O lobo-guará Canelinha completa um ano livre

Talvez pareça um pouco antiquado, mas ainda penso que há lembranças que devem ser guardadas na memória e no coração. Há momentos em que temos a felicidade de estar presentes e eles merecem ser vividos intensamente ao invés de atrás de uma câmera ou um celular. Começo introduzindo esse sentimento na busca de palavras para transcrever a linda história que guardo. A história da segunda chance de um lobo-guará que merece ser comemorada neste mês de abril, em que, exatamente no dia 27, completou um ano de sucesso.

Que seja uma inspiração para quem trabalha, ou não, com a conservação da biodiversidade; uma esperança para permanecer acreditando em segundas chances e na proteção dos ambientes naturais para garantir as primeiras chances.

Soltura de lobo-guará

Tive o privilégio de estar presente em uma soltura de um lobo-guará chamado Canelinha.

Engraçado que, conforme escrevo essa história e revivo essa lembrança, percebo quantas imagens guardo em minha memória. Confesso que não tenho registros fotográficos e filmagens. Optei por estar 100% presente e vivenciar aquele momento. Não tive a oportunidade de ver o Canelinha no recinto de reabilitação do mantenedor de fauna silvestre do Instituto Libio, onde esteve por um ano. Por ser tímido ou arisco, talvez os dois, o fato é que ele não me permitiu vê-lo lá. Eu o vi, ao vivo, pela primeira vez em um dos dias mais felizes e emocionantes que vivenciei.

Ele estava entre as grades do recinto de ambientação montado no local da soltura, em que ficou poucos dias antes de ganhar a liberdade. Um jovem de pouco mais de dois anos, sem dúvidas muito elegante e, especificamente naquele momento, um pouco furioso. Provavelmente não imaginava que seria o dia de voltar para a casa, pois, se soubesse, com certeza estaria se sentindo mais alegre e ansioso do que com raiva dos humanos que o colocaram ali.

Depois de ouvir a inspiradora história do projeto que ele foi incluído, ver todos os profissionais que participaram direta ou indiretamente, ver os olhos e o sentimento de felicidade que pairava em todos que estavam ali, quase parecia já ser suficiente. Mas não: o melhor estava por vir.

Posicionamo-nos no local a uma distância que garantisse a segurança do Canelinha e o sucesso da sua liberação, mas que também permitisse visualizar  todo o espetáculo que ali ocorreria.

A porta do recinto foi aberta. Com Canelinha ainda dentro do recinto, nossos corações batiam em compasso acelerado, quase sincronizados (talvez já sincronizado também com o seu, caro leitor). Aqueles poucos minutos pareciam uma eternidade. Até que, finalmente, de forma rápida, ele saiu galopando pelo campo verde. Aquele tom alaranjado com detalhes em preto foi desaparecendo entre o pasto e as árvores… As as lágrimas escorrem no rosto de muitos, do mesmo modo que escorrem no meu.

Uma felicidade inexplicável; um desejo de que ele sobreviva a tudo que o aguarda. Que essa segunda chance não lhe seja tirada!

Um ano se passou e temos muito que comemorar. Um ano de esperança, um ano de sucesso da liberdade do Canelinha. Um profundo desejo de muitos outros anos de liberdade!

Características do lobo-guará

Chrysocyon brachyurus, popularmente conhecido como lobo-guará, lobo-de-juba, lobo-vermelho, lobão, guará ou simplesmente lobo, é o maior canídeo da América do Sul e, na minha opinião, o mais elegante, usando lindas meias pretas em suas esguias pernas. Um animal solitário, que se une nas épocas reprodutivas.

Territorialista, utiliza de sua vocalização para o estabelecimento de sua área de vida – o som do aulido, como é chamado o latido do lobo. Ele usa essa vocalização também para a comunicação entre casais e na interação com os filhotes. Seu território varia de acordo com a qualidade ambiental, podendo chegar até aproximadamente 310 km², mas a média, segundo alguns estudos, gira em torno de 70 km².

É uma espécie onívora, generalista e oportunista, consumindo uma grande diversidade de alimentos, tais como roedores, marsupiais, tatus, aves, répteis e artrópodes.

Em um cenário de tantas ameaças à fauna, como o crescimento desordenado de centros urbanos, alterações do hábitat, grandes empreendimentos, agricultura, caça, retaliação, atropelamento, doenças de cães domésticos, não se limitam a essa lista os desafios para a sua sobrevivência. Em consequência a tantas ameaças, as populações sofrem uma drástica redução. De acordo com o compilado de dados para o processo de avaliação do risco de extinção da fauna brasileira, coordenado pelo Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), considerando a densidade populacional conhecida no Brasil, os remanescentes dos biomas ocupados pela espécie nas áreas apontadas como adequadas em um modelo de nicho e a proporção de indivíduos que se reproduzem anualmente, estimou-se que em 2012 a população de lobos-guará no país era de 6.085 indivíduos.

