
Por Suzana Padua
Mestra em educação ambiental e doutora em desenvolvimento sustentável. Co-fundadora e presidente do IPÊ – Instituto de Pesquisas Ecológicas e da Escola Superior de Conservação Ambiental e Sustentabilidade (Escas)
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O mico-leão-preto mudou minha vida – literalmente! Posta em sossego no Rio de Janeiro, minha terra natal, eu era designer e meu marido, Claudio Padua, empresário. Depois de alguns anos de angústia e insatisfação com a vida que estava levando, Claudio resolveu mudar radicalmente sua trajetória profissional para enveredar pelos caminhos da conservação de natureza. Após muitos episódios dignos de novelas de televisão, acabou conseguindo ingressar no Centro de Primatologia do Rio de Janeiro como assistente do famoso primatólogo Adelmar Coimbra Filho e de seu braço direito Alcides Pissinatti, sonho além do esperado na época. Foi aí, no início da década de 1980, que o mico entra em cena para nunca mais sair.
Com o mico sendo tema de mestrado e doutorado do Claudio, fomos muitas vezes à Estação Ecológica Olavo Ferraz (também conhecida como Estação Ecológica dos Caetetus), proprietário que deixou essa área como legado à humanidade, em Galia (SP), ou onde acabamos morando por três anos e meio, ao Parque Estadual do Morro do Diabo na região do Pontal do Paranapanema, extremo oeste do estado de São Paulo. Eram esses os endereços conhecidos dos micos, ou do que restava de seu habitat original, que um dia fora bem mais vasto do que essas áreas.
O choque de ir morar no Pontal foi igualmente comparável a capítulos novelescos, pois os percalços eram imprevisíveis e surpreendentes. Com três filhos pequenos, os desafios pareciam insuperáveis. Mas, não só sobrevivemos como família, como crescemos e descobrimos muitos talentos individualmente e também no público mais amplo com o qual acabamos travando contatos múltiplos.
O mico-leão-preto nos levou ao Pontal para sempre. Foi ele que nos fez criar um projeto exclusivo de proteção ambiental e envolvimento comunitário. O fato é que, enquanto o Claudio o estudava nas matas do Morro do Diabo, eu percebi que a população local não o conhecia e consequentemente não valorizava o Parque e nem o mico. Como imaginar que algo seria protegido sem o apoio das comunidades vizinhas? As perdas eram imensas e incessantes. Foi assim que comecei timidamente, porque nunca havia trabalhado nessa área, a desenvolver um programa de educação ambiental para o mico e para o Parque. Meu intuito no início era preencher meu tempo com algo útil para que pudesse sobreviver de forma sadia. Mas mal sabia eu que me apaixonaria por esse campo do conhecimento e me enveredaria nas suas profundezas.
O programa de educação ambiental, que começou de forma ingênua com a visitação de estudantes ao Parque, foi se aprofundando na medida em que eu compreendia a seriedade do que se tratava. Parecia com o próprio campo da educação ambiental, que foi formulado a partir de questionamentos do que faltava nos conteúdos educacionais que estavam levando a humanidade a não se importar com o que acontecia na natureza. Grandes desastres começavam a acontecer nas décadas de 1960 e 1970 e a conclusão foi que algo precisava mudar no campo educacional.
No Pontal não foi diferente. Uma vez coberto por mata atlântica de interior, a ocupação desordenada e desmedida fez com que menos de 16% restasse, mas, nesse pouco, muita biodiversidade sobrevive, com espécies endêmicas, ou seja, que só existem ali, como é o caso do próprio mico-leão-preto. Essa riqueza precisava ser protegida, uma vez que as perdas de um passado recente, principalmente das últimas décadas, persistiam.
