Por Vera Maria Ferreira da Silva
Bióloga, mestre em Biologia de Água Doce e Pesca Interior e doutora em Mammalian Ecology and Reproduction pela Universidade de Cambridge (Inglaterra). É pesquisadora do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa) e coordena o Projeto Boto na Reserva de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá e o Projeto Mamíferos Aquáticos da Amazônia, da Associação dos Amigos do Peixe-boi (Ampa)
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Publiquei em fevereiro de 2021, aqui no Fauna News, um texto adaptado do capítulo escrito por mim e com a colaboração de Glenn Shepard e Nívia A.S. do Carmo com o título “Os mamíferos aquáticos: lendas, usos e interações com as populações humanas na Amazônia brasileira”. Este capítulo foi escrito para o livro Olhares cruzados sobre as relações entre seres humanos e animais silvestres na Amazônia (Brasil, Guiana Francesa), editado pelos pesquisadores Guillaume Marchand e Felipe Vander Velden e publicado pela Editora Universidade Federal do Amazonas. Com vários capítulos muito interessantes, ele teve sua primeira edição rapidamente esgotada e a divulgação limitada, dificultando, por conseguinte, o acesso ao seu conteúdo por um público mais amplo.
Assim, compartilho com você um pouco mais das lendas, mitos e folclore associados ao boto-vermelho, espécie de golfinho de água doce, endêmico dos rios da bacia Amazônica e classificado com espécie ameaçada de extinção nacional e internacionalmente.
O boto ou boto-vermelho é uma das figuras mais importantes entre os seres encantados para as populações ribeirinhas dos rios amazônicos.
Alguns o consideram a encarnação do espirito protetor dos peixes, mas muitos pescadores e ribeirinhos relatam sobre abordagens e ameaças por botos durante a pesca, ou que adoeceram depois de encontros agressivos ou de terem matado esses animais. E para esses pescadores, o boto é uma figura nefasta e nada amiga, que atrapalha a pesca e estraga seus apetrechos de trabalho, causando prejuízos.
Quando cheguei no Amazonas, logo depois de me formar em Biologia Animal no final da década de 1970, as lendas e os mitos envolvendo os botos ainda eram muito fortes. Relatos de pescadores que matavam botos que caiam acidentalmente nas suas redes para a retirada dos olhos e do pênis ou da região genital para uso em mandingas e como atrativos não eram raros. Naquela época, era pouco acessível para muitos ter um motor de popa ou até mesmo uma canoa com rabeta e as pescarias eram longas, muitas vezes demorando dias sem que os pescadores voltassem para casa.
Histórias e casos de mulheres jovens que engravidavam do boto na ausência dos homens das comunidades que estavam distantes pescando eram comuns, inclusive com relatos de registros de ‘filhos do boto’. Assim, como forma de vingança, também eram frequentes relatos de pescadores que capturando acidentalmente um boto fêmea a amarravam e a deixavam em local raso para serem usadas sexualmente.
Os tempos mudaram e as lendas, os mitos e as superstições foram sendo corroídas. O alcance das mídias, a intensa imigração de pessoas de outras regiões que não tinham na sua cultura o respeito e a influência das histórias dos botos e a pressão econômica para acesso aos bens de consumo contribuíram fortemente para essas mudanças. Esse fenômeno ficou mais evidente quando, no final da década de 1990, esse golfinho passou a ser usado como isca na pesca de um bagre – a piracatinga -, não consumido ou apreciado no Amazonas, mas exportado para Colômbia, gerando novo aporte de recursos.
Viajando pelos rios da região e conversando com moradores de diversas comunidades, verificamos atualmente a tendência dos jovens de não mais acreditarem ou respeitarem as antigas tradições e lendas sobre o boto. Mas, constatamos que ainda existe certo respeito pelos mais velhos, que acreditam ‘desconfiando’ das lendas e histórias que eram comuns na sua infância e juventude.
Apesar dessa mudança, é importante mantermos viva a memória e as histórias sobre esses golfinhos que são parte integrante e importante da cultura e do folclore amazônico. Além disso, o boto-vermelho é uma espécie endêmica da fauna amazônica e que vem sofrendo intensa pressão antrópica ao longo da sua distribuição, merecendo cuidados e proteção para a sua conservação.
A origem das lendas sobre os botos são apresentadas de diversas formas por diferentes pesquisadores. Segundo Luis da Câmara Cascudo (Geografia dos Mitos Brasileiros, 1947), os portugueses, homens do mar e grandes navegadores, possuíam vasto repertório de lendas que incluíam os tritões, as sereias, as mouras e os animais fabulosos. Quando começaram a colonizar o Brasil, essas lendas se incorporaram àquelas já existentes associadas aos animais desconhecidos da nova terra.