Em 2020, a população foi reduzida para 5.642, uma perda de 5% no número de indivíduos maduros ao longo dos últimos oito anos, indicando também uma estimativa de perda linear de 12% até 2030 (o equivalente a três vezes o tempo geracional). O lobo-guará está classificado como vulnerável (VU) na Lista oficial de espécies da fauna brasileira ameaçadas de extinção. Ações para a sua conservação foram definidas e executadas por meio do Plano de Ação Nacional para a Conservação do Lobo-guará, que teve como objetivo reverter o declínio populacional em sua área de distribuição e vigência de 2012 a 2017. Também pelo Plano de Ação Nacional para a Conservação dos Canídeos, que contempla quatro espécies ameaçadas, entre elas o lobo-guará, e teve como objetivo reduzir os impactos provocados nas populações de canídeos silvestres. O primeiro ciclo desse pano teve vigência de 2018 a 2023 e o segundo está sendo elaborado com a coordenação do Centro Nacional de Pesquisa e Conservação de Mamíferos Carnívoros (Cenap), do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio).

A história de Canelinha

Canelinha foi resgatado em agosto de 2021, tinha aproximadamente três meses de vida. Morador da zona rural de Mococa, interior de São Paulo, Paulo Henrique Ferreira estava pescando com seu primo às margens do rio Pardo, quando avistaram um incêndio alastrando-se em um canavial. Eles haviam deixado o carro distante e apressaram-se para sair do local o quanto antes e em segurança. Neste momento, Paulo viu dois filhotes de lobo-guará seguindo em direção ao fogo. Sem avaliar os riscos envolvidos, impulsionado a salvá-los, correu e se lançou para pegar um dos filhotes.

Infelizmente, não houve tempo para resgatar o outro, que possivelmente tenha tido um triste destino. A mistura de felicidade por ter salvado ao menos um dos filhotes começou a se misturar com um certo desespero de “e agora?”. Começou a tentar entrar em contato com os órgãos responsáveis para saber o que fazer com o lobo. Por não encontrar solução e um destino, o lobo ficou na casa dele. Juntamente com sua mãe, pesquisaram na internet como alimentar e cuidar do animal. Um mês depois, finalmente o contato por meio do Cenap/ICMBio foi um alívio e um novo desfecho para essa história.

Uma equipe do projeto Lobos do Pardos, desenvolvido na região pelo Instituto Pró-Carnívoros em parceria com Cenap/ICMBio, foi informado do ocorrido e se deslocou até a residência em que o lobo se encontrava para avaliar a situação. Foi constatado que estava sendo mantido em condições sanitárias inadequadas, por desconhecimento técnico de Paulo, apesar dele e sua família fazerem o máximo que estava ao seu alcance até aquele momento. Após diversos exames clínicos realizados, o lobo foi levado para uma fazenda, onde recebeu os primeiros cuidados e foi batizado como Canelinha.

O significado do nome é desconhecido, talvez devido à cor da canela, termo que também se refere à cor acastanhada da especiaria após ser moída. Ou pela popular canela, que seria a parte da perna entre o joelho e o pé, talvez uma alusão à sua velocidade de correr.

A partir desse momento, teve início o processo de recuperação e preparação para a soltura.

Reabilitação, soltura e monitoramento

Em novembro de 2021, o Instituto Libio foi contatado pelo Cenap/ICMBio para participar dessa história e desse grande desafio, na etapa de reabilitação. Para receber o Canelinha e realizar o trabalho, foi necessária uma força conjunta com a equipe de especialistas. O instituto abraçou a causa com muito entusiasmo: promover a segunda chance do Canelinha. Para esse trabalho, foi construído um recinto específico, medindo cerca de 3 mil metros quadrados em uma área restaurada de Mata Atlântica ao lado do rio Tietê.

Antes de sua chegada ao instituto, Canelinha passou alguns meses sob os cuidados da equipe do Centro de Manejo e Conservação de Animais Silvestres (Cemacas) da prefeitura de São Paulo e, em 18 de maio de 2022, chegou ao novo lar. O projeto de reabilitação foi uma execução conjunta do Instituto Pró-Carnívoros e supervisão técnica do ICMBio/Cenap. Durante todo período que o Canelinha esteve sob nossos cuidados, a equipe de tratadores foi instruída para proporcionar uma dieta que o levasse a aprender a caçar e buscar os alimentos que estariam disponíveis em cada estação do ano quando estivesse em vida livre.