Por exemplo, um intenso processo de ocupação de terras aconteceu, com grileiros se apropriando de terras públicas em propriedades de proporções latifundiárias nas décadas de 1950-1960. Depois, uma ferrovia e uma rodovia que cruzam o Parque Estadual do Morro do Diabo ou um aeroporto em terras dessa unidade de conservação são exemplos do que poderia ter sido evitado. Assim como barragens para hidroelétricas construídas. Mais recentemente, na década de 1990, milhares de famílias do MST migraram para o Pontal em busca de terras e nada melhor do que as dos fazendeiros que não tinham titularidade de suas propriedades, por serem ainda oficialmente do Estado. Mas, um levantamento que fiz quando comecei nesse caminho com a comunidade de Teodoro Sampaio, cidade mais próxima, me convenceu da necessidade de mergulhar fundo por esta empreitada. Muitos achavam que o parque de nada valia e que seria melhor cortar as árvores para ter vacas, que ao menos dariam leite. O parque parecia não ter valor algum.
Foi aí que atraí um pequeno grupo de jovens como estagiários e, juntos, nos tornamos guias em trilhas interpretativas que abrimos para trazer estudantes e incentivar que seus familiares também visitassem o parque. Como esse era um programa estruturado, de terça a domingo, guardávamos as segundas-feiras para troca de ideias e avaliação da semana. Aliás, avaliávamos tudo, até por ser um campo novo de conhecimento para todos nós. Qualquer atividade que ganhasse nota baixa era melhorada, reciclada ou abolida.
Mas, e a comunidade? Foi então que pensamos em meios de envolver, de preferência de maneira divertida, um público amplo. Por exemplo, a música popular da época era a lambada. Conseguimos com o prefeito fechar a avenida principal para a “Noite da Lambada Ecológica”, utilizando a paródia de uma música amplamente conhecida de Luiz Caldas, que entoava: “Desmatar florestas, fazer queimadas, é burrice, não está com nada”.
Promovemos um concurso de quem levaria o maior número de adultos para assistir uma palestra nas escolas e a turma que ganhasse iria a um passeio especial ao parque. Custo zero, já que eu daria a palestra e já tínhamos o ônibus para o passeio, que havíamos ganhado da embaixada do Canadá. Com essa iniciativa, falamos para a maioria dos adultos da região sobre o parque, o mico e as maravilhas que existem ali.
Outro evento, nesse caso com maior envergadura, foi uma Gincana Ecológica, que teve participação de sete municípios do Pontal. Os prêmios eram pequenos brindes doados pelo comércio local após um contato pessoal e, às vezes, por repetidas vezes. Quais as provas? Por exemplo, trazer ao palco pessoas mais velhas para contarem como havia sido o desmatamento que eles testemunharam e como era a região antes da derrubada das matas. Outra prova foi apontar donos de pássaros engaiolados que podiam ser convencidos a descontinuarem essa prática (com os devidos cuidados com as aves, claro). Ainda outra, era trazer um cantor ou compositor regional para interpretar uma música ecológica.
Teve até um festival de músicas ecológicas propriamente dito, onde os cantores se apresentavam e incentivavam todos a cantarem com eles, mobilizando a plateia. Brasileiro é musical por natureza e esse evento ficou gravado na memória de muitos por bastante tempo.
Mais um “happening” que aconteceu diversas vezes, sempre que conseguíamos patrocínio, foi a confecção de um calendário ilustrado com desenhos dos estudantes. Apesar de ser um concurso, o que pode gerar competições acirradas, alguns cuidados eram tomados. Por exemplo, cada escola ganhava um mês preestabelecido e a capa seria do grande vencedor, não importando a origem. Assim, todos estariam representados de forma justa e equilibrada. O júri era composto por pessoas importantes que raramente participavam, como o diretor de um banco, o advogado, o juiz, o comerciante de uma grande loja, entre outros. A forma de os atrair era chamar a mídia para cobrir o evento. Os desenhos eram mostrados anonimamente (com os nomes escondidos), para que não houvesse favorecimento e, assim, realmente os melhores serem os escolhidos.
Finalmente, a Gracinha (Maria das Graças de Souza), nossa estagiária na época e hoje coordenadora de educação ambiental do IPÊ – Instituto de Pesquisas Ecológicas (ONG que fundamos em 1992) no Pontal, promoveu por anos a fio um trabalho com envolvimento de diretores e coordenadores pedagógicos das escolas regionais, que escolhiam temas a serem trabalhados o ano todo e ao final expunham os trabalhos dos alunos numa grande Feira Ecológica com palestras e atrações.

