comer e mal se pode distinguir se é carne ou se antes se deve considerar peixe”, o que ajudou ao longo dos séculos, na perpetuação dessa crença.
Dados históricos sobre a venda do couro do peixe-boi a partir do final do século 18 mostraram que esse animal foi mais intensamente caçado entre 1934 e 1954, quando o resistente couro passou a ser usado na fabricação de correias para diversos maquinários, teares e implementos industriais. Estima-se que cerca de 19 mil peixes-bois foram mortos por seu couro entre 1938 e 1942, o auge da caça. Esse aumento na caça do peixe-boi coincide com a Segunda Guerra Mundial, quando com a invasão pelos japoneses das regiões de produção da borracha natural cultivada na Malásia, impediram o acesso desse produto às indústrias da Europa e dos Estados Unidos.
Na década de 1950, houve drástica redução do número de couros dessa espécie comercializados, período que corresponde à introdução da borracha sintética para a fabricação das correias e de outros produtos vulcanizados que substituíram assim o couro desse animal. A queda do preço do couro do peixe-boi, a ampla difusão do produto sintético e a redução populacional da espécie, dificultando sua captura, cessou a caça comercial para atender a essa finalidade.
Desde a promulgação da Lei de Proteção a Fauna em 1967 que, no Brasil, a caça do peixe-boi é ilegal. Com a redução da caça e mais de cinco décadas de proteção, espera-se que a população de peixes-bois ao longo da sua distribuição mostre alguma recuperação. Apesar disso, a espécie ainda indica alta vulnerabilidade e tendência geral de declínio, exigindo bastante atenção e monitoramento permanente.
¹Adarga é um escudo de couro dobrado, de forma oval, com uma braçadeira estreita para a mão e outra, larga, para o braço, originalmente usada pelos mouros; darga.
²Antiga arma de fogo, portátil, de cano curto e largo, que em sua origem era disparada quando apoiada numa forquilha; espingardão (criada no século 15 e que, mais tarde, foi suplantada pelo mosquete).
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