Dentro do recinto, foram distribuídas armadilhas fotográficas que registravam todos os momentos e comportamentos do Canelinha. Essas imagens eram analisadas pela equipe do Instituto Pró-Carnívoros. Aos poucos, conforme crescia, os instintos de caça afloraram e logo foi possível perceber a predação de outros animais que entraram por engano no recinto e viraram refeição do Canelinha.

Canelinha cresceu, se desenvolveu e ficou pronto para o retorno à natureza. Com a soltura próxima, ele foi marcado com brinco, recebeu uma coleira com GPS e transmissor de satélite para que sua reintrodução pudesse ser acompanhada diariamente. Além disso, os pesquisadores implantaram um dispositivo subcutâneo de monitoramento de frequência cardíaca, com o objetivo de mapear os níveis de estresse causados por uma paisagem dominada pela ocupação humana. Essa foi a primeira vez que o dispositivo foi instalado em lobos – atualmente  outros animais da espécie estão com o monitor cardíaco.

Este estudo, desenvolvido em colaboração com o Instituto de Biologia da Conservação Smithsonian (SCBI), pretende utilizar a tecnologia de monitoramento para investigar a relação entre a frequência cardíaca e outros aspectos fisiológicos ligados à saúde cardíaca dos lobos-guará. Espera-se que os resultados revelem um maior nível de estresse entre os lobos que habitam áreas agrícolas em comparação com aqueles que residem em unidades de conservação. Esse estresse não só impacta a reprodução e, por consequência, a viabilidade da espécie, mas também soma-se à ameaça da sarna canina, possivelmente transmitida por cães domésticos, representando um desafio significativo para sua conservação.

Canelinha finalmente ficou apto para soltura depois de passar pelos cuidados, treinamentos e estar equipado para o seu monitoramento.  Foi em Mococa (SP), em 27 de abril de 2023, em uma fazenda de 750 hectares que possui áreas conservadas e compartilha outros usos de produção, o local escolhido para o seu retorno. O céu azul esteve presente para festejar o momento. Uma linda apresentação detalhando toda a trajetória do projeto e do Canelinha foi realizada. Todos os presentes já estavam contagiados pela euforia do que estava por vir.

Em silêncio e calmamente, buscando causar o menor estresse ao Canelinha, todos se posicionaram para a tão aguardada soltura. O portão do recinto foi aberto pelo Chico, tratador do Instituto Libio que se dedicou aos cuidados nesses 11 meses que esteve no mantenedor de fauna silvestre e do Paulo, nosso corajoso e admirável personagem que enfrentou o fogo para resgatá-lo. Daí pra frente, é felicidade que não cabe no peito: ver o Canelinha finalmente retornando para a liberdade, mesmo com toda apreensão pelos grandes desafios que ele terá em vida livre. Mas essa segunda parte eu conto na próxima vez.

Sentimentos

Além de compartilhar essa comemoração, neste texto também apresento os depoimentos de alguns dos envolvidos que dividiram suas memórias desse dia épico e expressaram seus sentimentos ao celebrar este primeiro ano.

Paulo Henrique Ferreira, professor, responsável pelo resgate do Canelinha

“Um ano, já? Passa rápido hein… Quero dizer que estou muito feliz. Feliz pelo Canelinha, por este um ano de vida livre; feliz por ele estar bem e por ter feito parte de tudo isso. Foi muito importante pra mim ter sido um dos responsáveis pela soltura do Canelinha. Poder cuidar dele, mesmo que por um curto tempo, foi uma experiência maravilhosa. Quero agradecer a todo pessoal que me ajudou, que abraçou a causa e que foi responsável por este um ano de vida livre do Canelinha. É um sentimento de muita felicidade e gratidão. Estou com saudades do Canelinha… E que venham muitos e muitos anos assim”.

Remilson Xavier (Chico), tratador do mantenedor de fauna do Instituto Libio, cuidou da alimentação e cuidados do recinto do Canelinha

“Eu sou suspeito para falar do Canelinha. É muito bom, muito mesmo. Eu participei de uma história e de um trabalho muito maravilhoso. Eu me surpreendi comigo mesmo e com toda a equipe, que fez um trabalho demais. Eu não tenho palavras para falar do Canelinha. Foi algo em que eu dei o melhor de mim para ajudar a dar essa segunda chance para ele. Ele é um guerreiro. Um ano já de liberdade… Não sei como descrever em palavras. Eu o levarei para sempre. Quero participar de tantas outras oportunidades parecidas com essa do Canelinha. Além de tudo, eu aprendi muito. Não era apenas o Canelinha aprendendo a caçar: éramos nós aprendendo também. No dia da soltura, ver aquela corrida do Canelinha depois de abrir as portas, em que parecia que ele estava flutuando do meio do mato, foi sensacional. Eu não acreditava que seria um momento tão bonito. Aquele dia foi o melhor de todos.”