Essas iniciativas acabaram levando a Secretaria de Educação da região a adotar educação ambiental como tema permanente nas escolas. Esse foi um resultado inesperado e que perdura até hoje.
Outro veículo importante que sempre utilizamos é a rádio local. As pessoas no interior ouvem rádio enquanto cozinham, arrumam ferramentas de trabalho ou descansam. Ora, que bela oportunidade de contar sobre pequenas descobertas que despertam curiosidades ou informações científicas que podem ser disseminadas de maneira palatável e instigante.
O que tinham todos esses programas e eventos em comum? Primeiro, a informação científica repassada de forma divertida, pois as pessoas, principalmente aquelas que vivem em ambientes não privilegiados, precisam de lazer de qualidade. Segundo, o apoio das comunidades é fundamental em qualquer programa conservacionista ou nada, ou quase nada, tende a vingar. Além disso, esses eventos popularizam e valorizam a natureza, aumentando a autoestima e o orgulho por aspectos regionais, únicos e dignos de cuidados, como é o mico-leão-preto e as matas das quais depende. Terceiro, todos esses eventos são oportunidades de passar a mão num microfone e transmitir a raridade da natureza nos tempos atuais, o papel de cada um como protetor do patrimônio natural e que sem o envolvimento individual e da coletividade correm o risco de nada restar em longo prazo.
Sempre reforcei a ideia de que, no Pontal do Paranapanema, eu era de fora e talvez por isso percebesse com maior facilidade as maravilhas que ali ainda existiam, o que para os nativos poderia parecer comum. Mas eram as pessoas locais que mereciam se orgulhar de toda essa riqueza natural, cada vez mais rara, e que o mundo só os admiraria e agradeceria por estarem contribuindo para sua proteção.
Em todas as ocasiões, os micos sempre foram o foco principal e são até hoje para a equipe do IPÊ. Esse programa integrado de conservação, de alguns anos para cá, vem sendo coordenado por Gabriela Rezende, que acaba de receber o Whitley Award por seu trabalho inovador, sendo a segunda vez que os micos são tema desse prêmio, com a primeira em 2002 para Claudio Padua. Por terem sido considerados extintos por 65 anos e serem ainda raros na natureza, chamam atenção. Além disso, a forma como vivem em família, como uns ajudam os outros, como as mães são poupadas e os filhos mais novos cuidados pelos pais e irmãos mais velhos para que elas estejam descansadas quando amamentam, ou como os filhos mais velhos aprendem a cuidar dos menores para estarem aptos a formarem novas famílias são aspectos repassados nos programas de educação ambiental, porque se assemelham à vida humana. Os micos ensinam lições de cooperação e generosidade, com práticas que para eles são naturais, o que nem sempre acontece na humanidade.

Finalmente, gostaria de mencionar que a educação ambiental também tem empoderado a sociedade por meio de planejamento regional, processoo que chamamos de “Eco-Negociação: um Pontal bom para todos”. Nesses encontros participativos, informações importantes são compartilhadas e todos são estimulados a se engajarem individualmente ou em grupos na resolução de problemas locais. Em uma região tão conflituosa, como acabou se tornando o Pontal, reuniões como essas levam a muitos resultados positivos. Inclusive influenciou a criação da Estação Ecológica Mico-Leão-Preto, em 2002, por ter apoio unânime de todos os segmentos sociais presentes, que endossaram sua criação.
A ideia em tudo que fazemos é encantar, despertar o belo na natureza e trazer orgulho e interesse pelo ambiente natural regional. E o mico-leão-preto no Pontal sempre foi a espécie bandeira, por ser belo e raro. Essa abordagem serve como impulsionadora, já que ao conservar o mico outras espécies não tão carismáticas também são protegidas, por se encontrarem no mesmo habitat. Ao admirar o mico-leão-preto e querer protegê-lo, as pessoas passam a ter, esperamos, o mesmo respeito por outras espécies e outras formas de vida.
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