Na Amazônia, a convivência com o sobrenatural é um dos traços comuns no dia a dia dos povos que a habitam, com a aceitação de dois mundos entrelaçados no cotidiano: o material e o simbólico. O boto ilustra bem esses dois mundos, por representar o grande amante das mulheres ribeirinhas e que também pode se transformar em mulher sedutora e levar sua conquista para o fundo do rio, onde ficam os “encantados”, numa mistura de estórias gregas e romanas, mouras e sereias. Esse golfinho levanta, nas lonjuras do rio-mar, o renome clássico da sua estirpe. É um símbolo lúbrico.
Nenhum animal na região Amazônica é protagonista de tantas lendas quanto o boto. A quantidade de narrativas sobre os botos anotados por Candace Slater (A Festa do Boto: transformação e desencanto na imaginação amazônica, 2001) demonstra, segundo a autora, que ele ocupa lugar especial na imaginação amazonense. Entre as histórias contadas sobre o animal, a sua capacidade de assumir a forma humana é a mais frequente. Herança dos europeus, que os índios não conheciam. Apesar da sua antiguidade na memória desses nativos, desde o período pré-colonial, os mitos sofreram longo e contínuo processo de convergência com as estórias e superstições vindas da Europa e da África.
Além da habilidade de se transformar em humano e seduzir as moças locais e engravidá-las, também se atribui a essa mística criatura a intolerância ao cheiro de mulheres menstruadas por atrair vários botos para o local onde elas se encontram, levando-os a perseguir suas canoas. Segundo Slater, essa crença parece ser de origem amazônica. No entanto, é interessante a sugestão do uso de produtos de cheiro pungente ou de forte reação, como a pimenta ardida, o alho, tabaco ou a farinha, para afastá-lo, bem como usar um terçado afiado para cortar a água ao lado da canoa para espantar o boto, nos moldes do comportamento medieval de usar substâncias fortes como o alho e objetos de metal em forma de cruz para se proteger dos vampiros.
Durante uma atividade de campo estudando os botos no alto Rio Tefé, na década de 1980, fui instruída por uma moradora local de sempre carregar comigo alguns dentes de alho, para que o boto não me levasse para o fundo do rio. Também fui aconselhada a sempre desviar o olhar quando ele viesse à superfície para respirar, para não ser “encantada” já que o boto, segundo essa moradora, tinha um poder muito forte de atrair as pessoas e levá-las para o fundo do rio, para o “encantado”.
O boto é um animal muito curioso, aproxima-se das embarcações silenciosamente, emite ruidoso barulho ao exalar o ar e depois dá saltos curtos e vigorosos próximo das canoas. Eventualmente, pode dar um empurrão na canoa, puxar sua quilha e até mesmo segurar remos assustando seus tripulantes. Geralmente, essas canoas, também conhecidas como montarias, são tripuladas pelas mulheres que voltam da roça com seus filhos, carregando produtos e lenha. Com as canoas sobrecarregadas e o casco a poucos centímetros acima da superfície da água, assustam-se com o boto, provocando, muitas vezes, elas mesmas, a alagação que é então atribuída ao boto.
Os botos são ainda capazes de “manipular” objetos e animais tais como pequenas tartarugas, cobras, arraias, peixes grandes, além de galhos e tufos de capim, pedaços de paus e pedaços de barro, com sua longa mandíbula. Esses comportamentos permitem diversas intepretações e geram histórias fascinantes que mexem com o imaginário popular.
O boto-vermelho, assim como outros golfinhos fluviais, por sua proximidade com o homem, está constantemente exposto aos efeitos das atividades humanas em suas áreas de ocorrência. Em alguns locais, são considerados inimigos pelos pescadores enquanto em outros são amigos e colaboram com a pesca.
A captura acidental de golfinhos em redes e petrechos de pesca no mundo existe desde que o homem se tornou pescador, buscando para o seu sustento o mesmo recurso que esses cetáceos. Na Amazônia, a captura acidental também existe e afeta tanto o boto-vermelho quanto o tucuxi, outra espécie de golfinho nos rios da Amazônia. No entanto, essa interação não foi ainda quantificada e não existem dados sobre a mortalidade desses golfinhos fluviais ao longo da sua distribuição.
Os Planos de Ação voltados para os estudos visando a conservação desses golfinhos preveem a quantificação da mortalidade acidental de botos e tucuxis e a interação com a pesca.
Existem três famílias de golfinhos de rio distribuídas em grandes bacias hidrográfica no mundo. As duas espécies da família Platanistidae ocorrem nos rios das bacias dos rios Ganges e Brahmaputra, no continente sub Indiano; o golfinho Lipotes vexillifer (Baji), considerado extinto, na bacia do rio Yang-Tsé, na China, e os botos da bacia Amazônica (Iniidae), no norte da América do Sul. Todas as espécies estão consideradas ameaçadas devido a ocorrência em rios e a proximidade com grandes aglomerações humanas.
As populações de boto nos rios da bacia Amazônica encontram-se em melhores condições quando comparado aos golfinhos asiáticos. Os botos ainda são abundantes e ocorrem em grande parte da sua distribuição original. Temos que proteger um de nossos patrimônios, os golfinhos da Amazônia, para que não sejam lembrados apenas nas lendas.
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