Flávia Fiori, veterinária Instituto Pró-Carnívoros, responsável técnica do Instituto Libio e responsável pelos cuidados do Canelinha

“Comemorar um ano da soltura do Canelinha gera alguns sentimentos. Dever cumprido, paz, amor, gratidão. Também causa preocupação, pois sei dos perigos diários que ele e outros lobos enfrentam! Mas, sem dúvidas, o principal é a imensa alegria que tenho em saber que ele está bem e livre, que a vida dele não foi fadada ao cativeiro e aos cuidados humanos. Sua liberdade, por hora, está garantida. Esse aniversário de soltura, profissionalmente e pessoalmente, é uma verdadeira vitória; é o que eu poderia ganhar de melhor e é o que me dá mais força para continuar nessa jornada da conservação!”

Rogério Cunha de Paula, coordenador do Cenap/ICMBio, que coordenou todo o trabalho de destinação, reabilitação, soltura e monitoramento do Canelinha

“Passei esse ano com uma rotina que foi todo dia pela manhã dar uma espiada por onde andava o Canela. Nesses 365 dias, foi uma montanha russa de emoções. Da empolgação pelo rápido estabelecimento de seu território, até o pavor que tomava conta do ser toda vez que ele mostrava o rumo para o lado de uma estrada intermunicipal. Teve também a preocupação de quando ele entrou em Mococa para conhecer, de certo, como funciona uma cidade. Mas Canelinha, de todos os animais reabilitados dentro da proposta de desenvolvimento de protocolos de reabilitação e soltura, foi o mais tímido. E por se afastar do ser humano ao mínimo contato, com muita sagacidade, eu particularmente sempre tive grandes expectativas do seu sucesso. E elas foram atendidas. Canelinha parece que sempre esteve em casa. Ele chegou em 10 dias na área que vive e lá estabeleceu seu território. Rápido e simples assim.  

Nesses dias em que celebramos seu primeiro ano livre, voltei no tempo. Um ano atrás, estava na expectativa de como seria sua liberação… Como ele viveria na área que escolhemos. E sempre quando se abre o portão, essa ansiedade aumenta. Me pergunto: e agora? O que vai ser? Uma mistura de orgulho, porque o bicho atingiu todos os requisitos, com o medo de deixar o “filho” ganhar o mundo. A gente se apega sim. E na nossa humanidade, temos medo de entregar quem você quer bem a um mundo cheio de perigos. E é justamente por tudo isso que abrir o portão do recinto é extremamente simbólico. É o momento em que devolvemos a liberdade a um lobo que estava em vias de ter seu destino abreviado por uma ação humana.

Ver os primeiros passos de Canelinha fora de um cercado, depois de quase dois anos desde que foi resgatado, foi mágico. A saída dele foi de forma destemida. Saiu parecendo que estava esperando muito por aquele momento. Canelinha saiu do recinto e veio em minha direção. Quando me viu, mudou o curso da trotada. Passou do meu ladinho e, naquele momento, com uma câmera na mão, só consegui contemplá-lo. As pernas e mãos tremeram e essa avalanche de emoção me paralisou. E eu o vi como se fosse em câmera lenta. Ele estava na minha frente. Ele estava livre. Livre para ser um lobo como eles devem ser. Que sua liberdade signifique muito para os lobos do Pardo e de todo Brasil. Viva Canelinha!”.

Agradecimentos

Quando reflito sobre essa conquista, é impossível não reconhecer o papel fundamental das inúmeras pessoas e instituições que se dedicaram em cada etapa do processo e continuam comprometidas até hoje. A colaboração das entidades em prol de um objetivo maior é verdadeiramente inspiradora. Não posso deixar de expressar minha profunda gratidão e admiração por todas as instituições envolvidas nessa jornada. Que esse esforço conjunto sirva de exemplo e inspire tantos outros a se unirem em prol da conservação da biodiversidade.

Uma realização do ICMBio/Cenap, do Instituto Pró-Carnívoros e do Instituto Libio.

Apoio: Smithsonian Conservation Biology Institute, Cemacas (Divisão de Fauna Silvestre Prefeitura de São Paulo), Secretaria de Meio Ambiente, Infraestrutura e Logística do Estado de São Paulo, Fazenda Belo Monte e Fazenda Ambiental Fortaleza, Ampara Silvestre, Log Nature, entre outros parceiros.

Viva, o Canelinha! Símbolo de esperança

Assista ao vídeo de comemoração de um ano de liberdade do Canelinha.

Referência

• Chrysocyon brachyurus. Sistema de Avaliação do Risco de Extinção da Biodiversidade – S A L V E

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